Cultura

Em Jaqueta branca, Melville fala sobre o mar e os limites da democracia americana

Em Jaqueta branca, Melville fala sobre o mar e os limites da democracia americana

No romance, que tem participação de Dom Pedro II, o escritor Herman Melville defende a igualdade perante a lei

RUAN DE SOUSA GABRIEL
03/03/2017 - 08h00 - Atualizado 03/03/2017 11h03

Em agosto de 1843, o escritor americano Herman Melville (1819-1891) embarcou na fragata USS United States, que partiu de Honolulu, no Havaí, contornou as Américas e aportou em Boston, na Costa Leste dos Estados Unidos, em outubro do ano seguinte. A penúltima parada do navio foi no Rio de Janeiro, onde a tripulação recebeu a visita de Dom Pedro II, imperador do Brasil. Em 1849, Melville escreveu Jaqueta branca ou O mundo em um navio de guerra, um livro inspirado em suas experiências a bordo da USS United States. O romance é narrado por um marinheiro que se identifica apenas como “Jaqueta Branca”, uma referência à roupa que ele costurou para se proteger do frio. Melville já havia escrito outros três romances náuticos e, no ano seguinte, publicaria Moby Dick, um romance com meditações filosóficas, descrições técnicas e narrativa ágil que o consagrou como um dos maiores prosadores da língua inglesa. Jaqueta branca teve recepção calorosa da crítica – mas, comparado à obra-prima Moby Dick, é peixe pequeno. Permaneceu inédito no Brasil até agora, quando uma primorosa edição da Carambaia acaba de aportar nas livrarias.

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Jaqueta branca traz descrições embevecidas da geografia do Rio de Janeiro, chamado de “baía de todas as belezas”, e das roupas luxuosas do imperador. Quando Pedro II passou a tripulação da fragata em revista, Peter, um marujo atrevido que levara umas chibatadas alguns capítulos antes, comenta: “Se eu e esse imperador saltássemos nus para dar um mergulho no mar, seria difícil dizer quem tem sangue real”. Jack Chase, um romântico marinheiro britânico, concordou: “Todo homem que tem sola nos pés leva uma coroa na cabeça”. Nesse curto diálogo, Melville reafirma um dos princípios da democracia americana que ele sonhava ver posto em prática nos navios: todos os homens são criados iguais.

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Jaqueta branca é um romance social: denunciava os castigos corporais na Marinha e exigia que os direitos consagrados pela Constituição americana fossem estendidos aos homens do mar. É um protesto contra os maus-tratos a que os marinheiros eram submetidos – como dieta precária, turnos de trabalho desumanos, camas desconfortáveis e estreitas (46 centímetros!) – e acusa a flagelação, a prática de açoitar os marujos como forma de punição, de ser nociva, desnecessária e ilegal. O marujo narrador reclama que os marinheiros não gozavam dos direitos civis que protegiam os homens em terra firme. A situação dos homens do mar era mais escandalosa que a dos camponeses russos, os mujiques, que também eram sujeitos ao açoite. Na Rússia czarista, não havia liberdade nem nos navios, nem nas estepes. Os Estados Unidos eram uma democracia fundada sobre liberdades individuais que, no entanto, não se estendiam aos navios, “as cidades flutuantes”, governados autocraticamente por capitães que acumulavam os atributos de rei e juiz. “Para ele (o marinheiro), nossa Declaração de Independência é uma mentira”, afirma o narrador. Nem mesmo princípios tão caros aos americanos como a meritocracia e a ascensão social por meio do trabalho duro tinham lugar nos navios. “Num país, como o nosso, que ostenta a igualdade política de todas as condições sociais, é bastante vergonhoso que hoje em dia vejamos tão poucos marinheiros comuns chegarem à patente de oficial de carreira em nossa Marinha.”

Litoagrafia de uma fragata,modelo de navio no qual Herman Melville viajou pelas américas (Foto: Universal History Archive/UIG via Getty Images)
Livro Jaqueta branca (Foto: Reprodução )
Herman Melville,escritor (Foto: Bettmann Archive)

Ao narrar a flagelação de Peter, o marujo que queria ser Pedro II, Jaqueta branca o descreve “um ser humano despido como um escravo e açoitado como se fosse pior do que um cão”. Provocativo, o narrador ainda afirma que alguns comandantes nascidos nos estados livres do norte dos Estados Unidos eram mais ágeis com o chicote do que os escravocratas sulistas. “Melville nos lembra que a escravidão persistia e que os Estados Unidos não haviam rompido completamente com a tirania britânica, como a Revolução Americana prometera”, diz Jeannine DeLombard, professora da Universidade da Califórnia em Santa Barbara. Seis meses após a publicação de Jaqueta branca, o Congresso aboliu os castigos corporais na Marinha. O senador John P. Hale afirmou que sua oposição ao chicote fora inspirada pelo livro de Melville e suas “vívidas descrições da flagelação”.

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Por sua preocupação com as tempestades que podem chacoalhar (ou afundar) o navio da democracia, os livros de Melville têm sido redescobertos pela opinião pública americana desde a eleição de Donald Trump. O escritor Philip Roth afirmou que O homem de confiança, um romance de 1857 sobre um sujeito ambíguo que tenta cair nas graças da tripulação de um navio em pleno Dia da Mentira, é essencial para entender Trump.  “Melville tinha uma crença implacável na democracia”, afirma Jennifer Greiman, professora da Universidade Wake Forest, na Carolina do Norte. “Ele defendia um igualitarismo radical tão estranho a seus contemporâneos que ele próprio considerava ‘ridículo’.” Melville exortava os Estados Unidos a se converterem numa arca da democracia a navegar pelas águas turbulentas da liberdade. Em tempos de Trump, a defesa obstinada desses valores voltou a ser essencial para afastar o canto das sereias autoritárias.








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