Cultura

As confissões da ovelha negra em Rita Lee – Uma autobiografia

As confissões da ovelha negra em Rita Lee – Uma autobiografia

Numa autobiografia em que fala quase nada de sexo, mas muito de drogas e rock’n’roll, Rita Lee ratifica o que lhe é de direito: o título de maior roqueira do país

SÉRGIO GARCIA
11/11/2016 - 08h01 - Atualizado 11/11/2016 15h09

Biografias de roqueiros, até mesmo as autorizadas, costumam ser tiros certeiros e com alto poder de fogo. Afinal, a vida nos bastidores do showbiz talvez seja o que exista de mais distante da rotina num monastério. Rita Lee – Uma autobiografia, lançamento da Globo Livros, reforça a regra. Tem muito pouco, quase nada, de sexo, mas, em compensação, a mão pesa nos itens drogas e rock’n’roll. Rita pega o leitor pelo braço e o leva a ouvir suas histórias, a maior parte impagável, outras mais barras-pesadas, todas elas perpassadas pelo bom humor de quem não se leva a sério, como a própria se define. São causos esparsos que a cantora testemunhou ou de que foi protagonista ao longo de seus quase 70 anos de vida e mais de 50 de carreira, empacotados numa linguagem bastante informal, cheia de gírias e sem preocupação com datas. É como se sentasse com amigos na sala de casa e fustigasse a memória. “É uma biografia terapêutica. Não houve censura nem babação de ovo”, disse Rita a ÉPOCA. “A ideia era curar traumas e rir das minhas patetices existenciais.”

  •  
Rita Lee, cantora (Foto: IVO BARRETI/ESTADÃO CONTEÚDO)
Rita Lee – Uma autobiografia (Globo Livros) (Foto: Divulgação)

Logo nos trechos iniciais chama a atenção a lembrança detalhada de episódios da infância, vivida num casarão em São Paulo. De cara, Rita relata uma violência que a marcaria para sempre: o abuso sexual cometido por um técnico que fora consertar a máquina de costura da mãe. Apesar da gravidade do fato, optou-se por não contar nada ao pai, com medo de sua reação. Chamado por ela de “harém”, o casarão abrigava seu pai, um dentista linha-dura de ascendência americana e indígena, sua mãe, filha de imigrantes italianos e de quem herdou o dom artístico, suas duas irmãs biológicas e uma terceira, adotada, além de uma agregada que cuidava das meninas. Esse rico caldo cultural doméstico deu molde à caçula da família. “Crescer sendo brasileira entre americanos protestantes/maçons e italianos ultracatólicos me deu uma panorâmica existencial de valores e bizarrices. Não à toa que sou bipolar com um pé no trifásico”, escreve Rita. O nome Lee, que batiza também suas manas, foi uma homenagem do patriarca a um general confederado. Foi graças ao pai que ela pôde se iniciar na música mais à vera. É que ele fez uma permuta com a pianista Magdalena Tagliaferro: em troca de um tratamento dentário, ela daria aulas do instrumento para a menina.

Sem se prestar a proselitismo, o livro ajuda a dar a Rita o crédito que lhe cabe de direito: o de roqueira mais importante do país. Ela revela por dentro a convivência com os irmãos Claudio, Sergio e Arnaldo Dias Baptista, seus parceiros nos Mutantes, a primeira banda de rock brasileira que primava pela originalidade e pelas experimentações, até hoje cultuada. De acordo com ela, a arrogância dos manos tinha um componente genético. “Claudio se dizia melhor que Stradivarius, Sergio se dizia melhor que Jimi Hendrix, a mãe se dizia melhor que Chopin e o pai se dizia melhor que Caruso. Arnaldo contemporizava debochando deles por trás e ao mesmo tempo se achando o patinho feio no quesito genialidade, tese com a qual nunca concordei”, revela. Essa imodéstia, inclusive, teria sido a causa da exclusão de Rita do grupo. Num dado momento, os Baptistas decidiram dar uma guinada para virar uma banda progressiva-virtuose e disseram que a parceira não tinha calibre para acompanhá-los.

