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Benjamin Moser: "As cidades brasileiras são lugares de medo"

Benjamin Moser: "As cidades brasileiras são lugares de medo"

O biógrafo de Clarice Lispector diz que a arquitetura moderna brasileira é usada para apagar a história do país

GUILHERME EVELIN
08/01/2015 - 10h00 - Atualizado 08/01/2015 10h00
PROVOCADOR Benjamin Moser, numa foto de 2013. Para ele, a arquitetura modernista brasileira é quase uma agressão ao passado (Foto: Rob Huibers/Hollandse Hoogte)

O escritor americano Benjamin Moser, de 38 anos, nasceu no Texas, mora na Holanda, mas é quase recifense. Sua ligação com o Recife começou porque o primeiro marido de sua avó era pernambucano. O envolvimento com a cidade aumentou na pesquisa de sua biografia sobre Clarice Lispector, a escritora nascida na Ucrânia e criada no Recife. Agora culmina com o lançamento de um provocativo ensaio de 30 páginas, em que critica a arquitetura modernista brasileira, Oscar Niemeyer e Brasília. Cemitério da esperança foi lançado na forma de e-book, com renda destinada ao movimento Ocupe Estelita, que surgiu em reação à construção de um megaempreendimento imobiliário numa região histórica do Recife.

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ÉPOCA – O senhor faz uma crítica severa a Brasília como um símbolo das cidades brasileiras. O que Brasília simboliza?
Benjamin Moser –
Em Brasília, ficou cristalizada em mim uma sensação que tive em outros lugares do Brasil. As cidades modernas do Brasil são muitas vezes lugares de medo, de abandono, onde a pessoa não sabe em que lugar está. Não me refiro ao crime, a favelas, a essas coisas. A própria arquitetura dá uma sensação de que você é muito pequeno. Esmaga, dá a sensação de você não importa na paisagem. Como num templo enorme de alguma religião estrangeira: está lá para adorar algum deus que não sabe nem quem é. Em Brasília, senti isso muito: “Quem sou aqui?”, “O que estou fazendo aqui?”. É uma sensação que não se tem noutras cidades da América Latina – e não se tem nas cidades antigas do próprio Brasil. Apesar de o Brasil ter uma herança arquitetônica muito boa, ela ficou perdida. Você percebe uma ruptura que não se sente, por exemplo, na música ou na literatura. É como um ponto final: “Vamos deixar de ser o que éramos, vamos acabar com nosso passado”.

ÉPOCA – O senhor teve essa mesma sensação de abandono em todas as grandes cidades brasileiras?
Moser –
Me refiro às cidades modernas. Venho a São Paulo há 20 anos. Passei meses e meses a fio lá, mesmo assim nunca sei onde estou. Fico perdido quase ao atravessar a rua. É uma sensação que não conheço em nenhum outro lugar, e viajo quase sem parar. O contraste com as cidades antigas fica muito palpável. Sempre fiquei aliviado ao chegar ao Rio, Recife ou a Salvador. Porque, de repente, você está no meio da arquitetura brasileira antiga, linda e simpática. Você sabe onde está: é uma escala humana. Em Brasília, apesar de sempre saber onde está, há um estranhamento maior. Fiquei me perguntando: como o homem virou uma figura num plano, um entre milhões? Quando a escala ficou perdida? Não é uma questão explicada pelo crescimento das cidades ou porque os tempos mudaram. Isso também ocorreu na Europa e nos Estados Unidos. Há muita coisa feia também na Europa. Queria entender por que, no Brasil, o modernismo parece tão apavorante. Assustador.

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ÉPOCA – Em seu ensaio, a resposta a essa pergunta é a política. Qual a conexão entre política e arquitetura no Brasil?
Moser –
Sempre há uma explicação política, porque nenhum indivíduo tem dinheiro para fazer obras tão grandes. Só o Estado. Brasília não criou Brasília. Brasília é uma manifestação das elites nacionais, surgida no Rio de Janeiro. Surge a pergunta: com uma capital dessas, uma coisa esplêndida que seria o orgulho de qualquer país, para que essa vontade de destruí-la e mudar para o fim do mundo? É preciso haver uma explicação ideológica. A história do Rio é uma história de destruição da própria cidade, de uma forma que não vejo noutros lugares. Porque o Rio era um lugar perigoso para os governantes. Some quantas revoltas ferozes, quase todos os anos, desde o começo da República: Revolta da Vacina, Revolta da Chibata, por aí vai. A resposta das autoridades, a partir da Guerra de Canudos, quando se criaram as primeiras favelas, era sempre no sentido de afastar o povo. Teve essa característica de “sanear” o Rio e empurrar as pessoas para cada vez mais longe. Era uma ideia de modernização que consistia em afastar o povo. Brasília é um clímax dessa ideia: uma cidade sem povo.

