Cultura

Como o escritor pernambucano José Luiz Passos pensa a República

Como o escritor pernambucano José Luiz Passos pensa a República

Hábil em transformar o Brasil dos engenhos em literatura, o escritor publica romance sobre as decepções da vida republicana

RUAN DE SOUSA GABRIEL
29/09/2017 - 08h00 - Atualizado 29/09/2017 11h07

O escritor pernambucano José Luiz Passos sentiu-se derrotado em 1989, aos 18 anos. Passos era calouro do curso de física da Universidade Federal de Pernambuco e, naquele ano, votaria para presidente pela primeira vez. Seu candidato era Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), mas o eleito foi Fernando Collor de Mello. “Lembro-me do entusiasmo que eu sentia. Era como se alguma coisa estivesse prestes a mudar, mas o que houve foi uma espécie de solução de anticlímax político”, diz Passos, numa conversa com ÉPOCA em São Paulo. “Aliás, nós, brasileiros, somos mestres em soluções de anticlímax político, não é?” Na época da eleição, Passos viajou do Recife para o sertão, onde um amigo o fotografou com um sombreiro mexicano, caneta em punho e o olhar fixo e desconfiado de quem tenta se antecipar a um ataque. Essa foto estampa a orelha de Antologia fantástica da República brasileira (Cepe Editora, 264 páginas, R$ 40), o novo livro de Passos, um projeto maluco que mistura histórias de personagens reais e fictícios que se sentiram traídos pelos comportamentos pouco republicanos da República.

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Antologia fantástica da República brasileira nasceu quando o jornal literário Suplemento Pernambuco convidou Passos para organizar uma coletânea de textos em domínio público sobre a República Velha (1889-1930). O currículo de Passos justifica o convite. Depois da derrota de 1989, ele trocou a física pelas ciências sociais, formou-se sociólogo, debruçou-se sobre a obra de Machado de Assis e, há 23 anos, dá aulas de literatura e cultura brasileiras em universidades californianas. No ano passado, ele publicou O marechal de costas (Alfaguara), um romance que une as duas pontas da República: o governo de Floriano Peixoto (1839-1895), o primeiro vice a assumir a Presidência, e o impeachment de Dilma Rousseff. A Antologia reuniria textos e documentos históricos descobertos por Passos nas pesquisas para O marechal de costas – mas o escritor traiu o sociólogo. “Comecei a me interessar por outra República, a que foi instaurada pela Revolução Pernambucana de 1817 e durou menos de três meses. Foi o primeiro experimento republicano brasileiro”, diz Passos. “Também quis incluir outras Repúblicas brasileiras, como as de 1889, 1930, 1964, 1989, 2016... A ideia era compor um álbum de recortes desses momentos de tensão entre os cidadãos e as demandas da vida pública.”

O escritor José Luiz Passos,em São Paulo (Foto: João Castellano/ÉPOCA)
O escritor José Luiz Passos em 1989 (Foto:  Divulgação)
Antologia fantástica da República brasileira (Foto: Divulgação )

Esses recortes pertencem a vários gêneros literários que se acomodam na licenciosidade de um romance – a Antologia é mais anárquica que republicana. Passos mistura trechos de Graciliano Ramos e Tolstói com breves biografias dos revolucionários de 1817 e os registros dos trabalhadores da Usina Santa Therezinha, em Água Preta, Pernambuco, onde o autor participou de uma residência literária. Há ainda um ensaio sobre Usina, romance de José Lins do Rego, publicado em 1936, sobre a industrialização dos engenhos de açúcar. Os narradores mais prolíficos do romance são Totonho e seu filho, Mandrake. Totonho é herdeiro da aristocracia açucareira e, como um Brás Cubas pernambucano, filosofa do além-túmulo sobre a República. O sorumbático Mandrake não conheceu a fortuna de açúcar da família. É imigrante e professor. Ensina literatura brasileira a estudantes americanos e filosofa sobre o que significa ser estrangeiro.

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Nessa “antologia de patriotas queridos e canhestros” há sempre alguém pronto a dar uma definição de República. Para Totonho, “a República é uma rota, uma noção de bem comum, de coisa nossa, no melhor e no pior dos sentidos”. O padre João Ribeiro (1766-1817), mártir da Revolução Pernambucana, afirma que “República é ver em outrem um nosso absoluto igual”. Passos concorda com seus personagens. “O que unifica o livro são essas reflexões sobre o pacto político com o outro, o que exige o reconhecimento do outro como um igual, dotado dos mesmos direitos que eu. Essa é uma condição sine qua non da República”, afirma. “A República brasileira não conseguiu promover o primado ético da igualdade que deveria estar na fundação da República.” Totonho compara a República à mulher da vida, à mulher pública, porque ela é de todos. No entanto, parece se esquecer de que ela sempre cobra um preço – e não é fiel a ninguém.

Passos diz que deixou as ciências sociais “lá atrás”, mas os grandes temas da sociologia brasileira – a modernização que arrasta consigo o atraso, a tensão entre campo e cidade, os pactos políticos que concebem novos regimes – atravessam seus livros. Seu romance de estreia, Nosso grão mais fino (Alfaguara), de 2009, narra a história do amor quase incestuoso entre o químico Vicente e Ana, mulher do tio dele. Vicente é herdeiro da elite canavieira decadente de Pernambuco e recorda o tempo em que os antigos engenhos se transformaram em usinas modernas, verdadeiras indústrias de açúcar. Passos é neto de um químico que se casou com a filha de um usineiro de Catende, na Zona da Mata pernambucana, mas cresceu no Recife, quando a família não contava mais com o dinheiro do açúcar.

Uma viagem ao passado ajudou Passos a dar forma a esse primeiro romance – e a seu projeto literário. Em 2004, numa viagem até Serpige, ele visitou a usina onde nasceu e que foi vendida por sua família em 1974. A usina faliu em 1995 e, desde então, está sob o controle dos trabalhadores. Lá, Passos conheceu trabalhadores que ainda se lembravam de seu avô químico e sentiam uma estranha saudade dos tempos em que a Usina Catende era a maior produtora de açúcar da América Latina. Passos conhece um pouco esse sentimento fora de lugar. “Catende tem essa dimensão mítica para mim, mas eu nunca tive uma nostalgia restauradora ou quis ser usineiro”, diz. “Pelo contário, na faculdade eu era simpatizante do Partido Comunista. Sempre votei no PT. Catende também sempre foi um problema.”

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“Ao menos em literatura, nem sempre as opiniões mais corretas dão os melhores frutos, ou os frutos de uma verdadeira crítica”, diz um dos narradores da Antologia. A literatura de Passos não é, nem de longe, panfletária ou uma desculpa para formular intepretações do Brasil. Ele resolve toda essa sociologia no campo da forma. Seus romances são marcados por experimentações, como a dissolução das fronteiras entre o ensaio  e a ficção e as narrativas não lineares, nas quais o passado pode irromper no presente – um pouco como a combinação de atraso e de modernidade na experiência brasileira. Como bom discípulo de Machado de Assis, Passos constrói personagens complexos o suficiente para abarcar contradições – como o próprio autor, um homem que cultiva ideias de esquerda, mas sente uma incômoda nostalgia do passado de açúcar. Passos afirma buscar, nessa literatura que expõe contradições, “uma espécie de redenção afetiva e estética”. E ele já faz isso há tempos. Naquela foto de 1989, ele segura uma caneta e olha atento para o lado porque está escrevendo um poema. “É a primeira foto que tenho de minha escrita, por isso guardei”, diz Passos, ciente de que o passado e o presente estão sempre a se cruzar na vida dos homens e das Repúblicas.








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