Cultura

Fernanda Torres: A liberal e o cortejo de horrores

Fernanda Torres: A liberal e o cortejo de horrores

Preocupada com a ascensão de um conservadorismo reacionário, Fernanda Torres publica romance sobre o teatro e a lembrança de uma cultura mais libertária

RUAN DE SOUSA GABRIEL
10/11/2017 - 16h24 - Atualizado 10/11/2017 16h24
Fernanda Torres ,atriz e escritora (Foto:  Gabriel Rinaldi/ÉPOCA)

Outro dia, Fernanda Torres teve uma epifania: “Meu Deus, será que eu sou um daqueles romanos que viviam ali perto de Pompeia e foram soterrados pelo Vesúvio?”, disse a atriz e escritora, de 52 anos, numa conversa com ÉPOCA em seu apartamento paulistano. Fernanda articula um discurso elétrico com uma dicção impecável e um leve acento carioca – ela também faz boas imitações dos sotaques mineiro e argentino, como a reportagem pôde comprovar. Quem a ouve falar, fica com a impressão de que o discurso e o pensamento são uma coisa só, como se as palavras fossem uma tradução imediata do que se passa na cabeça dela. Às vezes, o raciocínio é mais rápido que a linguagem. Frases permanecem inacabadas, o silêncio se estende por longos segundos e algumas referências soam incompreensíveis ao ouvinte, como essa história de se sentir como um habitante de Pompeia surpreendido pela fúria vulcânica. Mas Fernanda explica e cita até bibliografia: A virada: o nascimento do mundo moderno, do crítico literário americano Stephen Greenblatt.

  

A virada narra como o bibliófilo toscano Poggio Bracciolini descobriu uma cópia do poema Da natureza, do filósofo romano Lucrécio, ao vasculhar a biblioteca de um mosteiro germânico em 1417. Da natureza é um poema didático, um resumo da filosofia do grego Epicuro (341-270 a.C.): o Universo é composto de átomos e os deuses não se preocupam com o destino dos mortais; os homens, portanto, não devem temer a morte, mas dedicar-se à busca do conhecimento e ao cultivo do prazer. No século XVIII, exploradores descobriram uma biblioteca epicurista numa casa de veraneio em Herculano, um balneário próximo a Pompeia. Tudo petrificado. A lava que arrasou toda a Pompeia no ano 79 ajudou a preservar aquela biblioteca, onde foram recuperados fragmentos de Da natureza. A biblioteca epicurista que resistiu à fúria vulcânica é um símbolo daquele último momento de liberdade e paixão intelectual antes de uma sucessão de desgraças: a degeneração do Império Romano, as invasões bárbaras e as sombras da Idade Média, que esconderam a filosofia greco-­romana em mosteiros escuros, longe dos olhos do povo. “Todo o conhecimento foi para os monastérios. Ninguém mais sabia ler, ninguém mais sabia o que era cultura! Demorou 1.000 anos...”, diz Fernanda, um pouco teatral, como se surpreendesse com o desenrolar da história.  

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Fernanda se lembra do Rio de Janeiro do final dos anos 1970 como uma espécie de jardim epicurista, onde uma contracultura libertária ocupava as praias e os teatros. Era o tempo do “desbunde”: das ruínas da ditadura militar, emergia uma cultura de liberdade que rejeitava a caretice da esquerda soviética e aproveitava as conquistas da revolução sexual. “A minha geração experimentou uma liberdade incomum. Quando acordei para o mundo, a ditadura estava morrendo e a revolução dos costumes estava feita. A gente viu o fim da Guerra Fria, a volta dos exilados... Eu vivi isso”, diz. “Essa liberdade é rara. Às vezes, eu acho que o normal é isso aqui, a arte vilanizada, esse pensamento (move as mãos imitando um cabresto)...” Dessa suspeita vem a metáfora emprestada da Antiguidade: nestes tempos bicudos, em que discursos reacionários atacam a cultura com uma fúria vulcânica, Fernanda se sente como aqueles cidadãos romanos que passeavam pelos jardins epicuristas antes da erupção do Vesúvio.