ÉPOCA – A ideia é manter o povo à distância?
Moser –
Sim. Se você ler a história do Rio de Janeiro, o povo efetivamente era uma ameaça à elite. Era um lugar perigoso para os governantes. No Palácio do Catete, você estava muito mais vulnerável que no Palácio do Planalto. Havia uma vontade de empurrar o povo para mais longe, de criar um Brasil fantasia, em que esse povo fervente não é uma ameaça. Isso não é exclusividade do Rio ou de Brasília. Li recentemente sobre uma grande seca no Ceará, em que o povo seguiu para a capital do Estado, onde se acabara de construir uma Fortaleza modernosa. Chegou lá todo o Ceará faminto, pobre, cheio de doenças. Isso não podia ficar na bela avenida que fizeram. Em vez de dar de comer a essa gente, botaram em prisões, espécies de campo de concentração para sertanejos, fora da cidade, para o povo da capital não os ver. É isso que quero dizer: Brasília não criou Brasília. Queira-se ou não, o povo é o país.

"A arquitetura, no Brasil, é usada para empurrar, para cada vez mais longe, o povo"

ÉPOCA – As elites brasileiras têm vergonha do povo brasileiro?
Moser –
Vamos falar claro: ninguém gosta do próprio povo. Moro na Holanda. Quando os holandeses, de férias na França, encontram outros holandeses, comendo demais, gritando, com roupa feia, os holandeses que se acham mais chiques ficam apavorados! Americano na Europa é a mesma coisa. Brasileiro na Flórida fica fazendo comentários sobre os outros brasileiros. Não é isso. O Brasil, historicamente, achou uma solução perversa: usaram a arquitetura, o urbanismo, para empurrar para cada vez mais longe o povo. Claro que, no Brasil, como nos Estados Unidos e nos outros países onde houve escravidão, “povo” também implica uma questão racial. A casa-grande não quer ver a senzala.

ÉPOCA – Como o senhor vê o fato de que o maior representante dessa arquitetura modernista foi Oscar Niemeyer, um comunista?
Moser –
Acho Niemeyer muito interessante. Não há uma biografia dele séria, crítica. Espero que apareça, porque há um culto a Niemeyer forte no Brasil. Venho recebendo comentários muito agressivos no Facebook, coisas do tipo: “Você é gringo, não entende nada”. Talvez seja verdade! Mas vejo que não querem levar Niemeyer a sério. Querem ficar com esse medalhão no selo postal, um ícone acima das críticas. Quem o admira deve responder a esse problema muito sério: ele ser stalinista. O que significa apoiar quem matou 50 milhões de pessoas? Duas possibilidades: ou você é cruel e acha a vida alheia um detalhe, ou é burro e não sabe o que está falando. Imaginemos que Gilberto Freyre tivesse falado em favor de Hitler e dos nazistas. Ele teria deixado de existir, como Gustavo Barroso ou Plínio Salgado (intelectuais que participaram do movimento integralista no Brasil), e todos os outros que apoiaram o nazismo. É importante o Brasil olhar seriamente para seu passado. Os alemães têm pesquisado a questão do nazismo na obra de Martin Heidegger (filósofo). É ou não é importante ele ter sido nazista? Há muitas respostas. Não digo que seja uma questão simples. Mas é um processo normal numa democracia saudável. Com Niemeyer, essa segregação que vemos em Brasília e esse apoio dele aos ditadores pelo mundo, há um vínculo entre essas ideias e a obra dele? Parece inegável, mas quem discordar que venha com argumentos, documentos. Seria importante para o Brasil.

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ÉPOCA – Por que o senhor apoia o movimento Ocupe Estelita?
Moser –
Porque eles falam em prol de algo que também defendo: uma cidade mista, que se respeite e repense seu modelo. Essas coisas são problemas nacionais. No Recife, começa um movimento em pequena escala, relevante para todo o país. Não há cidade que se salve. O New York Times deu uma reportagem em que Milton Hatoum (escritor) diz que não reconheceu Manaus quando voltou de São Paulo. Porque toda a cidade antiga, dos anos 1950 e 1960, foi totalmente destruída. Então meu papel não é só dizer: “Que shopping feio. Que centro histórico abandonado”. É entender de onde veio esse abandono, essa feiura, esse desprezo pelo próprio país. 

ÉPOCA – O senhor é o “último romântico”?
Moser –
Olhe, sou muito americano. Não sou de jeito nenhum contra o dinheiro. O Brasil, como todo país, precisa de construtoras de casas e prédios, e pontes, e tudo mais. Quem faz isso tem todo o direito a lucrar com isso. Mas não há somente uma maneira de lucrar. É possível muito bem renovar uma área histórica, vender apartamentos e ganhar bem com isso. Pense em Nova York, Paris ou Londres. Os bairros hoje em dia mais chiques, muitas vezes, estavam abandonados. Posso garantir que Diane Von Furstenberg não ficou pobre renovando um bairro de Nova York. No Brasil, eles seriam vistos como cortiços, e os bairros teriam sido destruídos, teriam instalado algum espigão horrível. Com a beleza, também se pode lucrar. Isso é romântico? Pode ser, mas há muitos exemplos disso pelo mundo. De cidades sustentáveis, bonitas, onde você não fica preso nesse trânsito monstruoso, onde o cidadão não fica esmagado. O Ocupe Estelita tenta trazer essas alternativas para o Recife e para o Brasil. 








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