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Pascal Bruckner: "A prostituição deve ser vista como um serviço público"

Pascal Bruckner: "A prostituição deve ser vista como um serviço público"

O escritor francês critica as feministas puritanas e a lei aprovada em seu país, que criminaliza a prostituição

GUILHERME EVELIN
05/02/2014 - 07h00 - Atualizado 06/02/2014 17h08
LIBERAL O ensaísta francês Pascal Bruckner. Para ele, a mais velha profissão  do mundo cumpre uma função social (Foto: Eric Fougere/Corbis/Latin Stock)

Premiado ensaísta, Pascal Bruckner foi um dos signatários do manifesto dos  “343 safados” que causou furor, no ano passado, na França. No manifesto, intelectuais protestavam contra a lei que torna a prostituição um crime, aprovada em dezembro pela Assembleia Nacional francesa. Seu lema, “Touche pas ma pute” (“Não toquem na minha p...”), um trocadilho com um slogan antirracista, não era a única provocação. A petição dos “safados” fazia alusão a outro manifesto célebre – o das “343 vadias”, escrito por Simone de Beauvoir e publicado em 1971 pela revista Le Nouvel Observateur. Nele, mulheres assumiam publicamente ter feito aborto, então um crime na França, e reclamavam o direito de dispor de seus corpos. Nesta entrevista, Bruckner fala da polêmica e de seu livro Fracassou o casamento por amor?.

ÉPOCA – Não é machismo dizer: “Não toquem na minha p...”?
Pascal Bruckner
– Essa lei representa uma nova estigmatização das prostitutas e uma diabolização dos clientes. Com esse manifesto, tocamos no sacrossanto tesouro da esquerda oficial. Estamos de retorno a tempos muito puritanos. A esquerda, que era porta-voz da liberdade, se tornou porta-voz de uma certa repressão. É uma esquerda moral, punitiva, autoritária, que gostaria de enquadrar os comportamentos dos indivíduos e decretar: essa é a boa sexualidade, essa é a má sexualidade. Se a prostituição permanece, a despeito da liberação sexual, é porque o mercado do amor é extremamente desigual e não admite os velhos, os feios, os pobres, os doentes. A prostituição serve justamente de válvula de escape para os excluídos do sistema, aqueles que não têm acesso aos encantamentos do amor oficial. Os autores dessa lei fazem da prostituição uma abominação, a expressão perversa de um machismo que não ousa dizer seu nome, enquanto ela deveria ser vista como um serviço público.

ÉPOCA – A prostituição exerce então uma função social?
Bruckner –
Estou certo disso. Nas ruas, onde estão as prostitutas, a maior parte dos clientes são imigrantes, que não têm dinheiro, têm poucas relações, têm poucas chances de seduzir as mulheres francesas e cuja vida sexual é reduzida à possibilidade de virar clientes pagantes. Para os homens e mulheres que se prostituem, a prostituição é uma forma de fechar as contas no fim de mês. Para os clientes, é uma forma de encontrar um pouco de atenção e de intimidade. Isso sem falar da assistência sexual às pessoas portadoras de deficiências, que é autorizada nos Países Baixos, mas proibida na França. Há uma grande hipocrisia nessa lei, porque, na França, um dos maiores proxenetas é o Estado, que cobra impostos das moças que trabalham. Mas isso ninguém ousa dizer.

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ÉPOCA – Não foi muita provocação com as feministas fazer uma ironia com o  manifesto das 343 vadias, a favor do aborto e escrito por Simone de Beauvoir?
Bruckner –
Simone de Beauvoir é a grande figura tutelar do feminismo no mundo. De uma forma filosófica, ela o fundou. Ela foi uma pioneira, era muito inteligente e é infinitamente maior que a maioria de suas herdeiras. Há muitas feministas que estão contra a lei também. O feminismo não é mais um bloco como era há alguns anos. Há um feminismo diferencialista à americana, há um feminismo universalista à francesa, há um feminismo puritano, há um feminismo libertário, há um feminismo do bem-estar.

"As mulheres podem ser tão cruéis e abomináveis
como os homens"

ÉPOCA – As feministas que criticaram o manifesto são puritanas?
Bruckner –
Sim, elas são tradicionalistas. Há um feminismo idealista em excesso, que consiste em dizer que toda a maldade da humanidade está do lado dos homens. As mulheres seriam seres angelicais, pacíficos, simpáticos, que simplesmente obedecem às ordens do coração e do amor. Evidentemente, isso é uma bobagem absoluta. As mulheres têm suas impulsões sexuais, exatamente como os homens. A mulher não é melhor do que o homem. Ela deve ser tratada como uma igual, mas não como melhor, porque as mulheres podem ser tão cruéis e abomináveis como os homens.

