Ideias

O Brasil, com afeição e simpatia

O Brasil, com afeição e simpatia

Dois livros de história tentam mostrar como a diversidade social, os conflitos e o gênio individual criaram o país

KENNETH MAXWELL
10/05/2015 - 10h00 - Atualizado 10/05/2015 10h00
A CHEGADA Os portugueses aportam na costa brasileira. Segundo  A conquista do Brasil (abaixo), a população indígena não se adaptou  ao trabalho nas plantações (Foto: The Art Archive/Museu Historico Nacional Rio de Janeiro Brazil/Gianni Dagli Orti)


 

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A CHEGADA Os portugueses aportam na costa brasileira. Segundo  A conquista do Brasil (abaixo), a população indígena não se adaptou  ao trabalho nas plantações (Foto: The Art Archive/Museu Historico Nacional Rio de Janeiro Brazil/Gianni Dagli Orti)

Este é um momento pertinente para olhar a história do Brasil. Muitos brasileiros estão desanimados com o impasse na política, bravos com a persistência e a onipresença da corrupção, preocupados com a falta de visão de seus líderes políticos, confusos com a relação ambígua entre o enriquecimento privado e o interesse público, apreensivos com o status e o futuro de sua cultura civil. O que aconteceu com a terra da capoeira, do candomblé, do samba, do futebol e das praias tropicais de areia quente? É como se ainda valesse um antigo ditado: “Quem rouba pouco é ladrão e quem rouba muito é barão”. Existe uma tendência em momentos como este de culpar o passado do Brasil por todas essas inquietações. Mas isso é justo? Seria correto?

Há dois novos livros sobre o Brasil sendo lançados. O primeiro, Brasil: uma biografia, de duas importantes historiadoras brasileiras, Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Starling, e o segundo, de um proeminente jornalista, Thales Guaracy, A conquista do Brasil (1500-1600). Não podiam ser mais oportunos. Ambos tratam de maneira bastante sincera, e muitas vezes em detalhes minuciosos, dos dilemas fundamentais da formação histórica do Brasil. Ambos o fazem dando especial atenção ao papel de indivíduos brasileiros, homens e mulheres, ao longo do tempo, e em toda a sua rica diversidade social, econômica, racial e cultural.

Nenhum dos dois livros é uma história “convencional”. Não escondem a verdade crua da longa persistência do tráfico negreiro e da escravidão no Brasil, nem subestimam de maneira alguma a história e a persistência da exclusão social e da desigualdade racial, nem a história de revoltas e contestação. Ainda assim, ambos abrem novas perspectivas. E os dois avançam bastante ao explicar a história marcante das circunstâncias históricas que fizeram do Brasil o que ele é hoje.  

Thales se concentra no primeiro século, no período entre 1500 e 1600. Ele quer salientar que a imagem da história do Brasil como um país pacífico, tolerante e cordial deve ser balanceada pela verdadeira história de violência, crueldade e sofrimento. Em seu livro, as comunidades ameríndias têm um papel central. Muitas delas, ao longo da costa, prestes a ser exterminadas como consequência da chegada de doenças europeias, asiáticas e africanas, da exploração econômica e da guerra.

Naqueles anos, Portugal estava muito mais interessado nas riquezas da Ásia. A investigação (e exploração) do Brasil era no máximo superficial, deixada nas mãos de indivíduos mercadores em busca da madeira brasileira (por sua tinta) e portugueses excêntricos que se tornaram nativos, como João Ramalho. Porém, a cana-de-açúcar foi introduzida em Pernambuco, e estabeleceram-se os primeiros engenhos de açúcar, usando técnicas aprendidas na Ilha da Madeira e em Cabo Verde. Com isso, os primeiros escravos africanos foram importados para trabalhar nos ricos solos de massapé, onde a cana prosperava e onde a população nativa ameríndia se mostrou particularmente incapaz de se adaptar à rotina de trabalho nas plantações.

Em 1549, o primeiro governador-geral, Tomé de Sousa, fundou a primeira capital do Brasil em Salvador. Com ele, vieram os primeiros missionários jesuítas. O relato de Thales sobre as atividades de Manuel da Nóbrega e José de Anchieta, suas aspirações e suas decepções, é absolutamente fascinante. Assim como seu relato da triste história dos franceses na Baía de Guanabara, suas divisões religiosas internas e eventuais batalhas malsucedidas contra os portugueses e seus aliados ameríndios.

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Lilia Schwarcz e Heloisa Starling também narram essa história em seu livro, muito bem documentado, com uma bibliografia excelente e abrangente e uma linha do tempo cronológica bastante útil. Essa Biografia do Brasil com certeza se tornará o trabalho-padrão sobre a história do país. Elas tratam da história do Brasil até a metade dos anos 1990. Dizem ser muito cedo ainda para lidar com o período de Fernando Henrique Cardoso e Lula, muito menos de Dilma Rousseff. O que é uma pena. O apetite por mais é estimulado por essa maravilhosa pesquisa sobre mais de cinco séculos do passado do Brasil. Mal se pode esperar pelo próximo volume.

