Beatriz Sarlo: "Não vemos uma luz no fim do túnel"

A intelectual mais renomada da Argentina afirma que uma década sob a batuta da família Kirchner estabeleceu uma hegemonia política absoluta e afundou ainda mais o país

RODRIGO TURRER
16/10/2013 16h12 - Atualizado em 17/12/2013 16h13
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ANTI-KIRCHNER Beatriz Sarlo, em 2009, em frente à Casa Rosada, a sede da Presidência argentina (Foto: Palito Haliasz/Estadão Conteúdo)

A ensaísta e crítica cultural Beatriz Sarlo, de 71 anos, se tornou a mais importante voz anti-Kirchner da Argentina. Para ela, o governo de Néstor e Cristina Kirchner pôs um quarto da população abaixo da linha da pobreza e não tem um plano para resolver o problema. Em sua coluna no jornal La Nación, Beatriz já escreveu que as “atitudes de comadre de bairro” de Cristina ameaçam o país. “Não se trata de uma picuinha minha com ela”, afirma. “Cristina é autoritária e sofre de um hiperpersonalismo autorreferencial.” Nesta entrevista a ÉPOCA, Beatriz fala do legado de dez anos do kirchnerismo, da esquerda populista na América Latina e dos desafios trazidos pela mobilização popular. 

ÉPOCA – A senhora sempre criticou Cristina Kirchner, a ponto de dizerem tratar-se de uma picuinha. Por que ela a incomoda?
Beatriz Sarlo –
Cristina é autoritária e sofre de um hiperpersonalismo autorreferencial. Não se trata de uma “picuinha” minha, mas de um fato público de conteúdo político. Outros também criticam esse estilo confrontativo de Cristina.

ÉPOCA – Não é um exagero dizer que ela “tem uma atitude de comadre de bairro”, como a senhora escreveu?
Beatriz –
Talvez seja um exagero. Mas não é exagero dizer que ela jamais se reuniu com os partidos de oposição; jamais manteve um diálogo político com dirigentes que não se subordinaram a ela por completo; nunca acenou com um gesto de abertura para escutar as opiniões e posições dos parlamentares, ainda que essa seja uma de suas tarefas. Também não é exagero dizer que ela usa a ironia e o sarcasmo em seus discursos públicos, quando se refere a posições e reclamações daqueles que considera adversários. Que os ofende e desclassifica e se considera o centro de todas as boas iniciativas. O governo é definitivamente unipersonalista e considera inimigos quaisquer pessoas que dele divirjam, incluindo aí a Suprema Corte Argentina.

ÉPOCA – Os Kirchners completaram dez anos no poder em 2013. Qual o legado do kirchnerismo para a Argentina?
Beatriz –
O kirchnerismo é uma etapa do peronismo. Nos anos 1990, tivemos o menemismo, a versão neoliberal do presidente Carlos Menem (1989-1999), responsável por uma profunda regressão produtiva e social. Nos dez anos de kirchnerismo (2003-2013), os Kirchners enfrentaram duas questões. A primeira: justiça para os crimes de Estado cometidos durante a ditadura militar e a revogação das leis que impediam o julgamento de militares. Para fazer isso, contaram com apoio parlamentar e a adesão de organizações de direitos humanos, como as avós da Plaza de Mayo. Essas organizações se tornaram parte do dispositivo político oficialista. Isso implicou uma lamentável perda de sua independência. A segunda questão foi a crise econômica. A Argentina começou a sair da crise no governo de Eduardo Duhalde (2002-2003). Os projetos sociais para desempregados, que começaram com Duhalde, se multiplicaram no governo de Néstor Kirchner. Esse primeiro ciclo kirchnerista chegou ao fim e deixa dívidas sociais que não foram pagas. Para começar, há 40% de empregados informais. Um quarto da população argentina está abaixo da linha da pobreza. Esses são os maiores desafios da Argentina num futuro próximo, e o kirchnerismo não tem um plano para resolvê-los.

ÉPOCA – A senhora acha que os Kirchners contribuíram para a decadência da Argentina nos últimos anos? Por que a Argentina parece incapaz de sair de suas crises?
Beatriz –
A Argentina foi um grande país latino-americano enquanto sua produção agropecuária garantia enorme renda ao país. Depois da Segunda Guerra Mundial, o mundo mudou. A industrialização argentina não deu conta de enfrentar os desafios do último terço do século XX. O país se ruralizou, algo que também ameaça o Brasil. Não se pode ser um grande país produzindo soja. Até 1950, ser argentino era ser alfabetizado, ter emprego seguro e direitos sociais. Essa identidade argentina entrou em crise, e não vemos uma luz no fim desse túnel.

