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A estratégia de Tancredo Neves pela democracia

A estratégia de Tancredo Neves pela democracia

O jornalista Plínio Fraga, que prepara uma biografia sobre o político morto há 30 anos, mostra como foram as articulações na aproximação com os militares para a redemocratização do país

PLÍNIO FRAGA *
14/03/2015 - 10h00 - Atualizado 14/03/2015 17h44

A aproximação de Tancredo Neves com o governo militar foi uma estratégia para se mostrar confiável. Há etapas claras em sua execução, que demorou anos:

1980: TANCREDO FRACASSOU NA PRIMEIRA TENTATIVA DE DOBRAR FIGUEIREDO
O primeiro encontro a sós de Tancredo com o presidente João Baptista Figueiredo ocorreu em 1980, quando criava o Partido Popular. Era uma agremiação moderada. Apesar do nome, reunia a elite política desconfortável com a continuidade da ditadura. Ou porque cansou de apoiá-la ou porque cansou de combatê-la. O PP queria ser o partido da transição negociada. Tancredo jantou com o presidente como forma de convencê-lo a não instituir o chamado voto vinculado. O eleitor tinha de escolher os candidatos de um mesmo partido nos mais diferentes postos em disputa. Fracassou nesta tentativa, o que inviabilizou a construção do novo partido. O voto vinculado foi regulamentado para as eleições de 1982. Tancredo, em resposta, fundiu o PP ao PMDB, engrossando a oposição da qual sangrara parte dos seus quadros.

1983: PRIMEIRA SONDAGEM DE TANCREDO A MINISTRO DO EXÉRCITO OCORREU ANTES DO QUE SE IMAGINA
Tancredo Neves havia passado a virada de 1982 para 1983 no apartamento de José e Lúcia Pedroso. José Pedroso, que comemorava seus 69 anos no dia 1º, era um antigo líder do PSD, partido de Tancredo quando começou a carreira política. Lúcia Pedroso celebrizou-se como o grande amor de Juscelino Kubitschek, de quem foi amante entre 1958 e 1976. Tancredo conversou com o ministro do Exército, Walter Pires, na biblioteca da casa de Lúcia e José Pedroso. Algo informal, tomando uísque. O casal Pedroso morava no sexto andar do edifício Golden Gate (av. Atlântica, 2016, em Copacabana). Tancredo no oitavo. Nas festas, sempre passava por lá em algum momento. José Pedroso era amigo do Walter Pires do Jockey Club. Havia uma mesa em que se reuniam os criadores, tomando uísque. Amavam as corridas de cavalo. Alguns militares como o general Walter Pires e o almirante Alfredo Karam frequentavam essa mesa. Daí a presença de Pires na casa dos Pedroso. A conversa de Tancredo e Pires foi amena, nada que azedasse o clima do regabofe, que durou até o raiar do dia. Com farto café-da-manhã, encerrou-se o que se definiu num jornal como "a noite perfeita".           

INÍCIO DE 1984: ALMOÇO SECRETO COM FIGUEIREDO COM A SUCESSÃO EM PAUTA
O segundo encontro de Tancredo com Figueiredo ocorreu no começo de 1984. Tancredo disse a Figueiredo que deveria buscar o consenso entre situação e oposição para sucedê-lo. Mais do que sugerir nomes, mostrou-se ao presidente como interlocutor indicado, mesmo que assim não o tenha dito. Foi um encontro num sábado à tarde. Figueiredo via em Tancredo uma transição civilizada, definiu ex-ministro que os aproximou.

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JULHO DE 1984: A QUENTINHA DO HOMEM DO DINHEIRO ENTREGOU A REUNIÃO
Em 18 de julho, quando os ventos políticos pareciam incontornavelmente a favor da oposição, o poderoso ministro do Planejamento, Delfim Netto, foi se encontrar com Tancredo. A reunião entre os dois foi testemunhada pelo empresário da construção civil Sebastião Cantídio Drumond. Também foi alvo do Serviço Nacional de Informações (SNI) que, confirmou a realização do encontro ao inquirir um dos filhos do empreiteiro. Mas só acabou revelada ao público por um garçom. Dono da construtora Semenge, Drumond ofereceu almoço a Tancredo e Delfim, em seu apartamento na Praia do Flamengo, na zona sul do Rio. O candidato do PMDB chegou perseguido por um grupo de jornalistas. O ministro do Planejamento chegara incógnito uma hora antes. Ninguém sabia que lá estava até que um garçom saiu do prédio. Foi apontado como sendo funcionário de Drumond. Questionado para onde se dirigia e por quê, revelou mais do que a presença de um gourmand exigente: "Vou buscar a quentinha do dr. Delfim", disse o garçom para se livrar dos repórteres. Delfim não se recorda do cardápio especial que desejara naquele dia. Mas nunca esqueceu uma frase que Tancredo disse à mesa: "Eu só serei candidato (à Presidência da República) se for contra o doutor Paulo Maluf", narrou Delfim. "Não disputarei com ninguém a não ser com ele. Nós vamos expô-lo à execração pública. É uma pena, mas é o que vai acontecer." Naquele mês de julho, parecia não haver razões para temer a tranquilidade da transição. Os senadores Affonso Camargo e Fernando Henrique Cardoso, próceres tancredistas, chegaram a uma conclusão que era tão engraçada quanto mineira: "A situação do Tancredo é tão boa que dá até para desconfiar".
           