Foi um divórcio mal resolvido. Tempos depois, Arnaldo – com quem Rita havia sido casada por conveniência, segundo ela conta – ficou na primeira fila de um show dela, fazendo gestos com o polegar para baixo. Nessa batalha pessoal, se houve uma vitoriosa, foi ela. Sua carreira deslanchou ao se juntar ao grupo Tutti Frutti e, depois, com o trabalho ao lado do marido, o guitarrista Roberto de Carvalho. Com letras que abordavam o prazer pelo ponto de vista da mulher, Rita concebeu o pink rock e furou um universo de predomínio masculino. Deu voz ao que chama de “rockarnavais”. Entre eles, alguns alcançaram enorme sucesso como “Lança-perfume”, hit que levou o príncipe Charles a se declarar fã de Rita. Ela também reivindica o pioneirismo pela criação do formato acústico, quando lançou bossa’n’roll, em que “bossanovou” alguns de seus temas e de outros compositores. Arroga para si também o fato de ter sido a primeira roqueira brasileira a usar bateria eletrônica numa gravação, contra o olhar enviesado dos colegas, que temiam o desemprego dos músicos.

>> Rita Lee, sobre saída dos Mutantes: "Chorei, gritei, xinguei feito louca"

Do livro emerge uma figura gauche, que jamais fez questão de cultivar o compadrio da classe (leia o quadro abaixo). A fase de ouro dos festivais, na segunda metade da década de 1960, foi o período em que ela se sentiu mais deslocada. Naquele tempo de cisão política absoluta, em que não estar de um lado significava apoio incondicional ao inimigo, Rita permaneceu equidistante entre os dois pontos. Era um “mundinho surreal demais para mim, a gringa roqueira bocejando para o momento político do país (militares e comunistas se equivaliam na chatice), uma ET caipira que entrou de gaiata na festa dos sisudos mpbistas que se levavam a sério demais”.

ARROMBOU A FESTA Rita Lee não cultiva  o compadrio da classe artística  e, no livro, detona vários colegas (Foto: Folhapress (3), Estadão Conteúdo (2), Divulgação)

Como num sonho maluco, diversos personagens aparentemente desconectados surgem no livro em situações variadas. Um deles é Sonia Braga, que lia as cartas dos telespectadores no programa de Ronnie Von, onde os Mutantes estrearam na TV, em 1966. Daí ela fez amizade com Rita, que chegou a chamá-la para se juntar à banda, convite educadamente declinado. Outra atriz que também tangenciou sua vida antes de se tornar celebridade na TV foi Regina Duarte, sua colega de Universidade de São Paulo no curso de comunicação. Durante uma viagem a Nova York, Rita recebeu uma cantada na rua. Era Raul Seixas, que não a havia reconhecido. Tempos depois, ele faria uma música para ela, “Bruxa amarela”. Conta também a hilariante história do rapto das serpentes de Alice Cooper, um superastro do rock dos anos 1970, durante seu show no Brasil. Nessa leva de gentes e fatos inusitados pode-se incluir também o motorista Élcio Decário, que Rita conheceu ao pegar um táxi em São Paulo. Admirada com as composições que ele fazia, entoadas durante o trajeto ao volante, ele de uma hora para outra se tornaria parceiro dos Mutantes.

Com franqueza e avessa a lição de moral, Rita desvela sua relação com as drogas: maconha, ácido lisérgico e álcool, mais ou menos nessa ordem cronológica. Durante uma turnê de um mês dos Mutantes em Paris, batizou de “LSDays” os dias de folga. A convite de um produtor local, eles chegaram a gravar uma fita demo para um novo disco, mas a ressaca de ácido era tamanha que o trabalho ficou ruim e acabou descartado. Esse disco foi lançado no Brasil muito tempo depois, “coisa do Sergio (Dias) que até hoje não desencanta de uma época bacana que não volta mais”, escreve ela. Certa vez, Rita desembarcou em São Paulo com um enorme colar de miçangas ornado de pedrinhas de LSD. Ela relata também uma passagem com o cantor Nelson Gonçalves a convidando a “cheirar umas lagartas de f... as cartilagens”. Como a transgressão não via limites, Rita conta que fumou maconha no banheiro de uma gravadora, acompanhada de Paulo Coelho, com quem teve um “namorico”. Repetiu a cena durante um jantar no Palácio da Alvorada oferecido por Fernando Henrique Cardoso ao casal Bill e Hillary Clinton. “Foi irresistível usar o lugar mais seguro do país para sair da lei.” Rita dá ainda sua versão para o episódio em que ficou presa quase dois meses por porte de drogas. Ao longo de tanto pé na jaca, esteve internada algumas vezes para desintoxicação. No entanto, desde o nascimento da neta, Ziza, de 11 anos, diz estar limpa. É da própria artista a definição: “Talvez não tenha sido mesmo o cérebro por trás de nenhuma banda de rock da qual fiz parte. Modestamente, eu era a alma, quando uma banda morria, meu santo encarnava em outra”. O elixir de Rita está em suas constantes mutações.








especiais