Vida

Mozart Noronha: “Enterrei Geisel, Brizola e Niemeyer”

Mozart Noronha: “Enterrei Geisel, Brizola e Niemeyer”

Pastor luterano, integrante de um grupo contra a ditadura, fiz os funerais de um ditador, de um líder de esquerda e de um ateu comunista

EM DEPOIMENTO A RUAN DE SOUSA GABRIEL
18/07/2014 - 07h00 - Atualizado 18/07/2014 18h37
PASTOR Mozart Noronha, em foto recente. Por causa da barba farta, foi preso no exílio, em Portugal, confundido com um guerrilheiro (Foto: Stefano Martini/ÉPOCA)


Na manhã de 13 de setembro de 1996, um carro decorado com a estrela do Partido dos Trabalhadores (PT) me conduziu ao Cemitério de São João Batista, no Rio de Janeiro. Eu não estava lá como militante do partido que ajudara a fundar e pelo qual me candidatara a deputado estadual, em 1982, mas como pastor. A pedido da família, dirigi os ritos fúnebres do ex-presidente Ernesto Geisel. Em 1974, oito anos antes de me candidatar, o general Geisel era o ditador de plantão, e eu, militante da Ação Popular, seguia para o exílio.

Política e religião pautam minha vida desde a juventude. Pela leitura das Sagradas Escrituras, descobri um Evangelho que vem salvar o ser humano por inteiro, não apenas sua alma. Embora protestante, fui discípulo de dom Hélder Câmara (arcebispo de Olinda e Recife) e me encantei com seu movimento de não violência ativa. Convencido de que política não se faz sozinho, nos anos 1960 entrei para a Ação Popular (AP), organização da esquerda cristã contra a ditadura. Havia muitos evangélicos engajados na AP, como Paulo Wright (desaparecido político, irmão do pastor presbiteriano Jaime Wright). A militância nunca me afastou da fé. Em 1971, fui ordenado pastor pela Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB).
 

Mozart_noronha (Foto: Reprodução)

Em 1974, me dividia entre a militância política, o ministério pastoral e as aulas de filosofia que dava em colégios paulistanos. Depois da prisão de Paulo Wright, em 1973, as forças de repressão fecharam o cerco à AP. A orientação da organização foi “salve-se quem puder”. Consegui uma bolsa do Conselho Mundial de Igrejas e segui para Genebra, na Suíça. Logo depois, inspirado pela Revolução dos Cravos, parti para Portugal. Na região do Alentejo, além do pastorado, trabalhei com a educação de adultos, seguindo a cartilha de Paulo Freire. Em Portugal, por causa da minha longa barba, fui confundido com um guerrilheiro cubano e cheguei a ser preso. Como não havia nenhum processo formal contra mim, pude voltar ao Brasil em 1978, meses antes da Lei da Anistia.

Em 1978, uma dissidência de esquerda da Igreja Presbiteriana formou a Igreja Presbiteriana Unida (IPU). Optei por uma terceira via, ao me filiar à Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil (IECLB). Sempre me identifiquei com a teologia luterana. Depois de um período na Igreja Cristã de Ipanema, passei a pastorear a Paróquia Luterana Bom Samaritano, no mesmo bairro. 

Na década de 1990, recebi a visita de Lucy e Amália Lucy Geisel, mulher e filha de Ernesto Geisel. Queriam integrar a Paróquia Bom Samaritano. A família Geisel, de imigrantes alemães luteranos, morava em Ipanema. Pouco tempo depois, Amália Lucy voltou a me procurar: Geisel também queria tornar-se membro. A despeito de minha posição política, inscrevi a família toda. O ministério pastoral está acima da ideologia. Na condição de membro da minha paróquia, Geisel merecia os mesmos cuidados que eu dispensaria a qualquer ovelha. Ele estava doente e não comparecia aos cultos, mas contribuía com a paróquia. Sua mulher e filha frequentavam a igreja aos domingos.

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Pouco antes da morte de Geisel, sua família pediu que eu o visitasse na Clínica São Vicente, onde estava internado. Estive com ele durante muito tempo e celebrei o sacramento da comunhão lá mesmo no hospital. Não acredito que Geisel soubesse de minha militância política.
 

