Tempo

Jean Wyllys: “Os atentados de Orlando aumentaram os riscos para os gays”

Jean Wyllys: “Os atentados de Orlando aumentaram os riscos para os gays”

O deputado fala sobre as ameaças de morte que recebeu por falar em motivação homofóbica para os ataques e do ódio contra homossexuais no Brasil

FLÁVIA YURI OSHIMA
17/06/2016 - 09h00 - Atualizado 17/06/2016 18h35
Jean Wyllys (Foto: Divulgação)

Nas redes sociais, as mensagens de condolências às famílias das vítimas do atentado que matou 49 pessoas numa boate gay em Orlando, na madrugada de domingo, dia 12, e as exclamações de assombro, comuns quando tragédias como essas ocorrem, dividiram espaço com manifestações claramente homofóbicas de diferentes tons. “O atirador merecia uma medalha e não um tiro”, “pena que foram apenas 49 mortos”, “quem frequenta antros como aquele merece morrer” foram alguns dos comentários que circularam nas redes sociais nesta semana. Além daqueles que deram apoio explícito ao ocorrido, houve também quem se indignou com a ideia de que o ataque tenha motivações homofóbicas. “A turma LGBT está se aproveitando de uma tragédia para se promover”, escreveu em sua página do Facebook o deputado Marco Feliciano,  do PSC de São Paulo.

Páginas de ativistas gays e de jornalistas que compartilhavam as reportagens a respeito da motivação homofóbica chegaram a sair do ar, depois de receberem ataques em massa, com xingamentos e até ameaças de morte. O deputado Jean Wyllys, ativista da causa LGBT, teve suas contas do Facebook, do Twitter e do Instagram bombardeadas com dezenas de mensagens agressivas. A Polícia Federal investiga quem coordenou esses ataques. Para o deputado Jean Wyllys, a reação de raiva daqueles que não concordam com a tese de que houve motivação homofóbica é a prova de que o preconceito contra homossexuais é a causa real por trás da escolha de local feita pelo atirador. “Quem não tolera homossexuais não quer que a homofobia seja relacionada às causas do ataque porque sente culpa”, diz o deputado em entrevista que deu logo depois de se reunir com a Polícia Federal. 

>> Autor de massacre na boate Pulse é conhecido pelo FBI desde 2013

>> Lista de mortos do atentado de Orlando


ÉPOCA – O senhor está acompanhando a repercussão dos atentados nos Estados Unidos?
Jean Wyllys –
Sim, estou acompanhando. Para nós, LGBTs, sobretudo LGBTs ativistas, que temos uma participação maior na vida política, os comentários homofóbicos desumanos, que chegam a incitar a violência, não são, infelizmente, uma novidade. A gente sempre conviveu com os ataques, com a injúria e, sobretudo, com a desclassificação de crimes de natureza homofóbica, que também ocorrem agora.

ÉPOCA – O que é essa desclassificação?
Wyllys – 
É a negação de que a natureza das motivações por trás de atitudes violentas e criminosas seja de preconceito contra quem é homossexual. Ela é muito comum no Brasil. Há dois ou três anos, um garoto foi encontrado espancado, com os dentes quebrados, uma barra de ferro atravessada na perna, em São Paulo, saindo de uma boate gay. Ele se despediu dos amigos e, quando foi encontrado, seu corpo estava nesse estado. A polícia de São Paulo defendeu até o último momento a tese de suicídio. Leonardo Sakamoto (jornalista) e eu nos desgastamos publicamente porque era óbvio que o crime era de motivação homofóbica. E a polícia de São Paulo insistiu na tese do suicídio. A família do menino, que não aprovava a homossexualidade dele, endossou a tese da polícia. É uma vulnerabilidade tão grande que nós, homossexuais e transexuais, passamos por essa primeira violência dentro de nossa própria família. São muitos os casos. Um aluno da faculdade de comunicação da UFBA saiu de um bar gay e foi encontrado estrangulado e nu, dentro de um chafariz público. A polícia baiana também desqualificou a motivação homofóbica e foi uma batalha na imprensa.

