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Marlon James: “Bob Marley ensinou os pobres a questionar o poder”

Marlon James: “Bob Marley ensinou os pobres a questionar o poder”

O escritor, autor do premiado romance que gira em torno da tentativa de assassinato do astro do reggae, diz como ele se tornou uma figura subversiva na sociedade jamaicana. James fala este sábado na Flip

RUAN DE SOUSA GABRIEL| DE PARATY, RIO DE JANEIRO
28/07/2017 - 08h00 - Atualizado 28/07/2017 16h16

Em 2015, o escritor jamaicano Marlon James levou o Man Booker Prize, um dos mais prestigiosos prêmios da literatura em língua inglesa, com o romance Breve história de sete assassinatos. Mas não se engane pelo título: a edição brasileira do livro, recém-publicada pela Intrínseca, tem 736 páginas. São dezenas de narradores. Há também muito mais do que sete assassinatos no livro. No entanto, as narrativas giram em torno não de uma morte, mas da tentativa de assassinato do cantor Bob Marley, em Kingston, capital da Jamaica, em 1977. O romance ainda passa em revista a história política da Jamaica nas últimas décadas. O vigor e a violência que permeiam o livro chamaram a atenção da crítica. James é um dos autores convidados da 15ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Numa manhã ensolarada em Paraty, James conversou com ÉPOCA sobre o perigo que Marley representava para os poderosos jamaicanos, racismo, a dimensão política da literatura e sua paixão pela música brasileira – ele recentemente aprendeu a pronunciar Jorge Ben sem afetação hispânica.

>> Flip promete partir da literatura para discutir as questões que afligem o país

O escritor Marlon James durante foto em Paris (Foto: DOMINIQUE FAGET/AFP)

ÉPOCA – Por que um livro sobre a violenta história política da Jamaica gira em torno de Bob Marley?
Marlon James – Bob Marley era como um para-raios, ele atraía controvérsias e debates. Ele propunha muitas discussões, como a questão racial, por exemplo. Ele era mestiço – metade branco, metade negro. Por isso, para muitos negros, Bob Marley jamais seria negro. Para os brancos, ele era muito pobre, pouco instruído, tinha um cabelo bagunçado e jamais seria um deles. O lado branco da família dele nunca o ajudou, em nada. Mas ele se tornou um astro no mundo, e esse lado branco da família ficou numa situação complicada. Marley ganhou dinheiro e fama, e talvez eles precisassem dele um dia – mas ele ainda era metade negro. Ele também levantava questões de classe. Era um sujeito vindo do gueto que se muda para o mesmo bairro do primeiro-ministro e da elite política da Jamaica. É como se um rapper controverso comprasse uma mansão ao lado da Casa Branca. Nos anos 1970, havia uma elite intelectual negra na Jamaica, formada pela primeira geração de jamaicanos negros com formação universitária. E Marley não tinha nenhum título acadêmico, mas o mundo o elegeu como a voz da liberdade, a voz da luta. Ele foi odiado por isso. Foi ele quem começou muitos debates culturais importantes naquela época. Antes de Bob Marley, quem usasse cabelo como o dele era expulso de casa!

ÉPOCA – O senhor disse numa entrevista que Bob Marley era perigoso para a elite política jamaicana. Por quê?
James – Sim, ele era perigoso! Se ele não fosse perigoso, não teriam tentado assassiná-lo. Antes de Bob Marley, as pessoas comuns não pensavam por si mesmas, havia sempre alguém que pensava por elas. Na casa da minha avó, não havia fotos da família nas paredes, mas dos políticos. Essa ideia de que você pode pensar por si próprio e não precisa que alguém venha à sua casa e lhe diga o que pensar era perigosa! Tanto a direita quanto a esquerda se beneficiavam se o povo não pensasse, se o povo não questionasse o que os políticos ofereciam. Bob Marley ensinou os jamaicanos a questionar o poder, a perguntar: “Por que nós continuamos pobres, ano após ano, se trabalhamos tanto para vocês? Vocês nos distribuem comida, mas nós continuamos pobres. Por quê?”. Ninguém havia feito essas perguntas antes. Foi Bob Marley que levou as pessoas comuns, nas ruas, nos guetos, a fazer essas perguntas, a questionar o poder. De repente, a ideia de uma nação pobre como a Jamaica se enchendo de pessoas se perguntando “por quê?” se tornou perigosa. Essa autonomia de pensamento, essa autodeterminação foram coisas novas – e não foram trabalho de intelectuais ou políticos, mas de um cantor de reggae.

