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Michel Houellebecq: “É um erro associar Trump a Marine Le Pen”

Michel Houellebecq: “É um erro associar Trump a Marine Le Pen”

Em entrevista para ÉPOCA, o mais famoso escritor francês diz que Trump é diferente da líder da extrema-direita da França – e que ele pode se sair bem se abandonar o belicismo

JUREMIR MACHADO
11/11/2016 - 18h41 - Atualizado 15/11/2016 17h42

Nascido na Ilha da Reunião, em 1956, Michel Houellebecq tornou-se conhecido em 1994 com um pequeno romance chamado Extensão do domínio da luta. Nele, a sexualidade é tratada como um “sistema de hierarquia social”. Em 1998, alcançou o sucesso mundial com Partículas elementares. Poeta, ator, cineasta, compositor, romancista e fotógrafo, Houellebecq é um falso tímido. Fala pouco, baixo e lentamente, mas cada frase tende a ser uma bomba. Em 2001, lançou Plataforma, história que termina com um atentado terrorista. Em 2010, venceu o Prêmio Goncourt, considerado o Nobel da literatura francesa, com O mapa e o território. Foi processado por ter classificado o islamismo como “a religião mais idiota de todas”. Em 2015, estava na capa do Charlie Hebdo quando o jornal satírico francês sofreu um atentado praticado por terroristas islâmicos. Era o dia da sessão de autógrafos – que precisou ser cancelada – de Submissão, romance no qual Houellebecq imagina um muçulmano na Presidência da França. Traduzido em mais de 50 países, ele ocupa o lugar de mais famoso e polêmico escritor francês atual. Em 2016, dominou o Palais Tokyo, em Paris, com uma exposição fotográfica louvada pela crítica. Na semana passada, fez uma conferência no ciclo Fronteiras do Pensamento, em Porto Alegre, onde criticou intelectuais franceses famosos como Jean-Paul Sartre, Albert Camus, Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Jacques Lacan e Michel Foucault – para ele, obscuros, vazios e incompreensíveis. Nesta entrevista a ÉPOCA, Houellebecq fala sobre literatura, política, religião, sexo, intelectualidade e, claro, de Donald Trump. Ateu, Houellebecq persevera num paradoxo: sem Deus, a humanidade não tem salvação.

Michel Houellebeq (Foto: Francois Berthier/Contour by Getty Images)


ÉPOCA – Como viu o duelo entre Donald Trump e Hillary Clinton e a vitória do republicano? 
Michel Houellebecq –
Vi como algo enfadonho. Resolvi assistir a um dos debates. Cansei logo. No começo, os golpes baixos, as provocações, os blefes e as alfinetadas de todos os tipos até parecem interessantes. Depois, isso cansa e dá para ver o vazio do espetáculo. Não consegui localizar as ideias, os grandes planos, as propostas diferentes. Achei muita aparência para pouco conteúdo. É claro que cada lado exagera os perigos do outro. A estratégia de atemorizar os eleitores nunca é descartada. Não existe na França um equivalente a Donald Trump. No passado não muito distante, tivemos Bernard Tapie [empresário que foi presidente de clube de futebol e político], que era fanfarrão, exagerava sua fortuna e vivia envolvido em escândalos. Passou. Tapie era desprezado pelos verdadeiros empresários e as ideias dele não eram muito precisas. Tudo nele remete a Trump. É um erro associar Trump a Marine Le Pen [política francesa de extrema-direita]. São diferentes. Não sei o que vai resultar dessa eleição. Por um lado, se Trump, como ele disse, deixar de lado a Otan e investir menos em guerras, será ótimo. Perigoso era George Bush, que provocou uma tragédia no Iraque. Barack Obama já foi mais parcimonioso. Trump será perigoso se retomar o comportamento tradicionalmente belicista dos republicanos. Se não fizer isso, poderá não se sair mal.

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ÉPOCA – A política o fascina tanto quanto a literatura?
Houellebecq –
A política pode ser matéria da literatura. Eu a usei em Submissão. Meu interesse por ela, no entanto, é bastante variável. Há épocas em que acompanho muito o noticiário político pela televisão. Não sou muito de me dedicar aos jornais. Na França, os jornais estão sendo abandonados pelos leitores. Em outros momentos, porém, deixo de lado a política. Sou como todo mundo. A política tem um lado folhetinesco de jogos de poder, ambições, ascensões e quedas. Isso acaba nos chamando a atenção ou nos cansando. Li sobre a destituição da presidente do Brasil. Não consegui entender o que aconteceu. Parei de ler. O que me interessa mesmo na política é seu aspecto tático, o jogo, as estratégias, a disputa, não o conteúdo.

ÉPOCA – Suas posições sobre religião criam polêmica. O islamismo radical continua a ser a grande ameaça para o Ocidente?
Houellebecq –
Certamente. Os atentados aconteceram e vão continuar a acontecer. Quando uma religião, com setores extremistas, é minoritária num lugar, surge a possibilidade da ruptura. Normalmente, as religiões ajudam a organizar as sociedades. No caso do islamismo radical, ocorre o contrário, uma desestruturação. E é só o começo.