ÉPOCA – E por que esse movimento para desqualificar os crimes homofóbicos?
Wyllys –
Primeiro tenho de deixar claro como isso ocorre na cabeça das pessoas. Os preconceitos são da ordem cognitiva. São falsas certezas que as pessoas têm acerca do mundo, das outras pessoas, delas mesmas e das relações. Essas falsas certezas trazem um certo conforto para a vida delas. Se alguém não chegar e contrapor essa falsa certeza, ela vai morrer acreditando que essas falsas certezas são verdade. Essas falsas certezas são adquiridas no processo de socialização. Nós somos todos socializados numa cultura homofóbica. Nós somos socializados numa cultura heterossexista. É uma cultura que define os papéis sexuais. Os homens ficam numa posição superior e as mulheres estão numa posição subalterna. O mundo funciona exatamente assim: as mulheres são vítimas de violência sexual, são minoria no mundo do trabalho, no mundo da política. Essa sociedade também define qual é o papel sexual da mulher e do homem. Ela é heterossexual porque define a heterossexualidade como a sexualidade legítima. Nessa tese, todo ser humano nasce para ser heterossexual. Se você não é heterossexual é considerado um desvio. Para a Igreja, você é um pecador; para o aparato jurídico policial, você é um criminoso; e para a medicina, você é um doente. Nossa cultura, portanto, é uma cultura homofóbica. Ela incorpora a homofobia em todos nós.


ÉPOCA – Por que a dificuldade de assumir que outra pessoa praticou um crime homofóbico?
Wyllys –
Isso aconteceu com o meu pai e com a minha mãe e acontece com a maioria dos pais e mães de homossexuais. Os pais não querem ter filhos gays. Eles têm vergonha. São educados para se sentir assim, pois aprenderam que a homossexualidade é um desvio, é um pecado, é uma doença, é um crime. A maioria das pessoas partilha do sentimento de que os homossexuais são menos humanos, são seres um pouco menores na escala da humanidade, são desprezíveis. As pessoas não gostam de ver beijo gay na novela, não gostam de ver casais trocando carícias em público. Elas sentem nojo, porque  foram criadas num mundo que trata homossexuais dessa maneira. Daí, vem alguém que se sente da mesma forma como ele, é um igual nesse sentido, e dá um passo adiante, avança uma casa. Ele não fica só no sentimento. Ele vai lá e dá uma expressão a esse sentimento. Vai lá e  xinga o homossexual de viado e bicha. Depois de partir para a injúria, dá outro passo, ataca e pratica um ato homofóbico, um crime de ódio. Vai lá e mata a pessoa, ou vai lá e dá uma surra nela. Quando faz isso, automaticamente, os Felicianos da vida, os delegados que são homofóbicos, todos que se identificam com o que motivou o assassino, sentem culpa. Eles reconhecem em si mesmos que o sentimento que eles têm em relação à homossexualidade pode levar a matar. E isso não é bom. Eles não querem esse incômodo, não querem se enxergar em um assassino. Então, eles negam a motivação homofóbica. Eles a  desqualificam mesmo diante de todas as evidências. Esse movimento ocorre para aliviar a própria culpa. Algo similar ocorreu com a menina que foi estuprada por muitos homens no Rio de Janeiro. Todo homem que se viu projetado nos estupradores negou que era um estupro, acusaram a menina de vagabunda, de que ela estava no lugar errado e que queria fazer sexo grupal, isso ocorreu até o momento que o vídeo desmascarou todo mundo.


ÉPOCA – Por que o senhor procurou a Polícia Federal?
Wyllys –
Porque eu e muitas outras pessoas que divulgamos reportagens e informações falando que o crime, além de ser um ataque de terror, também era um ataque homofóbico, fomos atacados de forma massiva pelas redes sociais. A boate não foi escolhida por acaso, ainda que fosse um ato terrorista, e era um ato terrorista, isso não exclui a motivação homofóbica. Essas não são coisas excludentes. Por que quem sente preconceito contra homossexuais se recusa a enxergar isso?  Porque se eles reconhecem a motivação homofóbica daquele crime imediatamente se tornam cúmplices dele. Então eles mobilizaram sua turma nas redes sociais para invadir qualquer página. Não foi só a minha. Muitas páginas que fizeram menção a isso foram atacadas.  O ataque era sempre esse: negava a motivação homofóbica do crime de Orlando e, em seguida, praticava a homofobia contra a pessoa que tinha reconhecido essa motivação. Recebi mensagens que diziam: “Viado, você tem que morrer, tem que levar uma bala na cabeça. Pare de falar que aquele crime foi homofóbico. Aquele crime foi terrorismo, não foi homofóbico”. Eu e minha equipe passamos a madrugada limpando nossas páginas do ataque orquestrado que ela sofreu com esse tipo de comentário, com ameaças de morte e injúrias homofóbicas. Passamos a madrugada numa crise de choro compulsivo.
Hoje levei para a Polícia Federal um dossiê de mensagens que vieram pelas redes sociais: Facebook, Twitter e Instagram e também pelo meu WhatsApp. Esse foi claramente um ataque orquestrado.

