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Em 1940, o escritor Oswald de Andrade promoveu uma operação polêmica para tentar ingressar na Academia Brasileira de Letras. Lançou seu nome como o “candidato do povo” à casa de Machado de Assis e fez campanha no rádio e nos jornais para mobilizar a opinião pública. Pretendia romper com o que chamou de “cambalacho” nas eleições acadêmicas, sempre decididas nas negociações de bastidor e na troca interessada de citações literárias. Segundo ele, somente com um pleito honesto e amplamente divulgado a instituição poderia escolher os verdadeiros trabalhadores da cultura para renovar seus “quadros de paralisia senil”. Foi uma derrota retumbante. Entre 39 votos, obteve apenas um.
Em 1970, o escritor Cassiano Ricardo, em seu livro de memórias Viagem no tempo e no espaço, disse ter sido dele esse voto único. “Oswald de Andrade teve meu voto em 1940 e eu votaria de novo em seu nome ilustre e subversivo”, escreveu Cassiano. Desde então, as biografias escritas sobre Oswald reforçam que Cassiano foi o único a apoiar essa sua polêmica investida na Academia. Há alguns anos, no entanto, o colecionador carioca Manoel Portinari Leão comprou uma carta que muda essa história. Pela correspondência, hoje pertencente ao acervo do colecionador no Rio de Janeiro, quem votou em Oswald foi o escritor Guilherme de Almeida.
A carta com o selo “confidencial” foi escrita por Guilherme ao acadêmico Ribeiro Couto, que lhe pedira voto para outro candidato, o poeta Manuel Bandeira. Na missiva de julho de 1940, Guilherme afirmou que não votaria em Bandeira, que acabou ganhando a eleição, porque tinha um compromisso moral com Oswald. “O Manuel Bandeira está (...) mais do que eleito. (...) Ele dispensa, pois, fartamente o meu voto. Voto, aliás, tão insignificante para ele quanto particularmente significativo para outro candidato: Oswald de Andrade.” Na carta, Guilherme lembrava seu passado comum com Oswald. “Nascemos juntos nas letras.(...) Juntos, em colaboração, escrevemos e publicamos nosso primeiro livro de dupla estreia. (...) Esse, o meu compromisso sentimental com o Oswald. Do intelectual, nada preciso dizer, tão altamente representativo do pensamento novo eu o julgo entre a nossa gente.”
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Em votações secretas tão permeadas por interesses como as da Academia, não é raro o jogo duplo em que um acadêmico anuncia apoio a um candidato, mas vota em outro. A poetisa Olga Savary, candidata em 2014, teve apenas um voto, mas colecionou declarações de apoio de quatro acadêmicos diferentes. O que dá força à possibilidade de o único voto em Oswald ter sido mesmo dado por Guilherme é que mentir sobre uma negativa de apoio não faz sentido – o gesto antipático não costuma render dividendos. “Esta carta é uma confissão. Guilherme não gostava de ferir sensibilidades, e não daria esta negativa a Couto se não fosse de fato votar em Oswald”, diz Maria Eugênia Boaventura, professora da Unicamp e especialista na obra de Oswald de Andrade.
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Há também evidências de que Cassiano estava fazendo jogo duplo naquela eleição. No livro O itinerário de Pasárgada, Manuel Bandeira afirma que Cassiano, ao lado de Múcio Leão e Ribeiro Couto, trabalhou por sua candidatura. É possível que em algum momento Cassiano tenha convencido o próprio Oswald de seu apoio. O acadêmico Antônio Carlos Secchin
lembra uma estranha mudança na relação dos dois. Em 1944, Oswald chegou a chamar Cassiano, que fora amigo de integralistas e trabalhara no departamento de censura da ditadura de Getúlio Vargas, de “ratazana ao molho pardo”. Quase no fim da vida, passou a tratá-lo como o “maior poeta vivo do Brasil”.
Apoiar Oswald naquela eleição tinha um significado político. Ele era um escritor ligado ao Partido Comunista que falava publicamente em eleições num país sob a ditadura do Estado Novo. Ainda que seu temperamento verborrágico tenha dado um tom burlesco ao episódio, e muitos escritores disseram que ele queria apenas aparecer, havia uma coerência na candidatura. No ano anterior, Oswald integrara o Movimento Zumbi, organização de intelectuais que tinha o propósito de ocupar as instituições culturais importantes para movimentar a vida literária nacional.
