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Em crise, a América Latina dá boas-vindas aos americanos e seus investimentos

Em crise, a América Latina dá boas-vindas aos americanos e seus investimentos

A visita de Barack Obama a Cuba e Argentina mostra o declínio do antiamericanismo bolivariano

MARCELO MOURA
03/04/2016 - 10h00 - Atualizado 03/04/2016 12h30
Air Force One pousa em Havana (Foto: Alberto Reyes/Reuters)

"Por mais de meio século, a presença de um presidente americano em Havana seria inimaginável”, disse Barack Obama, um presidente americano em Havana – o primeiro em missão oficial, desde 1928. “Esse é um novo dia.” Uma nova era, poderia acrescentar. Em Cuba por três dias, Obama visitou dissidentes, reuniu-se com o ditador Raúl Castro e fez um discurso transmitido pela televisão estatal cubana em que tratou de enterrar “a última reminiscência da Guerra Fria nas Américas”. “Conheço a história, mas me recuso a ser encurralado por ela”, disse Obama, ao mostrar que está disposto a ampliar os laços entre os dois países. “Nosso trabalho conjunto beneficia não apenas Cuba e os Estados Unidos, mas o hemisfério inteiro”, respondeu Castro.

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Do aeroporto internacional de Havana, o avião presidencial americano Air Force One decolou para o aeroporto internacional de Buenos Aires, na Argentina. Obama foi recebido no tapete vermelho pelo presidente Mauricio Macri. Pediu desculpas pelo apoio dos Estados Unidos ao golpe militar, que completou 40 anos na quinta-feira, dia 24 de março. Sentiu-se tão à vontade que quebrou o protocolo do jantar oficial e dançou tango. “Aqui é sua casa”, disse Macri. “Os ventos são de mudança.”

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Na vez anterior em que pousou na Argentina, 11 anos atrás, o Air Force One enfrentou forte turbulência. O presidente americano George W. Bush foi à Cúpula das Américas, em Mar del Plata, negociar a aprovação da Alca, um tratado de livre-comércio no continente. “Se eu fosse ele, teria juízo pelo menos uma vez e não desafiaria o espírito dos argentinos, que o declaram persona non grata”, disse o então ditador de Cuba, Fidel Castro, ao programa de entrevistas do ex-jogador Diego Maradona. “Alca, Alca, ao c...!”, discursou em um estádio de futebol Hugo Chávez, presidente da Venezuela, ao lado de Evo Morales, candidato à Presidência da Bolívia. O petróleo caro, cotado a cerca de US$ 50 o barril, enriquecia a Venezuela, grande exportadora do produto, e irrigava a ascensão da ala populista da esquerda na América Latina. “Fomos cinco mosqueteiros”, disse Chávez, sobre o grupo de países que ajudou a barrar o acordo da Alca: Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Venezuela. “George W. Bush foi derrotado. Vocês não viram a cara dele quando foi embora?” Eram os ventos bolivarianos que sopravam com força na ocasião.

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Hoje, o furacão bolivariano foi rebaixado ao grau de uma mera tempestade tropical, incapaz de impedir o pouso suave do avião presidencial americano. Com o barril de petróleo cotado a cerca de US$ 30, a Venezuela não consegue mais bancar o populismo nem mesmo dentro de casa. Sucessor de Chávez, Nicolás Maduro perdeu a maioria no Congresso e luta para se manter no cargo. Os venezuelanos sofrem com o racionamento de luz, remédios e produtos de limpeza. Em Havana, o impacto foi menor, mas igualmente sentido. “A Venezuela havia assumido o papel de madrinha de Cuba, que havia sido deixado vago pela União Soviética após o fim da Guerra Fria”, diz Rubens Barbosa, ex-embaixador do Brasil em Washington. “A crise do chavismo tornou os cubanos mais receptivos à missão americana.”

