Helio Gurovitz

O medo, oito décadas antes de Trump

O medo, oito décadas antes de Trump

Philip Roth conta, em Complô contra a América, uma história alternativa dos EUA em que o aviador Charles Lindbergh torna-se presidente

HELIO GUROVITZ
02/10/2016 - 10h00 - Atualizado 26/10/2016 15h16

“O medo preside estas memórias, um medo perpétuo. Toda infância, é claro, tem seus terrores, mas me pergunto se não teria sido um menino menos apavorado caso Trump não tivesse sido presidente, ou se eu não fosse filho de mexicanos.”  São as palavras de um menino chamado Philip, nas primeiras linhas do livro. Está bem, está bem, Philip não escreveu exatamente “mexicanos”. Tentemos de novo. Eis então o começo: “O medo preside estas memórias, um medo perpétuo. Toda infância, é claro, tem seus terrores, mas me pergunto se não teria sido um menino menos apavorado caso Trump não tivesse sido presidente, ou se eu não fosse filho de muçulmanos”. Não, não, também não. Philip não escreveu “muçulmanos”. Também não pode ter imaginado, num livro lançado em 2004, a Presidência de Donald Trump. Na verdade, escreveu sobre outro presidente republicano, sobre outra religião. Terceira tentativa, então, desta vez para valer: “O medo preside estas memórias, um medo perpétuo. Toda infância, é claro, tem seus terrores, mas me pergunto se não teria sido um menino menos apavorado caso Lindbergh não tivesse sido presidente, ou se eu não fosse filho de judeus”. Agora sim. São essas as palavras iniciais de Philip Roth em Complô contra a América, uma história alternativa dos Estados Unidos em que o aviador Charles Lindbergh candidata-se pelo Partido Republicano e derrota Franklin Delano Roosevelt nas eleições de 1940.

Lindbergh era uma celebridade. Herói nacional, fora o primeiro homem a cruzar o Atlântico num voo solo em 1927. Seu filho, um bebê de 20 meses, fora sequestrado e encontrado morto dias depois, em 1932, num caso que paralisou a nação. Lindbergh também era um notório simpatizante nazista, propagava ideias racistas e era contrário à entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial. A ala isolacionista do Partido Republicano – representada pelo movimento America First (mesmo slogan da campanha de Trump) – cogitou lançar seu nome à Presidência, mas a ideia não prosperou. Um discurso de teor antissemita que proferiu às vésperas da guerra pegou tão mal, que ele foi obrigado a submergir. Autoexilou-se na Europa, onde foi condecorado por Hitler. Roth o traz de volta aos Estados Unidos em 1940. Ele desce de avião numa tumultuada Convenção Republicana na Filadélfia. Acaba com um impasse no partido ao aceitar a candidatura. Nas urnas, vence Roosevelt de lavada, com 57% dos votos. Perde em apenas dois estados, Nova York e Maryland.

Complô contra a América - Livro (Foto: divulgação)

A segregação dos judeus começa discretamente no governo Lindbergh. A família Roth é expulsa de um hotel numa viagem a Washington. O recém-criado Escritório de Absorção Americana (EAA) leva o filho mais velho, Sandy, para uma temporada de trabalho numa fazenda do Kentucky, de onde ele volta transformado em garoto-propaganda de Lindbergh para jovens judeus. O governo conta com o apoio de um dos mais célebres rabinos do país, chefe do EAA, por coincidência namorado da tia de Philip e Sandy. “Há muita ignorância entre judeus, muitos dos quais insistem em pensar no presidente Lindbergh como um Hitler americano, quando sabem que não é um ditador que chegou ao poder num golpe, mas um líder democrático, que assumiu o cargo após vencer de lavada uma eleição livre e justa, sem demonstrar nenhuma inclinação ao autoritarismo”, diz o rabino. “Ele não glorifica o Estado à custa do indivíduo, mas, ao contrário, encoraja o individualismo empreendedor e um sistema de livre-iniciativa sem a interferência do governo federal.”

Lindbergh promove um jantar na Casa Branca com o ministro das Relações Exteriores nazista, Joachim von Ribbentrop. Convidados, o rabino e a tia de Philip querem levar o pupilo Sandy. O pai proíbe, briga com o rabino e enxota a cunhada de casa. Com a ruptura, perde privilégios. Para evitar ser despachado para o Kentucky, num programa do governo cujo pretexto era integrar os judeus, larga o emprego numa seguradora. Passa a carregar caixas de verduras e hortaliças. Sob o beneplácito de Lindbergh, pogroms contra alvos judaicos começam em Detroit, depois se espalham pelo Meio-Oeste e pelo Sul. O clima esquenta. “O complô contra a América precisa ser detido”, brada em comícios o virulento Walter Winchell, jornalista carismático que, depois de censurado, se proclama candidato democrata. Winchell é alvo de ataques violentos. Mesmo ferido, continua em campanha contra Lindbergh. Acaba assassinado, num massacre de centenas de judeus. Seu enterro mobiliza Roosevelt, juízes da Suprema Corte, políticos e líderes democratas. Lindbergh pega o avião e voa ao local da tragédia, onde faz um discurso lacônico, sem mencionar a violência. Depois some. Ninguém sabe onde foi parar. O vice manda prender Roosevelt, os líderes democratas, o rabino e impõe lei marcial. O estado de exceção amedronta Philip até a última linha. Sorte que é tudo ficção.








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