ÉPOCA – O senhor consegue provar de onde vieram esses ataques? Ou que eles foram orquestrados?
Wyllys –
Isso é trabalho da Polícia Federal. Entreguei hoje o dossiê para eles e o diretor-geral da Polícia Federal me garantiu que vai dar uma resposta. Essa é a sétima vez que eu visito a Polícia Federal para fazer denúncias de ameaças de morte contra mim, de fundo homofóbico.

ÉPOCA – O senhor já sofreu algum atentado?
Wyllys –
Tentativa nunca sofri. Só ameaça. As primeiras ameaças surgiram no contexto daquele massacre que ocorreu no Rio de Janeiro, em que 12 meninas foram mortas por um cara. Esse assassino frequentava um site que pregava estupro corretivo, morte aos negros, aos nordestinos e aos homossexuais. Esse site chegou a colocar uma receita de como me matar. Eles apontaram, inclusive, os pontos cegos das câmeras aqui da Câmara dos Deputados para que eu fosse alvejado sem que ninguém visse quem foi o assassino. A gente prestou a denúncia, a polícia teve dificuldades de localizar o dono porque o site era hospedado fora do Brasil, mas depois do massacre de Realengo, sabendo que o cara frequentava esse site, a Polícia Federal interceptou as investigações e chegou a dois dos caras que alimentavam o site. Um é de Curitiba e outro de  Brasília. O que foi preso em Brasília estava com o mapa da Universidade de Brasília [UnB], onde ele pretendia explodir uma bomba. O de Curitiba já tinha várias denúncias contra ele registradas na polícia.

ÉPOCA – O que representa para a comunidade LGBT o fato de o maior atentado dos Estados Unidos depois do 11 de setembro ter ocorrido numa boate gay?
Wyllys –
Para mim, foi simbólico. Estamos acostumados a ser permanentemente ameaçados. Ser gay é como ser mulher, de certa forma, talvez até com uma vulnerabilidade maior, porque as mulheres não são odiadas. O último boletim da Secretaria dos Direitos Humanos dá conta de que foram mortos 344 homossexuais por razões homofóbicas num ano, quase um por dia. Aumentou em relação ao ano anterior, mas não sabemos ainda se é porque está acontecendo mais ou porque aumentaram as denúncias. Esses são apenas os crimes que ocorrem pelo que a pessoa é. Ou seja, a travesti que foi morta não porque sofreu um assalto, mas porque é uma travesti que estava andando na rua. Esses números são colhidos depois que todas as razões foram eliminadas. Não há causa aparente para aquela pessoa ter sido morta, além do fato de ela ser gay. Por aí você vê como esse é um número grande. A diferença é que agora, em Orlando, foi um assassinato em massa. Foi a primeira vez que isso ocorreu com gays depois dos crimes nazistas em campos de concentração.

ÉPOCA – O que aconteceu pode incitar mais violência? Os riscos aumentaram?
Wyllys –
Sim, porque quando se avança uma casa, como foi feito agora, se cria precedente. Por isso, as principais nações iluminaram seus símbolos de país com as cores da bandeira LBGT. A França, a Bélgica e a Inglaterra, todos fizeram isso. Porque todos sabem que é importante sinalizar que não darão trégua a esse tipo de violência.  As democracias hoje, para ser consideradas como tais, têm de incluir os homossexuais na cidadania plena. É justamente por saber que esse tipo de ataque pode voltar a ocorrer que essas nações tiveram uma reação simbólica imediata. O Brasil não fez isso – e eu não sei por quê. 








especiais