Vida

Os últimos versos de Pablo Neruda

Os últimos versos de Pablo Neruda

Descobertos numa biblioteca, os manuscritos contêm 20 poemas inéditos e todo o vigor da maturidade do poeta chileno

NINA FINCO E DANILO VENTICINQUE
11/07/2014 - 07h00 - Atualizado 11/07/2014 07h55
O MAR E A LUTA O poeta Pablo Neruda, em retrato de 1946. Nobel  de Literatura, ele escrevia sobre  o amor, o mar e a luta social no Chile (Foto: Condé Nast Archive/Corbis/Latin Stock)

O crítico literário Darío Oses acabara de ser nomeado diretor da Biblioteca da Fundação Pablo Neruda, em 2011, quando decidiu que era preciso recatalogar o acervo desorganizado. Ele incluía mais de 4.500 folhas da obra do poeta chileno Pablo Neruda (1904-1973), guardadas em caixas-fortes a uma temperatura controlada entre 20 e 22 graus. Foram necessários três anos de trabalho ordenando, classificando e fotocopiando o material para que Oses e sua equipe descobrissem um tesouro. Entre as folhas amareladas, algumas recheadas com a caligrafia grande de Neruda, outras com textos batidos à máquina e corrigidos a punho, estavam 20 poemas inéditos, completamente desconhecidos do público e da crítica.

O tamanho da descoberta é proporcional à importância do autor. Vencedor do Nobel de Literatura em 1971, Neruda é um dos mais populares poetas da língua espanhola. Nascido na pequena cidade de Parral, no sul do Chile, filho de um ferroviário e de uma professora primária que morreu quando ele tinha 1 mês de idade, Neruda poderia ter se tornado um trabalhador comum, não fosse sua vocação para a literatura. Ele foi criado na cidade de Temuco, a 619 quilômetros de Santiago, para onde se mudou, anos depois, a também poeta Gabriela Mistral, que recebeu o Nobel de Literatura em 1945. O talento de Neruda foi alimentado pelo contato com a natureza e aflorou na escola aos 12 anos, quando escreveu seu primeiro poema. Da faculdade até a velhice, publicou 42 livros de poesia e prosa e ganhou diversos prêmios literários. Alto e magro num país de homens pequenos, desengonçado com as mulheres e avesso às coisas práticas, foi diplomata e militante comunista. Chegou a ser candidato à Presidência em 1969. Renunciou em favor de Salvador Allende, eleito no mesmo ano.

>> Segredos de Jorge Amado

Neruda morreu aos 69 anos, 12 dias após o golpe militar liderado por Augusto Pinochet em 11 de setembro. Alguns dizem que morreu de desgosto. Seu motorista, Manuel Araya, afirmou que ele fora assassinado com uma injeção letal no hospital Clínica Santa María de Santiago, onde se tratava de um câncer de próstata avançado. Após a exumação dos restos mortais de Neruda, realizada no ano passado por 11 especialistas chilenos e estrangeiros, chegou-se à conclusão de que a causa de sua morte foi mesmo o câncer.

Nos anos seguintes à morte de Neruda, diversos livros com poemas inéditos dele foram publicados. A autobiografia póstuma Confesso que vivi (1974) conta toda a sua trajetória. Duas publicações da editora Seix Barral recuperaram a poesia de sua juventude em O rio invisível (1980) e Cadernos de Temuco (1996). Faltava descobrir escritos inéditos de Neruda em sua maturidade.

Os poemas recém-descobertos, com data entre 1954 e 1973, trazem temas recorrentes na obra dele. Num deles, Neruda retrata em nove páginas a Cordilheira dos Andes. Em vários, enaltece o Chile, debruça-se sobre o povo e o cotidiano das ruas. Nos trabalhos inéditos, Neruda não deixa de fora sua paixão por objetos marinhos. Escreve sobre conchas, chifres de narval, âncoras e tantos outros objetos que ele amava e colecionava em sua casa de Isla Negra, na costa do Pacífico. Há um poema dedicado às carrancas que adornam os navios e outro sobre si mesmo quando jovem. Seis poemas inéditos são devotados ao amor. Dois deles são dedicados a sua terceira e última mulher, a cantora lírica Matilde Urrutia, a quem atribui o título de musa de sua obra. Noventa anos depois do lançamento do mais famoso livro de Neruda, Vinte poemas de amor e uma canção desesperada, de 1924, o público poderá descobrir novas facetas do romantismo dele.

>> O exílio de Paulo Coelho

Por que os poemas descobertos agora permaneceram inéditos? O pesquisador Oses acredita que essa nova leva não foi publicada por falta de tempo. Neruda escrevia os poemas em cadernos ou folhas soltas. Ordenava um depois do outro, como num livro, para publicá-los. Às vezes, reservava alguns desses poemas para livros diferentes daqueles em que trabalhava. “Alguns poemas não encontraram destino”, diz Oses. “Talvez ele estivesse esperando algum outro livro que não chegou a organizar antes de sua morte.” A outra hipótese é que Neruda tenha trabalhado o mesmo tema várias vezes, criando versões diferentes do mesmo poema. “Ele escolheu uma das versões para um de seus livros e guardou a outra para uma próxima compilação”, diz Oses.

>> Mais notícias sobre Literatura

A editora Seix Barral publicará os 20 textos inéditos no volume Poemas inéditos. Pablo Neruda. Ele chegará às livrarias latino-americanas no final deste ano e à Espanha no início de 2015. O lançamento coincide com o 110o aniversário de nascimento de Neruda e com os 90 anos de publicação de Vinte poemas de amor. Alguns leitores encaram esse tipo de lançamento com cautela. É costumeiro entre as editoras escavar os arquivos de seus autores mais prósperos em busca de um novo sucesso editorial. O interesse não é literário, mas meramente comercial. Os fãs de grandes escritores comprarão qualquer lançamento que carregue a palavra “inédito” na capa. Para se aproveitar disso, muitos herdeiros publicam textos incompletos que haviam sido rejeitados, em vida, por seus autores. Não é o caso de Neruda, aparentemente. Não foram encontrados nas folhas indícios de que ele não desejasse publicá-los. Não havia nenhuma marca de reprovação.
 

Poema  (Foto: Marcelo)

A pedido de ÉPOCA, o poeta Marcelo Tápia, diretor da Casa Guilherme de Almeida – Centro de Estudos de Tradução Literária, traduziu um trecho de um dos inéditos cedido pela Fundação (leia no quadro acima). O poema, sem título, é datado de 1964. Foi encontrado na caixa número 52 da biblioteca. Os originais são datilografados e não se encontrou uma versão manuscrita. “O conjunto de versos se liga à lírica amorosa do autor e é marcado pelo uso de metáforas e por seu teor simbólico”, afirma Tápia.

TESOURO PERDIDO Os originais de um dos poemas inéditos. Eles estavam escondidos nas caixas da Fundação Pablo Neruda (Foto: Reprodução)

Para o poeta espanhol Pere Gimferer, responsável pela edição do livro, os poemas se comparam em qualidade a obras célebres como Odes elementares, de 1954, e Estravagario, de 1958. “Eles mostram o poder imaginativo de Neruda, a paixão erótica ou amorosa, a sátira ou o mínimo detalhe do cotidiano transformados em poema”, diz. Se qualquer texto póstumo fraco e inacabado de um grande autor é capaz de levar multidões às livrarias, os fãs de Neruda tiveram sorte. Reencontrarão nessa descoberta o poeta em sua melhor forma.








especiais