JULHO - SETEMBRO DE 1984: SNI MONITOROU APROXIMAÇÃO DE TANCREDO E GEISEL
“Em 2 de julho de 1984, TAN revelava a disposição de manter um encontro com o ex-presidente EG. Tal encontro teria como mediadores o secretário da Receita Federal, FD, e o ex-ministro MHS. Este encarregado por FD de marcar a audiência de TAN com o ex-presidente. MHS estaria demonstrando simpatia pela candidatura de TAN à Presidência." Foi assim que despacho secreto do SNI antecipou os movimentos de Tancredo Neves, que desejava se encontrar com Ernesto Geisel, valendo-se da intermediação de Francisco Dornelles e Mario Henrique Simonsen.

Dois meses depois da espionagem do SNI, Tancredo se encontrou com Geisel. Em 4 de setembro de 1984,  Tancredo chegou à Candelária, no centro do Rio, para visitar a sede da Norquisa. A empresa de petroquímica era o local em que dava expediente o ex-presidente Ernesto Geisel. Uma frase atribuída a ele na véspera do encontro permite imaginar o grau de distanciamento que havia entre os dois. “Nu, Tancredo seria um ótimo aspirante à sucessão. Mas me preocupa vê-lo vestido com o paletó de Ulysses Guimarães, as calças de Lula, a camisa de Roberto Freire, as cuecas de Jarbas Vasconcelos e metido nos sapatos de Miguel Arraes.” Geisel e Tancredo sentaram-se a sós por uma hora e dez minutos. Tancredo ouviu de Geisel as razões pelas quais decidiu não apoiar Maluf. Ponderou que também não apoiaria a candidatura do PMDB, por reunir setores que achava impossível conviver. O caso mais notável era do deputado Ulysses Guimarães que havia comparado, em 1975, Geisel ao ditador de Uganda, Idi Amin Dada. Tancredo mostrou-se inclinado a tratar para que tais feridas cicatrizassem. Havia um frenesi de repórteres na calçada da avenida Presidente Vargas atrás de notícias do encontro. Geisel comentou que Tancredo devia ficar feliz, porque era bem tratado pelos jornalistas, algo que não experimentara quando presidente. Para amenizar o final da conversa, Tancredo recorreu à política mineira para ensinar um truque de como absorver ataques da imprensa. Durante o governo de Silviano Brando em Minas Gerais (1898-1902), o parlamentar Joaquim Cândido da Costa Senna, seu adversário político, era ridicularizado por um dos jornais do governador. Volta e meia, Costa Senna virava Costa Seca nas páginas do jornal. Amigos que cobravam resposta dura ao jornal de Brandão, ouviram um lamento conformado. “Está bom assim. Tenho dois sobrenomes, e eles só estão trocando o segundo. Já imaginaram se trocarem também o primeiro?", encerrou Costa Senna.Tancredo registrou o espírito da conversa com Geisel:  “Tenho a impressão de que ele tem constrangimentos de toda natureza, de ordem moral, em me apoiar”.

NOVEMBRO de 1984: O ARRANJO FINAL COM PIRES
Em outubro de 1984, Tancredo manteve outro encontro com Pires. A conversa foi narrada ao Alto Comando militar pelo próprio ministro, semanas depois do encontro. Tancredo deu ao general garantia de que em seu governo não haveria lugar para revanchismo nem para atitudes demagógicas contra as Forças Armadas. Como prova, ofereceu a Pires a oportunidade de permanecer no cargo. Pires tergiversou na resposta. Tinha promessa do presidente Figueiredo de nomeá-lo embaixador em Portugal. Tancredo assegurou que, eleito, honraria a decisão de Figueiredo, se assim fosse o desejo do ministro. O encontro que sacramentou o apoio de Pires a Tancredo ocorreu em 23 de novembro, uma sexta-feira. No apartamento vizinho ao de um de seus filhos, Pires narrou o afastamento do general Newton Cruz do Comando Militar do Planalto. Caíra o último bastião contra Tancredo entre os militares. Cruz deixaria de desfilar em portentosos cavalos e comandar tropas para ter à sua frente apenas a mesa da vice-chefia do Departamento Geral de Pessoal.

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Especial Tancredo Neves (Foto: ÉPOCA)


* Plínio Franga é ex-editor e repórter especial de Folha de S.Paulo, O Globo e Jornal do Brasil, pós-graduado em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Ele prepara biografia sobre Tancredo Neves a ser lançada no final do ano pela editora Objetiva.








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