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No caso da Academia, essa ocupação seria emblemática. Na década de 1920, os escritores modernistas haviam estabelecido um rumoroso confronto com a instituição, já que a proposta moderna implicava um ataque às formas clássicas de literatura que ela representava. Vinte anos depois, alguns modernistas já estavam se reaproximando da casa, e Oswald propunha que fizessem isso de cabeça erguida. A Academia deveria se curvar a eles, e não o contrário. Reformar a instituição seria continuar a luta contra o passado “bolorento e incapaz” da literatura brasileira, como ele dizia.
Em sua campanha, Oswald fez comício no rádio, deu entrevista nos jornais e trouxe uma publicidade nova, dirigida mais ao povo do que aos eleitores da Academia. Ao invés da delicada missiva de apresentação enviada a cada acadêmico, escreveu uma carta desaforo, que dizia: “Será Vossa Senhoria daquelas teimosas velhas de Botafogo que ainda acreditam no pavoneio dos títulos literários, roubados aos verdadeiros trabalhadores da cultura?”.
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Manuel Bandeira não optou pela luta. Uniu o prestígio literário à obediência dos protocolos da casa. Na carta que enviou aos acadêmicos, Bandeira seguiu a tradição: “Tomo a liberdade de dizer-lhe que seu voto muito desvaneceria este seu criado e admirador”. Esse comportamento foi fundamental para Bandeira ganhar a cadeira. Ele só não obteve mais votos porque na época, numa infeliz coincidência, foi publicado seu livro Noções de história das literaturas. Nele, citava somente o nome de 14 acadêmicos como relevantes para a literatura brasileira. Os excluídos se sentiram desobrigados de votar nele.
O bom convívio sempre pesou na eleição para a Academia tanto quanto a qualidade literária do candidato. Por esse motivo, a instituição deixou de fora nomes de reconhecida importância como Lima Barreto, negro, alcoólatra e com fama de louco, que se candidatou três vezes sem sucesso. Oswald, além da campanha tumultuada, era conhecido autor de sátiras e insultos. Em 1930, foi detido pela polícia quando se dirigia para a Academia munido de um chicote, com o qual pretendia castigar o acadêmico Olegário Mariano, por causa de uma intriga literária. “Quando se elege para a Academia, se elege um colega, e Oswald era um sujeito agressivo”, diz o acadêmico Alberto Venâncio Filho.
Na carta que publicou nos jornais, Oswald desafiou os acadêmicos: “O futuro julgará essa eleição mais do que essa eleição me julgará”. A eleição, de fato, não proporcionou a renovação da Academia. No ano seguinte, os acadêmicos mudaram o regimento interno para eleger o presidente Getúlio Vargas sem que ele precisasse fazer campanha. Vargas foi eleito tendo escrito apenas discursos políticos, mas doou o terreno para a construção de um prédio que hoje garante o sustento da instituição.
A instituição permaneceu nessa zona de conforto e conveniência, pescando aqui e ali algum figurão que lhe pudesse ser útil, elegendo antigos iconoclastas cansados de lutar e vez por outra acolhendo algum gênio vaidoso. O escritor Paulo Mendes Campos dizia que a Academia não reflete a literatura nacional, mas é a melhor imagem do Brasil e de sua confusa cultura social. Ao fugir do destino de ser um órgão cultural expressivo, transformou-se em casa de convivência. “Se o escritor bom deseja entrar, não é vergonha; se é o mau escritor, não ficará sem companheiros; se não é escritor, pouco importa”, escreveu Campos.
Cassiano Ricardo teve sérias diferenças ideológicas com Oswald. Era um poeta importante, mas acabou esquecido provavelmente por seu posicionamento político retrógrado. A declaração de voto em Oswald, na década de 1970, pode ter-lhe sido conveniente num momento em que andava por baixo, enquanto o nome do autor do Manifesto antropófago era cada vez mais cotado.