Cultura

Figura do “leitor adúltero” protagoniza livro do marido de Elena Ferrante

Figura do “leitor adúltero” protagoniza livro do marido de Elena Ferrante

Laços, romance do italiano Domenico Starnone, é um espelho de Dias de abandono, de Elena Ferrante

RUAN DE SOUSA GABRIEL
01/09/2017 - 13h42 - Atualizado 04/09/2017 16h08
O escritor italiano Domenico Starnone. Laços, seu romance recém-publicado no Brasil, é um espelho de Dias de abandono, de Elena Ferrante (Foto: Arquivo pessoal)

Nos ensaios de O último leitor, livro que investiga os diversas representações do leitor na tradição literária ocidental, o escritor argentino Ricardo Piglia (1941-2017) aponta para dois modelos de bibliomaníacos presentes nos romances da modernidade: o “celibatário insone” e a “adúltera”. O “celibatário insone” é aquele para quem a leitura é quase um vício. Ele vive sozinho, é um pouco esquisito e se esforça para desvendar os sentidos ocultos em cada palavra que lê, como se tivesse um mistério a esclarecer. O melhor exemplo desse leitor solteirão é Auguste Dupin, o metódico detetive criado por Edgar Alan Poe. A “leitora adúltera” é aquela mulher entediada com o marido medíocre e a vida doméstica que se refugia em romances açucarados. Emma Bovary buscava nos romances para moças que lia (e nos corpos dos homens a quem se entregava) as aventuras que faltavam em sua vida de mulher de médico de província. Anna Kariênina, a russa que troca o marido aristocrata por um soldado charmoso, aproveitava as viagens de trem entre Moscou e São Petersburgo para ler romances ingleses. No romance Laços (Todavia, 144 páginas, R$ 44,90), recém-publicado no Brasil, o escritor italiano Domenico Starnone embaralha as definições de Piglia. Aldo, protagonista e um dos narradores, é um ávido leitor – mas não é celibatário nem insone. É um adúltero. Um leitor adúltero.

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No verão de 1974, Aldo Minori, 32 anos, abandonou sua mulher Vanda e seus dois filhos, Sandro e Anna, de 9 e 5 anos. Ele largou a família em Nápoles e foi viver em Roma com Lidia, uma moça de 19 anos. Aldo dava aulas na universidade naqueles anos turbulentos, pós-maio de 1968, quando o furor libertário dos jovens ameaçava demolir instituições tradicionais como o casamento e a família. “Uma garota certinha apareceu na sua frente e, em nome da libertação sexual e da dissolução da família, você se tornou seu amante”, escreve Vanda, a mulher traída, numa carta ao marido fugido.

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Laços é dividido em três partes. A primeira consiste numa sequência de cartas enviadas por Vanda a Aldo numa tentativa de trazê-lo de volta para junto dela e dos filhos. A segunda parte, a mais longa, é narrada por um Aldo de 72 anos que rememora os anos que passou longe de casa e os efeitos que seu longuíssimo “verão do amor” teve em sua família. Sim, depois de alguns anos de prazer com Lidia, Aldo reassume seu lugar ao lado da mulher legítima e dos filhos. A última parte, narrada por Anna, descreve um encontro no qual os dois irmãos, já adultos, discutem o casamento dos pais.

laços (Foto: época)

Os capítulos narrados por Aldo se passam em 2014, quando ele e Vanda, um casal idoso e reconciliado, voltam de férias na praia e encontram seu apartamento revirado: móveis quebrados, livros destruídos, gato sumido. Quando Vanda se recolhe para dormir, Aldo se tranca no escritório para arrumar a bagunça e acaba redescobrindo leituras e anotações dos seus tempos de adúltero. “Reli páginas inteiras, tentei recordar o ano em que me dedicara àquele livro ou a outro, recorri não tanto à consciência escrita dos autores – muitas vezes eram nomes esquecidos, páginas envelhecidas, conceitos já excluídos do consumo cultural contemporâneo –, mas sobretudo à minha consciência, ao que no passado me parecera correto do meu ponto de vista, minhas convicções, meu pensamento, meu eu em transformação”, diz. “Eu era aquele material? Eu era os sublinhados nos livros, era as folhas repletas de títulos e citações?”. Aldo se relacionava com os livros do mesmo modo como as leitoras adúlteras da modernidade. Anna Kariênina lia romances de aventuras e sentia uma vontade desmedida de viver por si mesma. Emma Bovary queria que seus homens se comportassem como os nobres cavalheiros dos romances açucarados que lia. Segundo as descrições de Laços, Aldo não lia romances, mas textos teóricos e a filosofia crítica produzida no pós-guerra.

