Cultura

Diários de Ricardo Piglia são notas de leituras de um escritor aprendiz

Diários de Ricardo Piglia são notas de leituras de um escritor aprendiz

Ricardo Piglia escreveu 327 diários. Decidiu publicá-los como se fossem de
Emilio Renzi. Renzi é seu alter ego, mas também é ele mesmo

RUAN DE SOUSA GABRIEL
22/11/2017 - 08h00 - Atualizado 22/11/2017 10h01
Ricardo Piglia (Foto: Jorge Silva/Reuters. Ilustrações: Zé Otávio)

Aos 3 anos de idade, intrigado com a figura de seu avô sentado numa poltrona de couro com “os olhos fixos num misterioso objeto retangular”, o pequeno Emilio Renzi resolveu imitá-lo. Sacou um livro azul da biblioteca, foi até a porta da rua, sentou-se na soleira e abriu o volume para fingir que lia. De repente, um homem que passava por ali se inclinou para avisar ao menino que o livro estava de ponta-cabeça. Renzi sempre suspeitou que aquele homem fosse Jorge Luis Borges, o mítico escritor argentino. Borges costumava passar o verão ali em Adrogué, a cidadezinha nos arredores de Buenos Aires onde vivia a família Renzi. “Só mesmo o velho Borges para fazer essa advertência a uma criança de 3 anos, não é?”, dizia Renzi.

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Pavese (Foto: Ilustrações: Zé Otávio)

Essa curiosa cena de leitura é narrada logo nas primeiras páginas de Anos de formação: os diários de Emilio Renzi (Todavia, 384 páginas, R$ 74,90), uma compilação das aventuras e leituras juvenis de Renzi. O verdadeiro autor dos diários é Ricardo Piglia, um dos mais renomados escritores argentinos, morto em janeiro, aos 75 anos. Renzi é uma mistura de personagem e alter ego de Piglia, cujo nome completo era Ricardo Emilio Piglia Renzi. Piglia decidiu ser escritor e começou a fazer anotações num diário aos 16 anos, quando a família se exilou em Mar del Plata, no litoral argentino. O pai, um médico de província, era um fervoroso partidário do presidente Juan Domingo Perón e passou quase um ano na cadeia depois do golpe militar que derrubou o caudilho da Presidência em 1955. No final de 1957, acuado e com medo de uma nova prisão, resolveu mudar a família de Adrogué para Mar del Plata.

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Quem é quem (Foto: Época )

Piglia nunca abandonou os diários. Ao longo da vida,preencheu 327 cadernos de capa preta, da marca Congreso, com memórias, anotações de leitura e rascunhos que depois se desenvolveriam em contos, ensaios e romances. Em seus últimos anos, aposentado das aulas na Universidade Princeton, nos Estados Unidos, e diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica (ELA), dedicou-se a editar seus diários. Primeiro, cogitou publicar uma simples transcrição de seus cadernos; depois, pensou em dividi-los em séries temáticas. No fim, preferiu editar suas memórias como se fossem de Renzi, seu velho duplo. Renzi já havia prestado outros favores generosos a Piglia, como narrar boa parte de Respiração artificial, o romance publicado em 1980 que o consagrou como uma das prosas mais potentes e originais da literatura latino-americana. Os diários de Renzi foram divididos em três volumes: Anos de formação, que se estende de 1957 a 1967 e acaba de aportar nas livrarias brasileiras, Los años felices, de 1968 a 1975, e Un día en la vida, de 1976 a 1982, que permanecem inéditos em português. A Todavia pretende publicar os outros volumes e promete Los años felices para 2019.