ÉPOCA – O senhor vive nos Estados Unidos, onde o racismo tem sido muito discutido, especialmente após a eleição de Donald Trump. A experiência de ser homem negro na Jamaica e nos Estados Unidos é diferente? Como?
James – O racismo é diferente nos dois países, mas existe. Os jamaicanos não se consideram racistas e acreditam que tudo é uma questão de classe, o que, na verdade, é algo que o colonialismo nos ensinou. Na Jamaica, nós somos racistas “britânicos”. É uma espécie de condescendência, que acredita que pessoas de pele escura não são tão inteligentes e aceitam a desigualdade como se fosse uma tradição. Eu me lembro de ser barrado em discotecas por estar vestindo jeans e camiseta – aquele não era um traje apropriado, os seguranças me diziam. Mas eu vi homens brancos de jeans e camiseta entrando. Eu não percebi que aquilo era racismo, parecia natural. Quando fui para os Estados Unidos e depois voltei à Jamaica, pude identificar o racismo. O racismo jamaicano é mais sutil, mais arraigado na cultura. Os americanos têm mais consciência do racismo, embora o resto do mundo pense o contrário. Os europeus, por exemplo, são cegos ao racismo. Eles dizem: “Pelo menos não somos como os americanos”. Mas, de algum modo, são ainda piores. Pelo menos essas questões estão sendo debatidas nos EUA, o que é um sinal de progresso.

ÉPOCA – A Flip está bastante comprometida em discutir política e promover a diversidade. É papel da literatura lutar contra os preconceitos e as desigualdades?
James – O papel da literatura é mais sutil. Não creio que literatura é polêmica. Eu, como escritor, não tenho uma missão e não confio em escritores missionários. A maior dádiva da literatura é a empatia. Um  escritor deve colocar o leitor diante de uma situação que ele não conhece. O que o leitor faz com essa nova informação é problema dele, eu não vou forçá-lo a nada. O escritor tem de ser muito cuidadoso, porque escrever é um ato de liberdade e quero que ler seja também um ato de liberdade. Por isso, se eu me tornar didático ao extremo, eu desencorajo o leitor a formar sua própria opinião, apesar das minhas boas intenções. Há muita coisa no mundo que me preocupa, mas, na maior parte das vezes, escrevo sobre ela nas redes sociais e acabo me envolvendo em brigas. Faço isso todos os dias [risos]. Mas a literatura pode, sim, refletir sobre o mundo e falar umas verdades para os poderosos. Nem todo autor precisa ser engajado politicamente, mas todo autor escreve sobre a humanidade, um tema muito político. Não é a literatura em si mesma que é política, mas o subtexto que ela carrega.

ÉPOCA – Comenta-se muito seu gosto pela música. O senhor pretende aproveitar a passagem pelo Brasil para conhecer mais a música brasileira?
James – Gosto muito de música e trabalhei como crítico musical num jornal jamaicano. Todo mundo na Jamaica cresce ouvindo muita música, tudo lá tem uma trilha sonora. Cresci ouvindo música jamaicana, é claro, mas também muita música americana e britânica – muito rock, new wave, pop, hip-hop, death metal, Michael Jackson, Prince, Duran Duran, New Order, AC/DC... Não escrevo no silêncio, escrevo ouvindo música. Cresci numa casa muito barulhenta, que não ficava quieta quando eu precisava estudar ou fazer minha lição de casa. Eu tive de aprender a fazer essas coisas no meio da barulheira. Quando escrevo, geralmente ouço jazz, Björk, qualquer coisa. Escuto música brasileira há décadas. Todo gringo gosta de falar da Tropicália, mas não sei se nós conheceríamos esse som se não fosse por David Byrne e Beck. Coleciono os discos da Tropicália e também muita MPB, Carlinhos Brown... Recentemente, aprendi que se fala “Jorge Ben” e não “Ror-re Ben”, como os hispânicos. Adoro como a música brasileira não tem medo de ser bonita! Escuto bastante música. Não gosto quando as pessoas dizem que escutam todo tipo de música, pois isso geralmente significa que elas só escutam música ruim [risos].