ÉPOCA – Seu último livro publicado no Brasil lembra que os progressistas do século XIX sonhavam que era possível acabar com a prostituição, graças ao casamento por amor romântico. Por que eles falharam nesse propósito?
Bruckner –
Os progressistas diziam que o casamento burguês era fundado na desigualdade entre homem e mulher e conduzia ao adultério, à prostituição, aos filhos ilegítimos. Para mudá-lo, era preciso reconciliá-lo com o amor. A esperança investida no casamento romântico dizia que, finalmente, iríamos realizar a verdadeira monogamia, menos fundada na obrigação do que na livre escolha. E que o amor iria entrar no casamento como um aliado que cimentaria relações antes arranjadas pela família ou pelas conveniências. Essa esperança  aparece nos textos do século XVIII e do século XIX e passa a ser verdadeiramente aplicada nos anos 1960 e 1970. Não teve os resultados desejados. O casamento perdeu a metade de seus efetivos – e o divórcio aumentou. Ou seja, pretendeu-se aprisionar o amor dentro dos laços do casamento. E o que ocorreu de fato foi que o casamento anterior afundou e o amor continua a ser essa paixão que nós não controlamos. O amor é sempre um filho da boemia, como canta Carmen (na ópera de Georges Bizet).

ÉPOCA – O senhor diz que as culturas ocidentais caíram num círculo vicioso ao estimular a busca incessante por  felicidade e o casamento por amor, que fogem ao controle dos homens. Tentar institucionalizar o amor sempre será um fracasso?
Bruckner –
A dificuldade hoje é que o amor foi liberado de todas as correntes, de todos os entraves. Nunca se tornou tão difícil viver as histórias amorosas. Uma das razões é que vivemos num mundo romântico – e não porque vivemos numa era consumista ou em que o amor é líquido. Nós nos tornamos muito mais amorosos do amor.

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ÉPOCA –  O aumento do número de divórcios é um sinal dessa força do amor na sociedade moderna?
Bruckner –
Há dois critérios para o casamento: o desejo e a paixão. Hoje, quando eles desaparecem, isso leva quase  automaticamente  à dissolução do casamento. Antes, as pessoas permaneciam juntas, em nome das conveniências, da moral, para preservar os filhos. Hoje, os homens e as mulheres – sobretudo as mulheres – não hesitam em divorciar-se, desde que eles não se entendem mais. Ou seja, a intolerância ao tédio e ao desamor se tornou muito forte.

ÉPOCA –  Como a busca pelo casamento romântico se associa com o que o senhor chamou de “euforia perpétua”, o dever da felicidade na sociedade moderna?
Bruckner –
Erigimos o amor e a felicidade como valores absolutos e nos desesperamos de não vivê-los absolutamente. No fundo, há uma desmesura nas sociedades ocidentais no desejo de ser feliz e de ser apaixonadamente amoroso. A felicidade e o amor são dois valores do cristianismo. É intrigante observar como em nossas sociedades modernas, largamente descristianizadas, sobretudo na Europa, os valores do cristianismo continuam a ser dominantes. Há uma bela expressão de G.K. Chesterton (escritor inglês do começo do século XX): “O mundo moderno é repleto de antigas virtudes cristãs, tornadas loucas”. Isso é totalmente verdade no que se refere ao amor e à felicidade.

ÉPOCA –  Esses excessos na busca da felicidade e do amor são características da vida moderna nas sociedades ocidentais?
Bruckner –
Uma das grandes conquistas das sociedades modernas é o direito de realização enquanto indivíduo. Há então uma ideia de que não temos o direito de fracassar nessa manifestação individual. Essa desmesura, que antes se aplicava aos projetos políticos, às expedições militares, hoje se aplica ao desenvolvimento pessoal. Gostaríamos de sentir o fogo da paixão e a satisfação de uma felicidade permanente – e frequentemente fracassamos nessa tentativa.

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ÉPOCA –  É por causa disso que as pessoas são mais angustiadas do que eram no passado?
Bruckner –
Hoje, somos bem mais angustiados por uma razão simples: é porque a liberdade é angustiante. Quando os homens viviam sob a tradição da religião, a vida era bem mais simples, porque era suficiente se conformar às ordens transmitidas. Hoje, a grande dificuldade do homem contemporâneo é que ele próprio deve criar seus próprios valores. Ele se tornou seu único guia na existência. Essa angústia, ao mesmo tempo, também é entusiasmante, porque ninguém gostaria de voltar a viver em sociedades patriarcais que nos parecem, com justiça, sociedades monstruosamente opressivas.

ÉPOCA –  Temos mais liberdade, mas também mais angústias. Como viver com essa contradição?
Bruckner –
É preciso, notadamente na vida amorosa, aceitar viver com as próprias imperfeições e com as imperfeições dos outros. Não podemos pedir ao outro para tornar-se um herói ou uma heroína em tempo completo. Quando aceitamos nossas imperfeições podemos chegar a uma espécie de harmonia com o outro.

ÉPOCA –  Na vida moderna, é possível atingir esse equilíbrio?
Bruckner –
É possível, depois de certo tempo, a partir de certa idade. Há uma sabedoria do amor. Na felicidade amorosa, somos divididos entre o desejo de estar bem com a pessoa que nós temos e o desejo de ir além. Principalmente nas grandes cidades, somos submetidos a numerosas tentações. A vida amorosa vive no dilema entre a satisfação com o que vivemos e a nostalgia do que poderíamos viver, se conhecêssemos uma existência diferente.








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