“As religiões organizam as sociedades. No caso do islamismo radical, ocorre uma desestruturação. E é só o começo”

ÉPOCA – Uma onda conservadora parece avançar no Ocidente. Marine Le Pen, líder da Frente Nacional, será presidente da França?
Houellebecq –
Pode ser que ela chegue à Presidência da França algum dia, mas não será na próxima eleição. Apesar de estar sempre crescendo, ela ainda está muito distante de ter os votos necessários para ganhar uma eleição presidencial. O jogo já me parece jogado. François Hollande quer ser candidato, embora seja uma nulidade como presidente. Os socialistas talvez não saibam ainda como fazer para se livrar dele. Todos tentam convencê-lo a cair fora. Nicolas Sarkozy também quer voltar. Mas o próximo presidente da França deverá ser mesmo Alain Juppé [ex-primeiro-ministro, liberal, candidato nas primárias da direita francesa]. Ele largou na frente e tem tudo para ganhar. A rejeição a ele parece ser menor que a destinada a seus adversários.

ÉPOCA – O populismo ameaça as democracias ocidentais?
Houellebecq –
O populismo é uma realidade. Também é verdade que se tem chamado de populismo qualquer tentativa de tirar o poder das elites. Há populistas demagogos e perigosos e há quem seja considerado populista por especialistas em estratégias de desqualificação. Os “novos progressistas”, gente da velha esquerda com roupagem nova, chamam de novos reacionários todos os que não seguem suas ladainhas. Quem não usa smartphone é reacionário. Quem quer mais democracia direta e menos politicagem convencional, também.

ÉPOCA – Há épocas de aceleração histórica inesperada. O Brexit representa um fracasso irreversível para a União Europeia?
Houellebecq –
É uma pena que o Brexit não consiga derrubar a ideia de uma união europeia de vez. Não entendo a razão de tantos lamentos. Jamais encontrei um só ponto positivo no projeto europeu. Tudo está baseado em pilares falsos. Não há um só verdadeiro ponto cultural em comum entre os diferentes países para que eles queiram ou possam viver juntos abdicando de suas particularidades e da autonomia que cada um dispõe como nação independente. O fato de que a Justiça tenha decidido que o Parlamento britânico deve dar sua palavra sobre o que foi decidido em plebiscito é estranho, algo como uma invalidação da posição dos eleitores. Tomara que se confirme a saída. A União Europeia não passa de uma ideia de tecnocratas que nunca compreenderam bem as especificidades de cada país. Em todo caso, a saída da Inglaterra da União Europeia nada tem a ver com a chamada crise dos refugiados, como se costuma dizer por facilidade ou superficialidade. Os ingleses nunca se sentiram realmente parte desse projeto absurdo. A pergunta que todos deveriam se fazer todos os dias é esta: como foi possível embarcar tanta gente, tantos países, tantas línguas numa ideia tão inadequada e tão fadada ao fracasso?

ÉPOCA – Como lidar com as ondas de refugiados que chegam à Europa?
Houellebecq –
Não sei. Não me interesso por esse assunto. Sou completamente indiferente a isso. Ou, às vezes, mudo três vezes de opinião no mesmo dia sobre esse tema. Mudo de opinião por uma razão bastante simples: como me perguntam muito sobre isso, eu, por gentileza, respondo. A melhor maneira de acabar com a conversa é dar uma resposta. Depois, esqueço a resposta dada e acabo dando outra diferente. Mesmo que os refugiados estejam próximos da minha casa, ou onipresentes nos telejornais, eu não me sinto interpelado. Não sou um intelectual. Sou um escritor. Não tenho de me manifestar sobre tudo.

ÉPOCA – O que é ser intelectual no começo do século XXI?
Houellebecq –
O importante, antes de tudo, é definir o que é ser intelectual. Há muita confusão. O termo ficou muito amplo. Quase todo mundo pode ser tratado como intelectual. É preciso ter critérios precisos para classificar alguém como intelectual. Intelectual para mim é quem faz certos estudos, obtendo um diploma, por exemplo, em ciências humanas. Além disso, é alguém que escreve e publica ensaios e tem poder de publicação, dirigindo uma coleção numa grande editora. Não basta para ser intelectual fazer intervenções esporádicas no espaço público sobre questões gerais. Pelo conceito amplo usado por alguns, qualquer celebridade da mídia pode ser chamada de intelectual. Não é por ser famoso e dar palpites sobre tudo que alguém merece esse rótulo.

ÉPOCA – Não é uma noção muito institucionalizada de intelectual? Onde entra o intelectual marginal como propulsor de ideias e contestador dos sistemas?
Houellebecq –
As épocas são diferentes. Intelectuais na França, hoje, são Bernard-Henri Lévy, Eric Zemmour, Régis Debray. O papel do intelectual é justamente dizer o que se deve pensar. Tem sempre algo de normalizador nessa função. Não é contraditório afirmar que o intelectual serve para domesticar e questionar. O importante é que o intelectual não se deixe absorver pela mídia e tenha independência para disseminar o que pensa. O intelectual é um poder e precisa ter poder. Para exercer o poder das ideias, precisa ter poder de difusão e publicação. Não consigo ver como intelectual alguém que não escreva ou sustente teses. Não estou confundindo intelectual com pesquisador ou acadêmico. Sei que há diferenças. O intelectual abre o campo, amplia o espaço de discussão, tem por alvo um público mais amplo. Um intelectual precisa ter ideias sólidas e construídas. Não é produto fácil de encontrar. Talvez as ideias estejam em outras cabeças.

