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Leonardo Padura: "Os EUA são uma sociedade enferma, doente de medo"

Leonardo Padura: "Os EUA são uma sociedade enferma, doente de medo"

O escritor cubano está muito preocupado com o resultado da eleição americana: "Trump é um perigo"

RUAN DE SOUSA GABRIEL
09/11/2016 - 19h09 - Atualizado 11/11/2016 15h32

O escritor cubano Leonardo Padura não dormiu bem nos dias que antecederam as eleições americanas. Na quarta-feira, dia 9, data em que se comemorou os 27 anos da queda do Muro de Berlim, Padura perdeu o sono logo cedo e descobriu que um novo muro estava para ser erguido ao norte do México: Donald Trump era o novo presidente dos Estados Unidos. “Se Trump for realmente a pessoa que se apresentou durante todos esses meses de campanha eleitoral, ele é um perigo”, disse em entrevista a ÉPOCA. Padura veio ao Brasil para ministrar o curso Para que se escreve um romance?, no Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc, em São Paulo, e para lançar os quatro romances da tetralogia Estações Havana, que reúnem as aventuras detetivescas do tenente Mario Conde ao longo do histórico ano de 1989. Além da reedições dos já conhecidos Passado perfeito, Ventos de quaresma e Máscaras, a Boitempo também publica Paisagem de outono, que permanecia inédito em português. Poucas horas após o anúncio da vitória de Trump, Padura conversou com ÉPOCA sobre seus romances policiais, o impeachment de Dilma Rousseff e a insônia provocada pelas reviravoltas da política americana.

ÉPOCA – Como o senhor reagiu à vitória de Donald Trump na eleição americana?
Leonardo Padura –
 Há coisas que acontecem e a gente não entende! Na noite de segunda para terça-feira, dormi muito mal. Cometi o erro de tomar café após o jantar. Estava muito cansado, mas, às 2 da manhã, despertei como se já fosse dia. Não consegui voltar a dormir. Por isso, ontem à noite (terça-feira, dia 8), não tomei café, li duas páginas e dormi. Mas, hoje (quarta-feira, dia 9), abri os olhos antes das 6 da manhã e não consegui voltar a dormir. Levantei, tomei um café e digitei “eleições nos EUA” no Google. Quando vi “Trump triunfa”, senti uma opressão, uma angústia, uma incerteza. Se Trump for realmente a pessoa que se apresentou durante a campanha, ele é um perigo e não consigo imaginar aonde ele pode chegar! E toda essa loucura de Trump pode envolver Cuba! Não acho que devemos esperar uma agressão militar – ele não faria isso –, mas, sim, retrocessos no reestabelecimento das relações diplomáticas. Estou muito preocupado. Alguém me disse que Trump não venceria em nenhum lugar do mundo, só nos Estados Unidos.

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ÉPOCA – Por quê?
Padura –
Porque os Estados Unidos são uma sociedade enferma, doente de medo. Eu estava nos EUA pouco depois dos atentados de 11 de setembro, quando começou o temor do antraz, que viria pelo correio, junto com a correspondência. A sociedade foi tomada pelo pânico. Eu vejo os rostos das pessoas que apoiam Trump nas reportagens e dá medo.

ÉPOCA – Como os cubanos acompanharam a eleição americana?
Padura –
Estou há mais de 15 dias fora de Cuba. Estava lá quando houve a votação da Organização das Nações Unidas (ONU) que pediu o fim do embargo. Falou-se mais disso que da eleição americana. Os meios de comunicação cubanos e as pessoas interessadas em política estavam confiantes de que Hillary Clinton venceria.

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Escritor Leonardo Padura  (Foto: Patrick Voigt/laif/Glow Images)

ÉPOCA – A eleição de Donald Trump complica o reestabelecimento das relações entre Cuba e os Estados Unidos?
Padura –
Trump é imprevisível! Imprevisível! Quando terminei de ler as notícias da eleição, me perguntei: “O que acontecerá a partir de janeiro do ano que vem?”. E não tenho ideia! Não sei o que há na cabeça desse senhor, debaixo daquele cabelo tão esquisito que ele tem (risos). Trump é tão louco que sua Presidência pode ser boa para Cuba. Ele pode suspender o embargo e dizer: “Vamos fazer negócios! O comércio deve ser livre!”. Ele é imprevisível!