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Borges (Foto: Ilustrações: Zé Otávio)

Renzi habita um espaço entre a ficção e a vida, entre a letra e o real. Por isso, ele cabe tão bem nas páginas de um diário, um formato licencioso, que permite que a realidade seja descrita – e lida – como ficção. Esse espaço entre a letra e a vida também é morada de outra figura que fascinava Piglia: o leitor. Num dos ensaios de O último leitor, livro que é uma espécie de história imaginária da leitura, Piglia afirma que “sempre existe algo de inquietante, ao mesmo tempo estranho e familiar, na imagem concentrada de alguém que lê”. O leitor é aquele sujeito isolado, um pouco alheio ao real, que divide a sua solidão com o autor e vive em comunhão com ele, por meio das páginas coabitadas por ambos. Nos seis ensaios que compõem o livro, Piglia busca na literatura essas imagens concentradas de gente que lê e, a partir delas, descreve alguns tipos de leitor, como a “adúltera”, a mulher entediada que tenta preencher a própria vida com as aventuras que lê em romances açucarados, e o “celibatário insone”, que lê como quem tem um mistério a desvendar nos sentidos ocultos das palavras. Anos de formação está cheio de cenas de leitura que permitem lê-lo como o diário de leituras de Piglia (ou Renzi).

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A leitura aparece primeiro como uma forma de imitação e de socialização. Quando o pequeno Renzi finge que lê para imitar o avô, ele expressa o desejo de também fazer parte daquele mundo misterioso, onde as pessoas mantêm os olhos fixos em objetos retangulares, como se estivessem imersas em outra realidade. O avô de Renzi, outro Emilio, é um narrador. Ele lutou na Itália durante a Primeira Guerra Mundial. Foi ferido em combate e afastado para um trabalho burocrático: separar os pertences e as cartas dos soldados mortos e enviá-los às suas famílias – Bartleby, o escriturário da novela de Herman Melville, desempenhava uma função parecida no correio americano. O vovô Renzi extraviou boa parte dessas cartas para a Argentina e, décadas depois, empregou seu neto adolescente para organizar esse sinistro espólio de guerra. Renzi recebia um salário do avô para cavoucar aquelas cartas mortas e ordená-las, como um leitor que tenta dar algum sentido às palavras impressas numa página. Ele percebeu que o avô costumava narrar suas memórias de guerra em pequenos fragmentos muito vívidos, mas sempre incompletos. “São como estilhaços, flashes luminosos, perfeitos, sem ilação”, escreveu Renzi. “É assim que se deve narrar.”

Fiódor Dostoiévski (Foto: Ilustrações: Zé Otávio)

Aos 16 anos, graças a outro livro de capa azul, como aquele da biblioteca do avô, Renzi ingressou de vez num mundo onde a realidade é medida pela régua da ficção. Dessa vez, convidado por uma mulher. Elena, colega de escola, perguntou o que ele estava lendo, e Renzi respondeu: “A peste, de [Albert] Camus”. Era mentira. Ele não lia “nada de significativo desde o tempo do livro de ponta-cabeça”, mas não podia desapontar uma moça bonita e culta como Elena. Ela pediu o livro emprestado e Renzi, para manter a mentira, transformou-se num leitor. Leu o livro numa noite. “Acabara de descobrir a literatura não levado pelo livro, mas por esse modo febril de ler avidamente com a intenção de dizer algo a alguém sobre o que tinha lido”, escreveu. A leitura noturna de A peste foi uma intervenção direta da literatura na vida de Renzi: ele leu para saber o que dizer, como agir, o que esperar. Camus, que levava jeito com as mulheres, ajudou Renzi a seduzir Elena. O casal de leitores tentou manter um namoro por correspondência quando ele se mudou para Mar del Plata, ainda que as greves dos Correios atrapalhassem um pouco o romance. Piglia chamava de “visionário” esse leitor “que lê para saber como viver”, como se só enxergasse a realidade pelas lentes da ficção. “O sentido da literatura não é comunicar um significado objetivo, mas criar as condições de um conhecimento da experiência do real”, escreveu Renzi.

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Ficção e realidade vão se misturando cada vez mais na vida de Renzi. Ele escreve seus diários como quem escreve romance. Seu envolvimento com Lucía, uma moça que cursou algumas disciplinas com ele na faculdade, é narrado como se fosse literatura. O romance de Renzi e Lucía se desenvolve à medida que avança a leitura de O grande Gatsby, o livro que eles leem na aula. “Quando Gatsby faz a festa e convida Nick, eu já a acompanhava [Lucía] até a rodoviária porque ela morava em City Bell [bairro da cidade de La Plata]”, escreve
Renzi. Para falar de seu caso amoroso, ele busca uma referência temporal que só existe na literatura. Não diz que estavam em 1961 ou que Arturo Frondizi ocupava a Presidência da Argentina, mas alude a acontecimentos do romance que lia à época, como se a festa de Gatsby e seus passeios com Lucía coincidissem no tempo. Não importa que o livro de F. Scott Fitzgerald seja uma obra de ficção publicada em 1925.