"A glória e seu cortejo de horrores" - Fernanda Torres (Companhia das Letras, 216 páginas, R$ 44,90) (Foto: Divulgação)

Fernanda preserva um pouco da cultura libertária setentista em seus livros. Em 2015, ela publicou Fim, um romance que narra as mortes de cinco velhinhos safados que aprontaram todas no Rio de Janeiro dos anos 1970. Fim vendeu mais de 200 mil exemplares. Neste mês, Fernanda lança seu segundo romance, A glória e seu cortejo de horrores (Companhia das Letras, 216 páginas, R$ 44,90), que conta as glórias passadas e o horror presente de Mario Cardoso, um ator carioca, sessentão e decadente. O novo livro chega às livrarias com uma tiragem robusta de 50 mil exemplares. A glória e seu cortejo de horrores narra as peripécias de Mario – do desbunde alegre às novelas que contam histórias bíblicas com efeitos especiais hollywoodianos – e as mudanças culturais do país nas últimas décadas. “Os anos 1970 voltam sem controle nos livros. Acho que é porque, hoje, adulta, eu reflito sobre esse mundo que conheci criança”, diz Fernanda. “Também queria falar sobre como era o teatro antes, quando eu era jovem. Talvez por isso eu resgate essa época. O tea­tro tinha uma potência capaz de mudar a vida da gente.”

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"Meu Astrov tomou de assalto o teatro tupiniquim. Cinco meses depois daquele encontro, eu havia me transformado num deus da ribalta, sex symbol da contracultura, arquétipo do homem ideal, Dionísio redivivo (...). Eu vestia um terno amarfanhado, que lembrava o que Raquel havia me dado, e que usei durante todo o período de ensaio. Trazia uma bolsa de couro a tiracolo. A rotina física duplicou o meu tórax, os gritos primais dos laboratórios na selva intensificaram o baixo da voz. Virei o urso doce e violento (...). Meu Lear ainda é consequência daquele Astrov, da vontade de repeti-lo."
Trecho do livro A glória e seu cortejo de horrores

Mario ingressou nas artes cênicas mais pelo prazer de encantar plateias com seu corpanzil e sua voz de veludo do que por amor ao teatro. Ele narra a primeira – e mais longa – parte do romance. Num vaivém frenético, fala do horror do presente – carreira agonizante, mãe demente – e das glórias fantasmagóricas do passado – o sucesso nos palcos e na TV, as estripulias sexuais, os arrependimentos. O Mario narrador não consegue mais bons papéis na TV e tenta se reinventar com uma montagem de O rei Lear, uma tragédia de Shakespeare. O resultado é realmente trágico: insultos da crítica, público escasso e problemas com a Justiça – o Ministério da Cultura encontra irregularidades na prestação de contas. O que resta a Mario são um comercial de papel higiênico e um personagem numa novela bíblica.

Sérgio Britto,Paulo Goulart e Fernanda Torres em cena de O rei Lear,em 1983 (Foto:  Arquivo Agência O Globo)

Mas nem sempre foi assim. Nos anos 1960, Mario, um rapazola da Zona Sul carioca, ingressa num grupo de teatro liderado por um defensor da revolução socialista. Os cariocas viajam para o Nordeste para alimentar sertanejos miseráveis com a dramaturgia proletária de Bertolt Brecht, esperançosos  de que os famélicos da terra peguem em armas contra o latifúndio. Mario gosta de atuar para os peões, mas não tem muita paciência com o esquerdismo. Ele não crê na revolução. É um cínico que se embriaga com o som da própria voz. A experiência no sertão o ajuda a perceber que ele não tem talento para ser revolucionário, mas pode ganhar a vida como ator. Ele se entrega ao teatro e sua vida muda. Começa soltando a voz no coro de Hair, o musical hippie que contou com a participação (e a nudez) de Sônia Braga, no livro e na vida real. O próprio Mario vira bicho-grilo, meio telúrico. Depois de Hair, vai parar numa ousada montagem de Tio Vânia, do russo Anton Tchekhov. Interpreta Astrov, um médico provinciano. O leitor acompanha a transformação de Mario em Astrov. Ele deixa de ser o moço mimado da Zona Sul e se transforma no “urso doce e violento” de Tchekhov. Astrov empresta a Mario uma dignidade que, sozinho, ele não tem. Passa o resto da carreira – e da vida – à procura dessa dignidade. “Meu Lear ainda é consequência daquele Astrov, da vontade de repeti-lo”, diz.