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Essas leituras todas ensinaram algumas coisas a Aldo: a instituição do casamento estava em crise, a família agonizava, a fidelidade era um “valor pequeno-burguês” e era “mesquinho” reprimir o desejo. Esse arcabouço teórico impulsionou Aldo, o leitor, a abandonar esposa e filhos e viver uma aventura com uma moça emancipada. Piglia, o teórico argentino da “leitora adúltera e do “celibatário insone”, afirmou que “aquele que lê ficou marcado, sente que sua vida não tem sentido quando comparada à vida dos heróis dos romances e quer chegar à intensidade que encontra na ficção”. Aldo é um parente torto das leitoras adúlteras do século XIX, mas é também herdeiro de outro leitor sonhador, cuja vista e a razão foram embaçadas pelo excesso de leituras: Dom Quixote. O fidalgo castelhano saiu por aí a imitar os heróis dos romances de cavalaria que leu. Aldo saiu de casa para realizar, em sua vida, as ideias defendidas na furiosa literatura crítica daqueles anos de revolução dos costumes.

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Outra suspeita de adultério pesa sobre o romance de Starnone. Quando foi publicado na Itália, em 2014, a imprensa logo apontou semelhanças entre Laços e Dias de abandono, romance de Elena Ferrante, a escritora italiana que não revela sua identidade. Em Dias de abandono, Mário deixa a mulher, Olga, os dois filhos (um menino e uma menina) e o cachorro por Carla, uma moça bem mais jovem. Há algumas diferenças entre os dois romances. O livro de Ferrante é narrado por Olga e descreve de modo brutal o luto da esposa abandonada. A ação de Dias de abandono se passa em Turim, não em Nápoles ou Roma. Mário não abandona a família por causa de suas leituras, mas porque é tomado por um “vazio de sentido”. A verdadeira leitora da casa era Olga, uma aspirante a escritora que abandonou os sonhos de glória literária para cuidar da casa, do marido, dos filhos.

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As comparações entre os romances de Starnone e Ferrante não se limitaram ao tema do adultério, assaz comum na literatura. Laços foi recebido como mais uma peça do quebra-cabeça que é Elena Ferrante. Starnone já foi acusado de ser Ferrante. Um time de físicos e matemáticos da Universidade de Roma recorreu a um software especial para analisar os livros da escritora sem face e concluiu ser “altamente provável” que Starnone fosse o verdadeiro autor deles. Ele, é claro, sempre negou. No ano passado, uma reportagem assinada pelo jornalista italiano Claudio Gatti afirmou que por trás do pseudônimo que estampa as capas da festejada Tetralogia napolitana estaria a pena da tradutora Anita Raja – mulher de Starnone.

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Ferrante (ou Raja), é claro, não se manifestou sobre as semelhanças entre Laços e Dias de abandono. Nem se sabe se dar voz ao marido mau-caráter do livro de sua mulher é considerado um tipo de adultério. Starnone não tem a escrita arrebatadora de Ferrante, que faz com que o leitor sofra na própria carne as dores da mulher abandonada, mas é hábil em jogar com as diferentes vozes que narram o romance para revelar as faces sombrias de cada um dos personagens. Laços, enfim, é um romance primoroso, capaz de justificar as noites insones de um celibatário ou botar ideias erradas na cabeça de uma mulher entediada.








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