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Em sua visita histórica, Obama levou com ele 40 empresários, interessados em investir na ilha comunista – uma boa razão para Raúl Castro ter escutado, em silêncio, as loas à democracia feitas por Obama no Grande Teatro de Havana. Com 10 milhões de habitantes, Cuba é pequeno como país e diplomaticamente irrelevante, mas representa uma porta de entrada interessante para o mercado do sul dos Estados Unidos. A travessia de 145 quilômetros pelo mar até a Flórida, que antes era feita por cubanos desesperados em balsas improvisadas, poderá ser feita agora por uma linha permanente de ferry boat. A proposta está pronta. Basta os cubanos aceitarem.

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Do ponto de vista ideológico, a visita de Obama a Cuba pode esvaziar o discurso de líderes latino-americanos que encontraram no antiamericanismo pueril um elo – e nos Estados Unidos um culpado usual para suas crises. “O isolamento imposto a Cuba, pelos Estados Unidos, era o exemplo mais recorrente daqueles que acusam os americanos de imperialismo”, diz Barbosa. “O populismo latino-americano vai precisar procurar outro discurso ou finalmente enfrentar as suas limitações.” Num sinal eloquente, Nicolás Maduro desembarcou em Havana dias antes da chegada de Obama, numa tentativa de demarcar terreno. "O que faremos, nos faremos de loucos? Vamos ignorar que há uma estratégia imperial para voltar a dominar a América Latina e o Caribe?", disse Maduro. Foi constrangedoramente ignorado. Ninguém deu muita bola. “Entre 2003 e 2012, a América Latina desfrutou uma das maiores disparadas de preços de commodities em sua história moderna. Exportando de tudo, de grãos de soja a petróleo, governantes latino-americanos tiveram ganhos inesperados, que gastaram em programas sociais raramente bem desenhados. Ninguém poupou para a inevitável tempestade”, escreveu Jorge Castañeda, ex-chanceler do México, no artigo “A morte da esquerda latino-americana”, publicado, na semana passada, pelo jornal The New York Times. Segundo Castañeda, o problema dos governos de esquerda, como o de Maduro, é que “a maré cor-de-rosa recuou”.

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Do ponto de vista econômico, a caravana de Obama pode ser benéfica para os países que, uma década atrás, foram antipáticos a George W. Bush. Ao visitar um país socialista e outro que acaba de tomar um rumo à centro-direita, os Estados Unidos mostram disposição de fazer negócios com quaisquer países da América Latina, sem se importar com a orientação política do governante. Para o governo de Macri, a visita de Obama, depois de 12 anos de relações praticamente congeladas entre Estados Unidos e Argentina, por causa do kirchnerismo, foi praticamente um selo de qualidade para um país carente de confiança e que busca se reinserir na rota dos investimentos internacionais. “É uma pena que só teremos nove meses de governos simultâneos pela frente”, disse Obama para Macri.

Os americanos mostram a disposição de caminhar em bases mais pragmáticas. Eles estão em busca de negócios, sem fazer imposições – dentro da doutrina Obama de construir pontes mediante diálogo e sem ações intervencionistas. “A aproximação com os Estados Unidos abre a possibilidade de investimentos para os países latino-americanos. Eles não estão exigindo alinhamento político”, diz o uruguaio Francisco Panizza, professor da London School of Economics, especializado em América Latina. Se uma década atrás os Estados Unidos eram um parceiro comercial em declínio, perdendo terreno para a China, agora o cenário mudou. A economia chinesa está desacelerando, por causa da opção estratégica de seu governo de criar um mercado consumidor interno. A fome por insumos básicos passou.

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Professor titular de relações internacionais da Faculdade de Economia e Administração (FEA) da USP, Jose Augusto Guilhon Albuquerque diz que, apesar dessa nova postura pragmática, o antiamericanismo deve permanecer como uma bandeira de facções das esquerdas. “Faz tempo que a existência desse discurso não depende de uma postura da Casa Branca”, afirma Guilhon. Em 2009, Obama revogou a suspensão a Cuba na Organização de Estados Americanos (OEA). Na ocasião, os cubanos simplesmente disseram que não queriam entrar no grupo. A diferença é que esse discurso, no atual ciclo, como mostra o novo pragmatismo cubano, tende a cativar cada  vez menos plateias e tende a conviver com estratégias comerciais bem realistas.








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