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“Os personagens agem sobre a gente. É incrível a sensação de dar conta de um personagem que é maior do que você, descolar-se de si mesmo e se transformar naquele alguém que era um estranho no papel. É maravilhoso virar alguém”, diz Fernanda, que atuou em O rei Lear e em A gaivota, outra peça de Tchekhov. “Eu tenho vários Astrovs. A Carula, de A marvada carne, foi um turning point para mim, dar conta daquela caipira.” Astrov transformou Mario em sex symbol da contracultura e abriu-lhe as portas para o sucesso e as delícias dos anos 1970. De personagem em personagem, Mario vai mudando. Ele fica ainda mais cafajeste quando interpreta Vado, o cafetão de A navalha na carne, de Plínio Marcos. Mais desencantado depois de viver o melancólico jagunço Riobaldo numa fracassada adaptação cinematográfica de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. A televisão o transforma num sem-número de coisas, como galã e vilão arruinado. “Não é que o ator vira o personagem, é que o personagem sempre leva o ator para um outro lugar: físico, mental, social”, diz Fernanda

Adilson Barros e Fernanda Torres em A marvada carne,filme de 1985 (Foto:  Reprodução)

Mario levou Fernanda a um outro lugar social: o presídio. A segunda parte do romance é narrada na terceira pessoa e se passa numa cadeia. É a seção mais política do livro, com descrições do cotidiano de um presídio apinhado de homens negros e pardos. Para escrever, Fernanda fez o que os atores chamam de “laboratório”: submergir numa situação para coletar informações e compor um personagem. Acompanhada do deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL), ela visitou o presídio Evaristo de Moraes, no Rio. “Não seria capaz de escrever se não tivesse ido lá”, diz Fernanda, que conseguiu que a Companhia das Letras doasse livros para a biblioteca da penitenciária. Os personagens literários que Fernanda criou – os cinco velhos safados de Fim e Mario – também a levaram a outro lugar de fala: o masculino. “O narrador masculino me afasta do personagem. Se fosse uma atriz, seria muito colado em mim ou na mamãe (a atriz Fernanda Montenegro)”, diz. Ela confessa que razões políticas influenciaram sua escolha por um narrador macho. “No livro,  sou muito irônica, dura. Hoje é mais complicada a ironia com a mulher, porque puxa outras questões. Com o homem, não. Descrever com ironia e cinismo a decadência de um homem é como chutar cachorro morto (risos).”

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Fernanda brinca que tirou um “zero bem gordo” em feminismo. No ano passado, ela publicou um texto na imprensa em que criticava a “vitimização do discurso feminista”. Pegou mal. Grupos feministas a acusaram de escrever do ponto de vista de uma mulher branca e de classe média, protegida dos abusos que sofrem as mulheres menos privilegiadas. Fernanda publicou um mea culpa e aceitou as críticas: ela havia, sim, escrito do ponto de vista de uma mulher formada na Zona Sul do Rio, naqueles anos 1970 que foram a glória de machões como Mario Cardoso. “Eu escrevi aquele texto de um lugar de exceção. Demorei a entender que não é a hora de falar da exceção. Há um faro de feminismo no ar e algo importante sairá daí”, diz. “Eu cresci numa época em que todo filme tinha mulher pelada, em que posar pelada para uma revista machista era considerado sinônimo de liberdade feminina. É melhor hoje!”

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Mas nem tudo é melhor hoje. Fernanda considera uma ameaça real a ascensão de um reacionarismo vulcânico que exige censura às artes e elegeu os museus e os teatros como lugares inóspitos para crianças. “É uma mistura de liberalismo econômico com a ideia de um Estado que regule a vida de todo mundo para manter a ordem e a moral, chamando todo o resto de esquerda, de Cuba. Eu não quero morar em Cuba! Eu sempre me vi como uma liberal”, afirma. “Eu cresci me sentindo livre. Não é do desbunde dos anos 1970 que eu sinto falta, até porque eu sou uma menina bastante comportada, mas de uma certa cultura em que as pessoas falavam de um lugar menos tacanho. Eu sinto falta de quando as pessoas podiam ser o que elas são sem serem agredidas”, diz. Se o reacionarismo vulcânico vencer a guerra cultural, os livros de Fernanda podem se tornar algo como aqueles poemas epicuristas encontrados na biblioteca de Herculano: o testemunho de um tempo mais livre, quando buscar o conhecimento e cultivar o prazer não era pecado.








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