"Cristina é autoritária
e sofre de um hiperpersonalismo
autorreferencial"

ÉPOCA – O que a senhora quer dizer quando escreve que na Argentina “não existe mais transição, apenas continuidade”?
Beatriz –
Foram chamados de transição, na Argentina e em outros países da América Latina, os primeiros governos eleitos depois das ditaduras militares. Acreditou-se que essa transição estava concluída quando um governo civil passava o poder a outro governo civil. Isso se cumpriu na Argentina e na maioria dos países latino-americanos. Pela definição clássica, a transição terminou, porque governos dos dois principais partidos argentinos, o Radical e o Peronista, já passaram pelo poder. Mas hoje não há apenas uma continuidade institucional, como também uma continuidade política. O domínio político do kirchnerismo é absoluto, e a oposição não tem nomes nem ideias capazes de mudar isso.

ÉPOCA – Como será nas eleições presidenciais de 2015? Há kirchnerismo sem um
Kirchner no poder?
Beatriz –
Quiçá o kirchnerismo, em algum momento, tenha imaginado uma mudança que implicasse uma nova Constituição e encaminhasse outro tipo de república, algo similar ao que aconteceu na Venezuela e no Equador. Isso aconteceu em 2011, depois da triunfal reeleição de Cristina e sua vitória eleitoral. Mas os kirchneristas não tiveram bons reflexos políticos – ou não captaram que aquele era seu momento, a hora de lançar uma tentativa de plebiscito para permitir novas reeleições. Agora é tarde. A presidente não tem um sucessor próprio, e o mais provável é que as diversas linhas do peronismo, kirchnerista ou não kirchnerista, se engalfinhem numa disputa interna nacional para escolher um candidato para 2015. Ou pode acontecer algo similar a 2003, quando diferentes candidatos peronistas competiram entre si nas eleições. Está claro é que Cristina não teve condições políticas de impor um sucessor. Seja por ter escolhido mal seu vice-presidente (Amado Boudou, envolvido em diversos escândalos de corrupção), seja porque seu personalismo exacerbado não permitiu abrir seu horizonte de negociações com aqueles que poderiam lhe suceder. Hoje, ela se vê obrigada a negociar com algum governador, como o da província de Buenos Aires (Daniel Scioli, um kirchnerista de segundo escalão). Impor um sucessor exige muita capacidade de diálogo, algo que falta à presidente Cristina.

ÉPOCA – Nos últimos 20 anos, uma esquerda populista chegou ao poder na América Latina com candidatos eleitos democraticamente, mas um estilo de governo autocrático e centralizador. Esse é o futuro da esquerda latino-americana?
Beatriz –
Esses movimentos nacionais anti-imperialistas, carismáticos e plebiscitários ganharam espaço nos anos 1990, quando governos neoliberais estavam no poder. A esquerda sofreu sucessivas derrotas, muitas causadas por ela mesma, e viu movimentos de origem nacionalista, sem tradição de esquerda, ocupar seu lugar e roubar suas ideias. Não é um gesto vazio que Hugo Chávez tenha chamado seu regime de “socialismo bolivariano”. Esses movimentos têm profundas diferenças da esquerda clássica, como a Frente Ampla, no Uruguai, ou a que construiu o movimento da Concertación no Chile (aliança de centro-esquerda que governou o Chile depois do regime autoritário de Pinochet). Nesses países, subsiste um sistema de partidos mais europeu. Chile e Uruguai não têm um destino populista. Não tinham nem mesmo nos anos 1970: Salvador Allende era um socialista, não um populista. O Brasil é diferente de ambos os movimentos. O PT é uma vasta confluência de linhas, ideias e estilos. Lula é um político carismático e conciliador; Dilma é uma política racionalista e técnica. É extraordinário que esses dois estilos possam coexistir no mesmo espaço e que um tenha sucedido ao outro. Como dizia o cientista político Guillermo O’Donnell: o Brasil sempre dá um jeito nas coisas.

ÉPOCA – Nos últimos anos, movimentos de protesto surgiram nos Estados Unidos, na Espanha, no Oriente Médio e até mesmo no Brasil. Como a senhora avalia esses movimentos?
Beatriz –
As mobilizações impulsionadas pela internet são formas novas de ação. Não acredito que se possa, a esta altura, fazer um balanço e determinar que a política no futuro será assim: sem partidos, cada um em sua casa, em rede com outras pessoas pela internet. Se pensarmos nos resultados dessas mobilizações, o juízo será mais matizado. No mundo árabe, se consolidaram tendências fortemente islamistas. Na Espanha, no ano seguinte às grandes manifestações, o aniversário foi em clima nostálgico. No Brasil, elas tiveram o efeito de conduzir a diálogos políticos. Para mim, a pergunta é como os partidos e essas organizações espontâneas da sociedade se influenciaram mutuamente.

ÉPOCA – Tais movimentos, gestados na internet, podem mudar a política tradicional e tornar a democracia mais participativa?
Beatriz –
Não conhecemos democracia sem partidos. Hoje, o desafio dos partidos é entender as mobilizações espontâneas e as novas formas de organização política. A responsabilidade está do lado dos partidos e dos políticos. Não são os manifestantes que devem entender os partidos. Eles carecem de elementos para essa tarefa. Governar Estados muito complexos como aqueles em que vivemos requer muito conhecimento técnico e muita capacidade institucional. Hoje, o desafio da democracia é tentar entender o novo. 


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