ÉPOCA – Os filósofos marxistas Alain Badiou (francês) e  Slavoj Zizek (esloveno) são intelectuais?
Houellebecq –
Pode ser que sim. Sobrevivem alguns marxistas. Apesar da decadência da esquerda. Atenção: afirmar que a esquerda acabou não significa aceitar a ideia de fim da história. Isso nunca passou de uma asneira. Enfim, essa bobagem já passou. Li alguma coisa de Badiou. Não faz sentido. Zizek é incompreensível. Pura perda de tempo. Tem quem goste. Não conheço um só grande intelectual anglo-saxão, mas os britânicos vivem anunciando a decadência do pensamento francês. É verdade que das ideias de Sartre e Camus nada sobrou. Escreviam mal, não foram de fato filósofos e nada entendiam de ciência. Depois deles, gente como Derrida, Lacan, Deleuze e Foucault só produziu frases obscuras, com palavras bizarras e nenhum sentido. O que temos, então? Intelectuais que desertaram e escritores que, como eu e o grande Maurice Dantec e Philippe Murray (escritores franceses), tiveram de tratar daquilo que dói no dia a dia de uma sociedade. Como sempre fomos mais artistas, não fizemos filosofia, nem prometemos isso. Tratamos daquilo que tem real significado na vida cotidiana das pessoas.

ÉPOCA – O senhor é um ateu que acredita na importância de Deus?
Houellebecq –
Deus é importante. Não há como negar. Já pensei muito sobre isso. As razões para crer em Deus são variadas. A mais importante tem a ver com a morte. Como suportar a morte sem Deus? Como suportar a finitude e o sofrimento sem a crença em algo superior? Como dar sentido ao que se é? Muita gente não consegue se situar sem esse ponto de referência e de transcendência. Deus também tem uma função na estruturação das sociedades. Serve de referência para a moral e para os costumes. Dá fundamentos para que a lei seja respeitada. Cumpre uma função moralizadora. Eu já quis até ser batizado na Igreja Católica, mas isso é assunto passado e não quero retomá-lo no momento. Se eu fosse abraçar uma religião, contudo, seria o catolicismo. Deus e religião são temas incontornáveis.

ÉPOCA – Nada lhe parece muito importante fora dos livros. É verdade, porém, que não conseguiu ler um livro de Philip Roth até o fim?
Houellebecq –
Não, não é verdade. Eu li O complexo de Portnoy da primeira até a última página e achei bom. Quando tive oportunidade, tentei outros. Aí não fui em frente. Achei repetitivo. Sei que isso acontece com muitos escritores. Não é fácil ser sempre novo. Tenho lido muito poucos autores estrangeiros. Passo a maior parte de meu tempo em casa lendo obras de escritores franceses que me são enviadas pelo correio. Há autores de todos os tipos, jovens ou velhos, desconhecidos da mídia e do grande público, alguns excelentes. O problema da literatura é a visibilidade. Nesse sentido, a internet não fez nenhuma revolução. Eu consigo, numa livraria, folheando exemplares ao acaso, encontrar coisas surpreendentes, mas não consigo fazer o mesmo navegando na internet. Há outro problema: comprei três tipos de tablets e não me adaptei. Acabo com os olhos cansados. A culpa, num caso desses, não é do autor. Muito menos de um autor como Philip Roth. O gosto de cada um é que é muito singular.

ÉPOCA – Sonha com o Nobel de Literatura?
Houellebecq –
Não. Mas poderia ganhá-lo. Não vejo na França quem possa estar mais bem colocado do que eu para isso. O problema é que eles vão demorar bastante a escolher novamente um francês. Acho que morrerei antes que eles façam isso. A Academia Sueca tem seu jeito muito particular de atuar. Premiaram Bob Dylan. Não farão algo assim outra vez. O Brasil, que ainda não ganhou o Nobel, certamente não o terá com um cantor. Já ouvi muito Bob Dylan. Só que nunca me dediquei a compreender de fato suas letras. Não sei se elas podem funcionar como poesia sem a música e a interpretação cantada. Tenho dúvidas. Tratando-se de músicos, eu teria preferido o Nobel para Lou Reed.

ÉPOCA – Leu algum livro de Chico Buarque?
Houellebecq –
Não.

ÉPOCA – E de Paulo Coelho?
Houellebecq –
Tentei ler um. Acho que foi O alquimista. Desisti.

Juremir Machado é jornalista, professor da PUC-RS e escritor. 
Publicou pela Record, em 2007,
Um escritor no fim do mundo (viagem com Michel Houellebecq à Patagônia)








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