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Abertura para Cuba é teste da Doutrina Obama

Abertura para Cuba é teste da Doutrina Obama

Na Cúpula das Américas, novas diretrizes da política externa dos EUA estarão em julgamento

10/04/2015 - 23h11 - Atualizado 23/12/2015 18h11
Doutrina Obama - O Analista  (Foto: época )

Neste fim de semana, no Panamá, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, passa pelo primeiro grande teste de sua ousada ação de dezembro último com o objetivo de restabelecer relações diplomáticas com Cuba. Na sétima edição da Cúpula das Américas, a última com a sua presença pessoal e a primeira com a participação de Cuba, única das 35 nações do continente excluída nas seis cúpulas anteriores, tem início a avaliação histórica de sua ação a fim de recompor as relações hemisféricas. A “doutrina Obama”, nunca formalmente estruturada como tal, mas intuída a partir dos discursos dos primeiros anos de sua administração e agora explicitada pelas ações nos seus dois anos finais, está em julgamento.

Barack Obama estava à frente do governo dos EUA fazia oito meses e 20 dias quando recebeu a notícia de que ganhara o prêmio Nobel da Paz. A honraria certamente não se justificava pelo que fizera até então pelas relações internacionais. Provavelmente era mais um anúncio da expectativa mundial sobre o que poderia vir a fazer nos anos seguintes. Mas o presidente americano não foi capaz de grandes realizações na sua política externa nos seis primeiros anos de governo, engolfado pelas dificuldades políticas domésticas, alvo de uma posição forte e radical. A derrota nas eleições legislativas de 2014, que colocou as duas casas do Congresso nas mãos dos republicanos, parecia decretar o seu fim como líder mundial.

Mas, ao contrário, parece que o resultado das urnas fez com que Obama se liberasse para ousar. Com energia e audácia, passou a agir tanto no plano interno, mas principalmente no externo, por meio de decretos e ações que independem do Congresso controlado pela oposição. Desde novembro, ele conseguiu um surpreendente acordo com a China sobre mudanças climáticas, isolou a Rússia depois da crise na Ucrânia, anunciou o degelo das relações com Cuba, diminuiu o número de prisioneiros detidos em Guantánamo para 127, visitou Mianmar para reforçar o difícil processo de abertura política daquele país, acelerou as negociações para os tratados de livre comércio com a Europa e com a Ásia do Pacífico, fechou o acordo-quadro com o Irã sobre o programa nuclear iraniano. No caso de Mianmar, Cuba e Irã, Obama tem agido para acabar com longos períodos de isolamento entre os EUA e essas três nações. O de Cuba é o que dura mais tempo: 54 anos, completados no dia 3 de janeiro passado.

Em entrevista ao The New York Times na semana passada, o presidente usou argumentos pragmáticos para justificar sua decisão: “É um país pequeno. Ele não ameaça nossos interesses básicos de segurança. Não há por que não testar uma proposta de engajamento. E se acontecer de não chegarmos aos resultados esperados, sempre podemos ajustar nossa política”. Ou seja: a doutrina Obama propugna por engajamento e diálogo, mas sem abrir mão de métodos de discussão tradicionais se forem considerados necessários, como tem feito no Iraque.

A abertura em relação a Cuba não será tão rápida como a repercussão intensa do anúncio conjunto de Havana e Washington em 17 de dezembro deu a entender porque muitos dos nós que Obama terá de desatar até ser possível estabelecer relações diplomáticas estão amparados por leis que precisam ser alteradas pelo Congresso sob controle da oposição. É o contrário da situação do acordo com o Irã, sobre qual o Legislativo tem pouca possibilidade de agir porque muitas das sanções contra Teerã que estão em vigor foram tomadas por meio de decretos do Executivo, que podem ser revertidos por ação exclusiva do Executivo. Para alterar leis, no entanto, Obama precisa da aprovação do Congresso.

Por exemplo, a Lei Helms-Burton, de 1969, ainda em vigor, obriga o Executivo a consultar o Legislativo se quiser levantar o embargo imposto a Cuba em 1962. Essa lei foi muito amenizada por sucessivos “waivers” de suas provisões mais extremadas, obtidos pelas administrações de Bill Clinton e de George W. Bush. No começo de seu governo, Obama parecia decidido a cumprir de modo rápido seu compromisso de campanha de normalizar as relações com Cuba, o que lhe teria sido menos complicado na época, pois tinha a maioria na Câmara e no Senado e o respaldo de uma enorme vitória eleitoral na comunidade hispano-americana em 2008 (67% contra 31% para John McCain).