ÉPOCA – Qual sua avaliação do governo de Barack Obama?
Padura –
Não só Cuba, mas o mundo todo vai sentir saudade de Barack Obama a partir de janeiro de 2017. Obama foi um dos melhores presidentes dos Estados Unidos. Ele soube manejar todos os problemas nacionais e internacionais dentro de suas possibilidades. Ele soube administrar o problema da violência policial contra jovens negros com muita elegância e inteligência política. Certamente, com Trump será diferente.

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ÉPOCA – O senhor aprecia a literatura americana e já expressou sua admiração por John Updike (1932-2009). Mario Conde é uma espécie de parente cubano de Harry “Coelho” Armstrong, o personagem de Updike que acompanhou as transformaçãos de seu país no século XX?
Padura –
Quero que os livros de Mario Conde sejam uma crônica da vida em meu país, como os livros de Updike protagonizados por Coelho Armstrong são uma crônica da vida americana do ponto de vista de uma classe média sem maiores aspirações intelectuais. Conde é um homem comum, com certas pretensões intelectuais, que procura olhar a realidade com profundidade. Ficaria encantado se comparassem com John Updike.

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ÉPOCA – Nesta semana, no dia 9, comemoramos 27 anos da queda do Muro de Berlim, que ocorreu em 1989, o ano em que o senhor começou a escrever as aventuras de Conde. Como os acontecimentos daquele ano tão conturbado influenciaram sua criação literária?
Padura –
Aquele ano foi uma grande confusão! Sabíamos que acontecia algo grave na sociedade cubana e nos países socialistas. Por causa da perestroika (reestruturação econômica) e da glasnost (abertura política) soviéticas, chegavam a nós notícias e fatos históricos que antes desconhecíamos. A mudança parecia possível. E as coisas realmente mudaram muito. Em Cuba e no mundo. Mas tudo era muito incerto: não sabia se poderia publicar meus livros em Cuba, porque a crise começara e já não havia papel! No final daquele ano, comecei a escrever Passado perfeito com um propósito: escrever um romance policial cubano que não se parecesse com os romances policiais cubanos, que eram muito ruins. Aquele romance deveria ter um caráter mais social que policial. Não só porque eu sou obcecado pelo social, mas também porque sou incapaz de armar uma boa trama policial. Era uma forma de expiar meu defeito. Aquele ano está muito presente nos romances da teatrologia Estações Havana. Ao longo dos oito anos que levei para escrever os livros, a crise cubana me afetou e ganhou maior presença nos romances.

ÉPOCA – O senhor e Mario Conde têm origens semelhantes: a mesma idade, cresceram nos mesmos bairros, estudaram nas mesmas escolas e gostam de Ernest Hemingway. Como é a relação de vocês dois e como foi passar todos esses anos junto dele?
Padura –
Convivemos há mais de 25 anos! Conde foi um presente que a literatura me deu: encontrar um personagem que me permite expor minhas visões da realidade cubana, mas também dos problemas da condição humana. A psicologia desse personagem também é próxima da minha. Temos os mesmos heróis literários e os mesmos conceitos de vida, amizade, religião, moral. Enfim, ele não é meu alter ego, mas é um personagem que me foi muito útil para expressar minha visão de mundo e explicar uma realidade tão complicada como a cubana.

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ÉPOCA – As investigações de Conde já trataram de temas espinhosos, como a corrupção e a repressão aos homossexuais em Cuba. Qual tema é mais difícil de tratar na literatura cubana?
Padura –
Ter uma ideia que pode se converter num romance já é um presente divino. Por isso, para mim todos os temas são difíceis. Não pelo peso político, social ou filosófico dos argumentos, mas simplesmente pela dificuldade de encontrar um tema capaz de se transformar num romance. Quando termino um livro, passa um tempo e me ocorre uma ideia para outro romance. Eu escrevo algumas páginas e há um momento em que digo a Lucía, minha mulher: “Tenho um romance!”. É quando me convenço de que tenho o assunto para o romance, mas descobrir o tema é realmente minha grande dificuldade.

ÉPOCA – Esta é a primeira vez que o senhor vem ao Brasil depois da queda de Dilma Rousseff. O senhor acompanhou o processo de impeachment?
Padura –
Sim. O impeachment de Dilma foi um dos acontecimentos mais tristes da história recente da democracia latino-americana. Foi um processo lamentável, uma vingança política que nem sequer era contra Dilma, mas contra um projeto de país que beneficiava as classes populares de modo mais amplo. Fiquei muito triste ao saber que muitas das pessoas que foram beneficiadas pelos governos do PT foram favoráveis ao impeachment.








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