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Preocupado com Trump, Leonardo Padura lança romances policiais no Brasil

Preocupado com Trump, Leonardo Padura lança romances policiais no Brasil

O escritor cubano veio ao Brasil para lançar a tetralogia detetivesca Estações Havana. Ele conta que dormiu mal na madrugada em que Donald Trump se tornou presidente

RUAN DE SOUSA GABRIEL
18/11/2016 - 08h00 - Atualizado 18/11/2016 11h17

Na manhã da quarta-feira (9), o escritor cubano Leonardo Padura acordou de sonhos intranquilos e descobriu que Donald Trump era o novo presidente dos Estados Unidos. “Abri os olhos pouco antes das 6 da manhã e não consegui voltar a dormir. Digitei ‘eleição americana’ no Google e, quando li que Trump havia triunfado, senti uma angústia, uma opressão”, disse Padura a ÉPOCA poucas horas depois de anunciada a vitória do candidato republicano. “Trump é imprevisível! Não sei o que há na cabeça dele, debaixo daquele cabelo tão esquisito.” A sombra do muro que Trump ameaça erguer ao norte do México distraiu muita gente da lembrança de outro muro que veio abaixo nesta mesma data – em Berlim, em 1989. Naquele ano, um Bush governava os Estados Unidos, o Império Soviético balançava e Padura esboçava as primeiras aventuras de Mario Conde, o detetive de seus romances.

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Padura veio ao Brasil para lançar a tetralogia Estações Havana, que reúne as aventuras de Conde ao longo do atribulado ano de 1989. Além de reedições dos romances Passado perfeito, Ventos de quaresma e Máscaras, a Boitempo também publica Paisagem de outono, que permanecia inédito em português. As cenas mais emblemáticas de Paisagem de outono se passam um mês antes da queda do Muro de Berlim, no dia 9 de outubro, quando o Furacão Félix aterrorizou os cubanos e Conde abandonou a polícia. Conde, porém, tem de resolver um último caso antes de se despedir de seu cubículo no Departamento de Informação da Central de Polícia: o corpo de um ex-burocrata castrista que se exilara em Miami fora encontrado por pescadores numa praia de Havana.

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Quando Conde apareceu, o gênero policial era bastante popular em Cuba e representava 40% da produção editorial da ilha. Em 1972, o Ministério do Interior promoveu um concurso para premiar romances policiais compostos segundo as miseráveis diretrizes estéticas do realismo socialista, com detetives patriotas que não falassem palavrão. Padura queria distância dessa literatura panfletária: Conde é um beberrão boca suja e melancólico, que se desencantou com o sonho do socialismo tropical. “Quando comecei a escrever Passado perfeito, não sabia direito aonde aquele romance chegaria, mas queria que tivesse um caráter mais social que policial”, afirma Padura. “E não apenas porque eu sou obcecado pelo social, mas também por ser incapaz de armar uma boa trama policial. Era uma forma de expiar meu defeito.”

O escritor cubano Leonardo Padura em Madri,em 2015 (Foto: Emilio Naranjo/EFE)

Padura não sabia se seus livros seriam publicados em Cuba, pois nem papel havia por lá – a mesada soviética secara e a ilha submergiu numa profunda crise econômica –, mas aproveitou os casos de Conde para compor uma crônica da vida cubana em meio à escassez de material e à sujeira das ruas de Havana, onde uma mesa farta era privilégio de quem tinha os contatos certos. Em Passado perfeito, publicado no México em 1991, o detetive investiga o sumiço de um burocrata corrupto que posava de comunista exemplar. O terceiro volume da tetralogia, Máscaras, denuncia a repressão aos homossexuais, chamados por Fidel Castro de gusanos (vermes, na tradução do espanhol), o mesmo adjetivo reservado àqueles que partiam para o exílio ensolarado em Miami.

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“Mario Conde foi um presente que a literatura me deu”, diz Padura. “Encontrei um personagem que me permite expressar minhas visões sobre a complexa realidade cubana e também sobre os problemas da condição humana.”  Escritor e personagem têm muito em comum: envelheceram juntos e são sexagenários recentes. Conde deixou a polícia no dia do aniversário de Padura (que também é aniversário de morte de Ernesto “Che” Guevara). Ambos cresceram no bairro de La Víbora, em Havana, e veneram os mesmos heróis literários, como Ernest Hemingway (1899-1961), que viveu em Cuba. No romance Adeus, Hemingway, um Conde ainda menino avista o escritor americano saltar de um barco de pesca.

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No entanto, o maior parentesco literário de Padura é com outro prosador ianque: John Updike (1932-2009), que nem sequer escrevia histórias policiais. O herói dos romances de Updike é Harry “Coelho” Armstrong, um americano médio – branco, protestante e angustiado – que, da prosperidade tediosa dos subúrbios, vê seu país se transformar ao longo do século XX. Assim como Conde, Coelho Armstrong percorre toda uma tetralogia, na qual Updike redige uma crônica da vida americana do ponto de vista de uma classe média branca sem maiores pretensões intelectuais – como aquela que elegeu Donald Trump, o presidente imprevisível, de cabeleira espalhafatosa, que tirou o sono de Padura.








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