ÉPOCA – A música que o senhor ouve enquanto escreve influencia sua literatura?
James – Às vezes. Não são as letras que influenciam, ainda que alguns versos influenciem sim. As letras da Björk, por exemplo, influenciam bastante alguns personagens. Quando escrevo um fluxo de consciência, costumo ouvir o álbum Sanctuary, de Miles Davis, ou Jack Johnson, que tem uma batida que flui, que nunca se repete – como é o fluxo de consciência. É assim que a música inspira minha literatura. O ritmo, o compasso, a economia do texto. Quando escrevo cenas silenciosas, ouço jazz ou gêneros que conseguem preencher esses espaços vazios, essa quietude.

ÉPOCA – Como outras formas de arte influenciam sua literatura? O cinema, por exemplo? Alguns críticos apontaram coincidências entre a violência gráfica de Breve história de sete assassinatos e filmes de Quentin Tarantino.
James – Sim, o cinema é uma grande influência. Mas é engraçado: Tarantino, nem tanto! Agradeço as comparações entre nós, mas não acho que somos parecidos. Não há muita reflexão nas obras de Tarantino – porque, muitas vezes, não precisa mesmo. O meu livro, apesar da violência, é feito de cenas em que alguém está sentado e conversa com o leitor. E eles refletem muito. Há, sim, várias coisas que eu tomo emprestado do cinema. Uma coisa que roteiristas e dramaturgos fazem muito bem, e os romancistas nem tanto, é encher de sentido uma cena que está diante de você. Costumo dizer a meus alunos: “O pôr do sol não precisa de sua ajuda, você não precisa de uma metáfora para descrever o pôr do sol, ele é já é deslumbrante por natureza”. E os filmes conseguem dar significado ao mundo que está diante de nós – eles têm de fazer isso, senão, têm de recorrer àquelas narrações ridículas. Um romancista consegue entrar na cabeça de um personagem sentado a contemplar um rio correr. Um cineasta não tem esse luxo, mas, ainda assim, ele consegue encher essa cena de poesia e beleza. Isso é algo que eu quero aprender. Outra coisa que nós, romancistas, podemos aprender com os cineastas: confiar nos personagens para contar a história. Em meus romances, sempre deixo os personagens contar a história. E eles contam a história melhor do que eu! Odeio minha maneira de narrar. Por isso, sempre tenho narradores em primeira pessoa [risos]...

ÉPOCA – É por isso que Breve história de sete assassinatos tem dezenas de narradores?
James – Sim, eu me entedio fácil [risos]. Mas esse Breve história não começou assim. Esse era para ser meu livro mais curto, queria escrever uma novela policial. A primeira coisa que eu escrevi está na página 524 da edição brasileira, o capítulo narrado por John John K. Foi a primeira coisa que eu escrevi e não tem nada a ver com a Jamaica, os anos 1970 ou Bob Marley. A ação se passa nos anos 1980, em Chicago e Miami, é sobre um matador de aluguel atrás de um jamaicano. Escrevi 50, 60 páginas e não conseguia terminar. Aí comecei a escrever com a voz de outro personagem, Bam-Bam, que narra o segundo capítulo do livro. E também não consegui terminar. Eu me lembro de dizer a minha amiga Rachel: “Não sei a história de quem eu estou contando”. E ela respondeu: “Por que você acha que é a história de uma pessoa só?”. Quando percebi que o livro teria tantos narradores, voltei a Enquanto agonizo, de William Faulkner, que também tem múltiplos narradores, e a filmes de Robert Altman, como Nashville e O jogador. Fui atrás de histórias contadas por grandes elencos de personagens. E o livro foi tomando forma. Bob Marley foi um dos últimos personagens a entrar no livro, porque era algo que todos os personagens tinham em comum. Todos eles orbitavam em torno de Bob Marley. É um livro que não nasceu como uma raiz que foi ganhando um tronco, galhos. No princípio, havia galhos, e aí percebi que todos esses galhos estavam unidos por um tronco, uma árvore.

