Cultura

Novo romance de Orhan Pamuk reflete sobre tradição e modernidade na Turquia

Novo romance de Orhan Pamuk reflete sobre tradição e modernidade na Turquia

"Uma sensação estranha" pondera sobre os dilemas da Turquia – onde a tradição de Erdogan solapa o secularismo

RUAN DE SOUSA GABRIEL
29/04/2017 - 10h00 - Atualizado 02/05/2017 09h43
Apoiadores do presidente turco  Recep Tayyip Erdogan. (Foto: OZAN KOSE/AFP)

Mevlut percorre as ruas de Istambul vendendo boza, uma tradicional bebida turca feita de trigo fermentado. Por seu baixo teor alcoólico, a boza era a bebida preferida dos pecadores que arriscavam tomar um porre no tempo dos sultões otomanos, quando o consumo de álcool era restringido pela tradição islâmica. Após as reformas de Mustafa Kemal Atatürk (1881-1938), o fundador da República da Turquia, que modernizou o país com punhos de aço e marginalizou o conservadorismo islâmico, a boza perdeu espaço para o raki, um licor de uva e anis de teor alcoólico de 40%, e se tornou símbolo de um passado religioso e provinciano, encarnado por Mevlut. Uma noite, ele foi vender sua boza num apartamento grã-fino que cheirava a raki. Os homens estavam bêbados, e as mulheres tinham o cabelo tingido de loiro e não usavam véu. Enquanto lhes servia a boza, Mevlut ouvia perguntas curiosas: “Você é um homem religioso?”, “Sua mulher cobre a cabeça com o véu?”, “O que será de Atatürk, do secularismo, se os partidos islâmicos tomarem o poder?”.

Divisão (Foto: divulgação)

O encontro entre o ambulante provinciano e a elite secularizada é narrado em Uma sensação estranha, romance do escritor turco Orhan Pamuk recém-editado no Brasil, mas podia muito bem ter ocorrido em algum canto de Istambul nas últimas semanas. Uma das mulheres de cabeça descoberta poderia até ter perguntado: “Como você vai votar no referendo convocado por Erdogan?”. No dia 16 de abril, um domingo, os turcos aprovaram uma emenda à Constituição que substitui o parlamentarismo pelo presidencialismo. A reforma amplia e consolida os poderes que Recep Tayyip Erdogan, o presidente turco, vinha acumulando por meio de manobras que sobrepõem sua autoridade à do subserviente primeiro-ministro Binali Yildirim. Ergodan governa a Turquia desde 2003, quando assumiu o cargo de primeiro-ministro sustentado pelo islamista Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP, na sigla em turco). Em 2014, tornou-se presidente.

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O resultado do referendo foi apertado – 51,4% dos eleitores disseram “sim” à proposta de Erdogan, que poderá se reeleger duas vezes e se manter na Presidência até 2029, com poder para nomear ministros, emitir decretos e afastar juízes. A maioria de seus apoiadores são como os parentes de Mevlut: religiosos e nascidos no interior pobre da Turquia. Na província de Konya, onde fica a aldeia natal de Mevlut, o “sim” venceu com 72,9% dos votos. O “não” prevaleceu nas regiões fronteiriças com a Europa e grandes cidades, como Ancara e Istambul. Houve panelaços em Cihangir, o bairro na parte europeia de Istambul onde vive Pamuk. O escritor é membro da elite ocidentalizada e declarou publicamente que votaria “não” no referendo. A tensão entre o secularismo e o islã é um mote recorrente em seus livros. Não é diferente em Uma sensação estranha, que acompanha as andanças de Mevlut, o vendedor de boza, pelas ruas e pela história de Istambul de 1968 a 2012.

O escritor turco Orthan Pamuk (Foto: Ayman Oghanna/The New York Times)

A vida política social da Turquia é marcada pela oposição entre a elite ocidentalizada, seduzida pelo secularismo, e as classes populares, desconfiadas da modernidade e alienadas pela retórica antirreligiosa dos discípulos de Atatürk. Uma sensação estranha, porém, mostra que os turcos mais pobres também estão divididos. Boa parte do romance se passa em Duttepe e Kültepe, bairros periféricos de Istambul. Duttepe abrigava famílias muçulmanas que migraram da Anatólia em busca de uma vida melhor. Lá, as mulheres usavam véu e proliferava um nacionalismo com pinceladas religiosas abraçado pelos primos de Mevlut, que ganharam algum dinheiro investindo em construção civil – um setor que mantém laços estreitos com Erdogan, citado na cronologia de fatos históricos arrolados ao final do livro. Mevlut morava em Kültepe, uma colina povoada por curdos e alevitas, minorias étnicas e religiosas simpáticas a ideologias de esquerda.

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É Mevlut, porém, que melhor representa os dilemas da Turquia. Ele é um turco temente a Deus, mas não consegue manter a abstinência sexual durante o ramadã. Tem ambições empreendedoras, um coração à esquerda e vota no Partido Islâmico. O vislumbre da bandeira turca agitada pelo vento enche seus olhos d’água. “Você leva jeito para agradar tanto à esquerda quanto à direita, não é?”, diz Ferhat, seu amigo de Kültepe. Mevlut sonha com uma loja num bairro chique de Istambul onde possa vender sua boza, combinando, assim, as Turquias moderna e ancestral, capitalismo e tradição.

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“O futuro de uma sociedade não era determinado pelos traços comuns de seus membros, mas se baseava totalmente nas suas diferenças”, diz o narrador de Uma sensação estranha. O futuro que a dramática divisão exposta pelo referendo parece determinar para a Turquia não é dos melhores: o preço do fortalecimento de Erdogan tem sido o esvaziamento da democracia turca. Para frear o avanço do autoritarismo, é importante uma trégua na guerra pela alma da Turquia. O que une as tramas tão diversas de Uma sensação estranha é justamente o talento de Pamuk para reger um coral de vozes que, no decorrer das páginas, interrompem o narrador para contradizê-lo e contar sua versão da história. Essa concessão à polifonia legitima os discursos dos marginalizados pela secularização e dos entusiastas da modernidade. Se Erdogan pretende atuar como o narrador de um romance épico, devia ao menos reconhecer que os personagens não têm um discurso homogêneo e não tentar calá-los, para que a narrativa do futuro da Turquia possa, finalmente, ser uma construção coletiva.








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