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O fim do romance também é marcado por uma interferência da literatura. Quando acompanha Lucía até a rodoviária pela última vez, Renzi avista um mendigo loiro, esquálido, “uma espécie de Raskólnikov juntando dinheiro para comprar um machado”. Raskólnikov é o estudante perturbado que mata a velha usurária em Crime e castigo, romance de Dostoiévski. A atmosfera sombria e rude dos livros de Dostoiévski volta a pesar sobre Renzi quando ele percebe que seu relacionamento com Inés, sua namorada nos anos pós-faculdade, aproxima-se do fim. Ele encontra, por acaso, dentro de um livro, a foto de um antigo namorado de Inés e é tomado por uma estranha obsessão pelo passado da amante. “Sinto que um fato mínimo [uma fotografia de um rapaz idiota fingindo jogar basquete] é insuportável porque estou lendo Dostoiévski e observo tudo aquilo que vivo sob a ótica exacerbada e delirante de seus romances”, escreve Renzi, aos 24 anos, “a idade de Raskólnikov”.

Godard (Foto: Ilustrações: Zé Otávio)

Piglia dizia que uma das maiores representações modernas da figura do leitor é o detetive particular, o solteirão esquisito e insone, como Auguste Dupin, o personagem de Edgar Allan Poe que esclarece os assassinatos da Rua Morgue depois de fazer uma sofisticada análise das declarações das testemunhas transcritas nos jornais. Nos diários, Renzi encarna o “leitor detetive” ao investigar os livros dos escritores que admira para descobrir como são construídos esses textos. O detetive Renzi – e ele realmente se envolve em tramas detetivescas nos romances de Piglia – substitui a pergunta “quem matou?” por “como narrar?” e analisa as obras de James Joyce, William Faulkner, Ernest Hemingway e outros prosadores para entender como eles narram e como trabalham a temporalidade em seus textos. “O narrador deve ser obscuro ou distante? Obscuro: Dostô, Faulkner; distante: Hemingway, Camus”, escreve Renzi. Os narradores de Hemingway e Camus, diz ele, tendem ao presente, contam os fatos enquanto acontecem e não emitem opiniões. Renzi parece tentar imitá-los – como, na infância, imitava seu avô leitor. Poucas páginas depois dessas considerações sobre a técnica de Camus e Hemingway, lemos “O nadador”, um conto do próprio Renzi, narrado quase todo no presente.

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Renzi (ou Piglia) se tornou ele próprio um narrador talentoso, capaz de dar lições desaforadas até a um escritor monumental como Borges. Num encontro com o velho escritor, o abusado Renzi diz: “Sabe, Borges, que eu vejo um problema no final de ‘A forma da espada’?”. “A forma da espada”, um dos contos mais famosos de Borges, é narrado por um homem cujo rosto é atravessado por “uma cicatriz rancorosa”. Ele narra a história de Vincent Moon, um assassino traidor que, em combate, tem a face marcada por uma espada curva. O leitor reconhece a cicatriz e percebe que o narrador e o traidor são a mesma pessoa. Mas Borges encerra o conto com uma explicação: “Eu sou Vincent Moon, agora me despreze”, revela o narrador. “O senhor não acha que essa explicação está sobrando? Na minha opinião, é desnecessária”, diz Renzi, insinuando que o mestre da narrativa argentina havia errado a mão. Borges, “compassivo e cruel” diante daquele jovem leitor-escritor, responde: “Ah, o senhor também escreve contos”. Renzi jamais esclareceu se sua crítica malandra ao velho escritor foi apenas uma vingança por aquele dia em que Borges atrapalhou sua leitura de ponta-cabeça.








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