A Biografia do Brasil é, em alguns momentos, impiedosa em sua exposição. Quarenta por cento de todos os africanos trazidos à força pelo Atlântico para a América pelos comerciantes de escravos vieram para o Brasil – que, consequentemente, tem a maior população de origem africana fora da Nigéria. Sessenta por cento da população do Brasil é de origem racial mista (pardos) ou negra. O Brasil foi o último país do Hemisfério Ocidental a abolir a escravidão. As autoras contam a história dos assentamentos de escravos fugitivos que emergiram pelo país, e em particular de Palmares, o maior deles, que existiu entre 1612 e 1695, e no seu ápice tinha uma população de 20 mil pessoas. Duzentos anos depois, o grande poeta baiano Castro Alves escreveu sua Saudades de Palmares, em 1870.
 

A GRANDE QUESTÃO Uma jovem senhora  na liteira  carregada por escravos. Brasil: uma biografia (abaixo) é impiedoso em sua exposição (Foto: Instituto Moreira Salles)
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Brasil: Uma biografia  (Foto: Instituto Moreira Salles)

Lilia e Heloisa não se esquivam da desigualdade racial e social crônica do Brasil, e das longas e rígidas restrições ao sufrágio. Em 1910, o Brasil, com uma população de 22 milhões de pessoas, tinha apenas 627 mil eleitores. Em 1920, apenas entre 2,3% e 3,4% da população podia votar. No entanto, isso é colocado em um contexto muito mais amplo e profundo. Do ciclo da cana no fim do século XVI e início do XVII à corrida do ouro e do diamante em Minas Gerais, que dominou o século XVIII. Até a chegada da corte portuguesa fugindo das tropas de Napoleão – primeiro na Bahia, onde os portos foram abertos para o comércio de todas as “nações amigas” (na época, basicamente a Inglaterra), seguida da fundação de uma monarquia tropical no Rio de Janeiro.

Tiradentes, Euclides da Cunha, Lima Barreto, a triste Imperatriz Leopoldina, as peripécias de Dom Pedro I e seu moderado filho Dom Pedro II, que reinou durante muito tempo, os cidadãos eruditos da Semana de Arte Moderna paulista, Sérgio Buarque de Holanda, Chico Buarque de Holanda, e muitos outros estão aqui. Assim como a guerra no Paraguai, que enfraqueceu o Império, e a campanha contra Canudos, que ameaçava o novo regime republicano.

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Após o fim da escravidão, no final do século XIX, imigrantes europeus, italianos, alemães e portugueses, e mais tarde japoneses, vieram para São Paulo e para o sul do Brasil. Seguiram-se a industrialização e o crescimento da cidade de São Paulo. A história da primeira República e a alternância de poder entre São Paulo e Minas Gerais, a chamada República do Café com Leite, um período que as autoras definem como: “Samba, malandragem e muito autoritarismo na gênese do Brasil moderno”. As revoltas militares, a ascensão do comunismo e do integralismo, o Estado Novo de Getúlio Vargas, com sua polícia secreta e empreendimentos culturais, a democracia pós-Segunda Guerra Mundial: um período de “bossa, a democracia e o país desenvolvido”, de acordo com as autoras. O suicídio de Vargas. João Goulart e os anos de governo dos generais. A resistência ao regime militar, e um período incontrolado de torturadores e torturados. O restabelecimento ambíguo da democracia que se seguiu, com suas imprevistas viradas de sorte. A inesperada morte de Tancredo Neves, a ameaça de impeachment a Fernando Collor e a não antecipada sucessão vice-presidencial das presidências de José Sarney e Itamar Franco.

O longo processo de construção de uma cidadania continuou. Novas garantias constitucionais foram decretadas. A polícia federal e os promotores agora têm a habilidade e a independência para agir. Como de fato estão agindo nos atuais escândalos de corrupção. Já se alcançou tanta coisa, apesar dos contratempos e obstáculos, desde o fim do regime militar.

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Lilia e Heloisa dizem em sua introdução: “Uma biografia é a evidência mais elementar de profunda conexão entre as esferas pública e privada: somente quando essas articulações, essas esferas conseguem compor o tecido de uma vida, tornando-a real para sempre. Escrever sobre a vida do nosso país implica questionar os episódios que formam sua trajetória no tempo e ouvir o que eles têm a dizer sobre o mundo e o Brasil em que vivemos – para compreendermos os brasileiros que somos e os que devíamos e poderíamos ter sido”.

Uma coisa é certa. Elas foram extremamente bem-sucedidas em sua missão. Narram uma história complexa e conflituosa com afeição e empatia. Ao mostrar os obstáculos, também mostram quanto o Brasil avançou. As duas escreveram uma história por brasileiras para brasileiros. E também escreveram uma história do Brasil que é leitura essencial para todos nós.

O inglês Kenneth Maxwell é historiador e autor de "A devassa da devassa", entre outros livros








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