ÉPOCA – Essa estrutura de múltiplos narradores lembra não só os romances de Faulkner, mas também Os detetives selvagens, do escritor chileno Roberto Bolaño.
James – Bolaño me influenciou muito! Na minha versão de Breve história, estava tentando imitar Os detetives selvagens. O que eu gosto em Os detetives selvagens é a ideia de múltiplos narradores contando a mesma história. Por um ou dois anos, eu estava praticamente reescrevendo Os detetives selvagens. O que mudou é que eu não estava tão interessado que o livro contasse um único evento. Queria ver os personagens evoluindo à medida que o tempo passava. Eu estava menos interessado em que todos os personagens falassem de outra pessoa, como em Os detetives selvagens, e mais interessado em deixá-los falar por eles mesmos. Outros romances de Bolaño, como 2666 e Estrela distante, que eu considero o melhor livro dele, também me influenciaram muito. Gosto do modo como ele fala da realidade sem ser um escritor realista ou se render ao realismo fantásico. Também gosto muito de Toni Morrison [americana), Salman Rushdie [britânico], Gabriel García Márquez [colombiano], José Donoso [chileno] e James Baldwin [americano], que influencia muito a não ficção que eu escrevo. Gosto também de cineastas como Billy Wilder [americano], Alfonso Cuarón [mexicano], Rainer Werner Fassbinder [alemão], Alejandro González Iñárritu [mexicano]. Gostei muito de Cidade de Deus, mas acho que os brasileiros já devem ter se cansado de falar sobre isso [risos]. Cidade de Deus é um exemplo de como as histórias de países como os nossos – Jamaica, Brasil, México, Nigéria – não podem ser contadas por um único personagem. Só percebi isso no meio de Breve história.

ÉPOCA – Por que um único personagem não pode contar a história de países como os nossos?
James – A Jamaica, por exemplo, é um país pequeno. Mas, dentro dela, há dezenas de Jamaicas que não dialogam porque suas histórias são diferentes: da colônia, da escravidão, da imigração... Todo mundo que mora na Jamaica se mudou para lá ou foi levado à força. Ninguém é nativo, por isso nossas histórias já nascem emprestadas ou mesmo roubadas. Por causa dessas trajetórias tão diferentes, o fato de vivermos no mesmo país não significa que estejamos juntos ou unidos. Nossas histórias são múltiplas – e não há uma história definitiva. Aqui mesmo, em Paraty, deve haver dezenas de Paratys. A divisão de classes ainda é muito grande na Jamaica. Duas pessoas podem viver na mesma rua, mas, por serem de classes diferentes, nunca se encontrar. O dono de um Porsche nunca vai dialogar com o jardineiro, ainda que sejam vizinhos. Tenho amigos que vivem nos morros de Kingston [capital da Jamaica], que nunca foram à praia e nem sabem que há praia em Kingston!

ÉPOCA – O senhor conhece a literatura brasileira?
James – Conheço Jorge Amado, mas todo mundo conhece Jorge Amado. Clarice Lispector também foi uma grande influência. Também li Daniel Galera. A verdade é que eu não sou a melhor pessoa para responder a essa pergunta, porque me interesso muito mais por música do que por literatura [risos].








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