Cultura

A ascensão dos selvagens

A ascensão dos selvagens

Em 1998, cânone da literatura latino-americana cedeu espaço ao boêmio maldito

RUAN DE SOUSA GABRIEL
31/05/2018 - 08h01 - Atualizado 31/05/2018 08h01
O escritor chileno Roberto Bolaño (1953-2003) apostava na vanguarda que se confundia com a boemia e a iconoclastia (Foto: CORTESIA CIA DAS LETRAS/© PILAR AYMERICH/ ALBUM/ FOTOARENA/C. 1990)

Na segunda entrada de seu diário — que é, na verdade, a primeira parte do romance Os detetives selvagens, a obra-prima do escritor chileno Roberto Bolaño —, o jovem poeta Juan García Madero disse que nenhum poeta mexicano entendia de métrica clássica. “O único poeta mexicano que sabe de cor essas coisas é Octavio Paz (nosso grande inimigo).” Octavio Paz, poeta e ensaísta mexicano que levou o Prêmio Nobel de Literatura em 1990, era um tesouro nacional, autor de joias literárias como O labirinto da solidão, uma investigação da alma latino-americana, espremida entre o atraso e a modernidade. Mas Roberto Bolaño não gostava dele. Os infrarrealistas, um grupo de poetas malditos do qual Bolaño participou nos anos 1970 na Cidade do México, negavam os méritos de Paz com uma teimosia e um ódio quase infantis.

Bolaño e seus amigos eram poetas vagabundos e radicais, boêmios sem nenhum tostão que apostavam numa poesia de vanguarda que se confundiria com a própria vida. Paz era um poeta canônico. Rompera com o socialismo, fora diplomata, viajara o mundo a impressionar plateias. Enquanto os infrarrealistas roubavam livros, Paz mantinha uma vida de luxos graças a sua caneta erudita e competente. Odiá-lo era lutar pela poesia marginal. E eles lutavam mesmo. Uma vez, a turba infrarrealista invadiu um convescote literário e derrubou um copo de bebida na camisa elegante do poeta nacional.

O escritor mexicano Octavio Paz (1914-1998) era diplomata, formalista e intelectual; exemplo do artista canônico latino (Foto: MICHELE BANCILHON/AFP PHOTO/1980)

Paz morreu no mesmo ano em que Bolaño publicou Os detetives selvagens, romance que o consagrou como uma das vozes mais potentes da nova literatura latino-americana: 1998. Bolaño não era de respeitar os mortos. Paz é mencionado um sem-número de vezes no livro — e quase nunca de forma elogiosa. Paz aparece como um velho um pouco excêntrico, que teme ser vítima do terrorismo da extrema-esquerda e pede à secretária para levá-lo para passear num parque decadente, onde ela teme ser assaltada. “A mim nem o presidente da República assalta”, rebate o poeta, cônscio de ser uma inabalável instituição cultural mexicana. No parque, ele proseia com um dos protagonistas do romance, Ulises Lima, um poeta jovem e rebelde.

A literatura de Paz representou a aposta latino-americana na modernidade literária e política, nas vanguardas modernistas e também em projetos revolucionários que prometiam livrar a América Latina do subdesenvolvimento. Esses projetos literário-políticos, porém, esbarraram nas contradições do continente, que ingressou na modernidade arrastando consigo o cadáver insepulto do atraso. Bolaño, por sua vez, pertence a uma geração posterior, marcada pelos fracassos dos sonhos igualitários dos anos 1960 e pelas ditaduras militares. A violência e o espectro do autoritarismo rondam seus romances, nos quais não há lugar para utopias políticas ou poéticas.

Uma lenda conta que, no início dos anos 1970, Bolaño acompanhou um amigo a uma conferência de Paz. Caiu no sono enquanto o poeta anunciava o fim de uma modernidade e o nascimento de outra: “O tempo do selvagem, (...) do perseguido; o tempo do homem torturado pela máquina social”. Essa nova modernidade estava ali, sonolenta e selvagem, naquela plateia mexicana.








especiais