Recebi críticas (Foto: arq. pessoal)

Quando Geisel morreu, fiz o sepultamento a pedido da família. Jornais destacaram: um “pastor do PT”, ou “da esquerda”, enterrou Geisel. O funeral seguiu o rito luterano. Li um salmo e uma passagem do Evangelho de São João em que Jesus diz a seus discípulos: “Não se turbe o vosso coração”. No sermão, preguei sobre a ressurreição, emergir de uma situação de desespero e retomar o caminho da esperança. Falei também algumas palavras sobre Geisel. Mencionei seu nacionalismo, sua defesa do patrimônio nacional, sua ética e seu amor à família.

Recebi muitas críticas por fazer o funeral de um ditador de direita, sendo de esquerda. Meus alunos da PUC me convidaram para discutir o assunto num debate sobre ideologia e fé. Como eram estudantes de Direito, apelei para argumentos jurídicos: com a morte, prescreve todo o delito, e a pena não deve passar da pessoa do condenado. Se tivesse negado a Geisel um funeral religioso, puniria sua família. Tentei concluir minha defesa com bom humor: “Não ressuscitei o Geisel, eu o enterrei”.

Em 2004, fui convidado para oficiar o funeral de Leonel Brizola. Conheci Brizola pessoalmente e o admirava, ainda que minhas posições políticas fossem mais radicais que as dele. Tínhamos amigos em comum, e foi por meio deles que a família entrou em contato comigo e me pediu para fazer o funeral. Brizola fora criado pelo pastor metodista Isidoro Pereira. Sempre deixou transparecer a influência do protestantismo em sua formação. No Palácio Guanabara, antes de o corpo seguir para o Rio Grande do Sul, dividi a palavra com Dom Dimas Barbosa, bispo-auxiliar do Rio de Janeiro. Em homenagem a Brizola, entoei a “Internacional socialista”. Só três ou quatro pessoas me acompanharam.

Em dezembro de 2012, os padres da Paróquia Nossa Senhora da Paz me convidaram a participar do ofício fúnebre de Oscar Niemeyer. O gênio da arquitetura era ateu, mas sua família era cristã. Queriam uma celebração ecumênica e pediram aos padres a indicação de um pastor. Niemeyer e eu nos conhecíamos. Sempre o via num restaurante que ele frequentava na Praça General Osório e parava para dar um abraço. Ao lado dos padres Osmar Raposo e Jorjão e do rabino Nilton Bonder, dediquei a Niemeyer um poema que rendeu discussão na internet. Alguns religiosos se incomodaram com meus versos, que anunciavam a chegada de Niemeyer ao céu, recepcionado por Deus e um coral de anjos cantando a “Internacional socialista”. Em meus sermões, sou mais ortodoxo. Apesar de ateu, Niemeyer contribuiu com Deus na construção desse mundo por meio de sua arte. Também puxei a “Suíte do pescador”, canção de Dorival Caymmi cantada pelos presos políticos nos porões da ditadura. Dessa vez, quase todos sabiam a letra.

Em 2006, saí do PT, desencantado com alianças espúrias e fisiologismo. O PT se tornara um partido qualquer. Parti com o coração partido. Ingressei no PSOL, mas não faço dele um dogma. Sou um socialista que questiona o Estado. Brinco que o Estado é a besta do Apocalipse e o que o número da besta é o CPF. Hoje, dedico-me ao Centro Social e Creche Bom Samaritano. Ele atende, por dia, 100 crianças das comunidades Cantagalo e Pavão-Pavãozinho. Também dou aulas na Universidade Candido Mendes. Educar para a vida é minha bandeira.

Quando eu morrer, quero que cantem três hinos no meu velório: “Castelo forte” (hino da Reforma Protestante composto por Martinho Lutero), a “Internacional socialista” e o Hino do Botafogo. Espero que meus amigos flamenguistas cantem em minha homenagem.

Em depoimento a Ruan de Sousa Gabriel








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