“Não há melhores embaixadores da liberdade do que os cubano-americanos”, disse ele ao anunciar em 13 de abril de 2009 que viagens de cubano-americanos não seriam mais controladas (até então, cada pessoa só podia ir para Cuba a cada três anos) e a remessa de dinheiro por eles para Cuba não teria mais limites. Na assembleia geral da Organização dos Estados Americanos, no dia 3 de junho de 2009, em San Pedro Sula (Honduras), os EUA se juntaram aos demais países na decisão de eliminar sem exigir nenhum tipo de contrapartida de Havana a decisão que a entidade tomara em 1962 de suspender Cuba da organização, embora a então secretária de Estado Hillary Clinton tivesse por dias tentado convencer seus colegas a impor condições para apoiar a medida.

Nos anos posteriores, no entanto, o entusiasmo de Obama pelo tema de Cuba pareceu ter arrefecido, talvez em função das enormes dificuldades que teve para fazer avançar seus programas sociais domésticos, em especial o de saúde, e do receio de atiçar ainda mais os setores mais conservadores da sociedade americana. A comunidade cubano-americana nos EUA não é numericamente muito expressiva (cerca de 1,2 milhão de pessoas, quase inteiramente concentradas nos Estados da Flórida e Nova Jersey), mas é politicamente importante, com diversos representantes na Câmara, quase todos muito conservadores e com grande poder de retórica. O simbolismo do “perigo comunista” a 90 milhas do território americano ainda é significativo. Obama ainda tinha uma eleição a disputar, e a Flórida nunca foi um Estado seguro para ele e os democratas (foi lá que George W. Bush assegurou sua vitória contra Al Gore em 2000). Obama venceu na Flórida tanto em 2008 quanto em 2012.

A partir de 2013, sem mais nenhum pleito a disputar pessoalmente, o presidente voltou a dar sinais de que Cuba voltara ao seu radar de prioridades. A subsecretária de Estado para o hemisfério ocidental, Roberta Jacobson, por exemplo, disse em maio daquele ano que a abordagem do governo para o continente seria “pragmática” e que “antigas divisões e categoria ideológicas” seriam abandonadas por “não serem mais úteis”. E, em novembro, John Kerry, o secretário de Estado, afirmou na OEA que “a era da Doutrina Monroe terminou”. Ao longo de 2014, ocorreram no Canadá as negociações secretas entre EUA e Cuba com a intermediação do Vaticano, que redundaram no anúncio de 17 de dezembro de que os dois governos estavam engajados no processo de restabelecer relações diplomáticas plenas.

Pesquisa do Pew Research Center divulgada em janeiro deste ano revela de 63% dos americanos apoiam esse restabelecimento e 66% aprovam o fim do embargo a Cuba. Outra pesquisa, da Bendixen & Amandi, feita em março, mostra que 51% dos cubano-americanos concordam com a decisão de procurar o restabelecimento total de relações entre EUA e Cuba.

Mesmo assim, muitos importantes líderes da oposição republicana mantêm um discurso crítico feroz contra a iniciativa de Obama e podem causar atrasos para a consecução de todas as medidas necessárias tanto para o fim do embargo quanto para as plenas relações. Por exemplo, a retirada de Cuba da lista de países considerados como patrocinadores do terrorismo ainda não estava formalizada na véspera da partida de Obama de Washington para a Jamaica, onde fez escala antes de chegar ao Panamá para a Cúpula, porque se procurava uma linguagem capaz de ser digerida pelo Congresso, que tem de ratificar a medida.

Obama também dá seus tiros no próprio pé. Ele encontrou no Panamá um ambiente bem menos favorável do que se antecipava porque uma ordem executiva de seu governo divulgada em 9 de março declarou que a Venezuela constitui uma ameaça à segurança nacional americana. Isso criou animosidade de Caracas e de governos da região alinhados na ideologia bolivariana, em contraste com a reação positiva que Obama esperava colher devido à sua iniciativa com relação a Cuba. O Departamento de Estado voltou atrás nessa posição sobre a Venezuela nesta semana, mas o clima já está anuviado para o presidente, ao menos com alguns países.

Guantánamo continua sendo outro empecilho para a plena realização dos planos anunciados em 17 de dezembro. O fechamento da prisão era um dos pontos de honra para Obama durante a campanha, e ele ainda não o concretizou. Nesse caso, mais americanos (49%) são contrários à medida do que favoráveis (42%), segundo pesquisa do Pew Research Center. Aqui, também, Obama tem tentado agir de maneira pragmática. Seu plano é deixar tão poucos detentos na prisão (seu objetivo é reduzi-los a 60) que todos concordarão que não fará mais sentido econômico manter o aparato para tão pouca gente.

Não é só do lado americano que há obstáculos para serem superados até que Havana e Washington voltem a ter relações normais. O governo de Raúl Castro também tem suas dificuldades internas para concretizar os planos anunciados em 17 de dezembro, assim como Teerã enfrenta suas questões domésticas para finalizar o acordo nuclear com os EUA.
De qualquer maneira, para Barack Obama, a Cúpula das Américas do Panamá é mais uma etapa no seu esforço para deixar um legado marcante nas relações internacionais e para justificar o Nobel que recebeu em confiança antes de ter tido tempo para fazer algo merecedor dele.

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