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Eleanor Catton, da Nova Zelândia para a ficção

Eleanor Catton, da Nova Zelândia para a ficção

Com 28 anos e um romance premiado de 800 páginas, a neozelandesa Eleanor Catton mostra por que é uma das promessas de sua geração

DANILO VENTICINQUE
08/08/2014 - 07h00 - Atualizado 08/08/2014 07h00
SANGUE NOVO Eleanor Catton, em foto de 2011, em Wellington, na Nova Zelândia. Seu romance de mistério vendeu bem e foi elogiado pela crítica (Foto: Robert Catto / robertcatto.com)

Desde 2008, quando estreou na literatura com o elogiado romance O ensaio, a escritora neo­zelandesa Eleanor Catton é atormentada por um sonho recorrente. Num festival qualquer, um leitor imaginário levanta no meio da multidão e grita: “Você sabe que não foi você quem escreveu este livro, não?”. Ou outra acusação, menos grave, mas igualmente capaz de tirar o sono: “Você sabe que este livro não faz sentido, não sabe?”. A realidade, felizmente, tem sido mais generosa com Eleanor do que os sonhos. Aos 28 anos, ela é uma das grandes sensações da literatura mundial. Seu último romance, Os luminares (Biblioteca Azul, 888 páginas, R$ 69,90), venceu o cobiçado Man Booker Prize no ano passado e quebrou dois recordes: o livro mais longo e a autora mais jovem a ganhar o prêmio. O sucesso a tornou conhecida entre leitores do mundo inteiro e a arrastou para inúmeros eventos literários, com um público mais agradável que o imaginado por Eleanor em seus sonhos. A Festa Literária Internacional de Paraty (leia o quadro abaixo) foi o mais recente. Na quinta-feira (31), a cidade que já recebeu vencedores do Nobel, como Toni Morrisson, Orhan Pamuk e J.M. Coetzee, abriu espaço para que Catton cativasse a plateia e falasse sobre o romance com seu carregado sotaque neozelandês.

A cara da festa  (Foto: Reprodução)

Sorridente, de tênis cor-de-rosa, cabelos louros soltos e óculos de sol na cabeça, mais bronzeada que os americanos e europeus que costumam ser convidados à Flip, ela poderia se misturar facilmente à multidão de universitários que chegaram a Paraty para a festa. Ao contrário de medalhões que se tornam lacônicos depois de atingir a consagração literária, Eleanor não ficou menos tagarela. Na entrevista coletiva, teve um desempenho digno de quem escreveu um livro de 800 páginas. Cada pergunta originava uma palestra breve, às vezes não tão breve. Eleanor esgotava um tópico, mudava de assunto, esgotava o próximo e retomava o primeiro. “Dediquei cinco anos a Os luminares, mas só escrevi nos três últimos”, disse. “Usei os dois primeiros apenas para pesquisar sobre a história da Nova Zelândia, estudar astrologia e ler o maior número de romances vitorianos que consegui. Depois que comecei a escrever, o livro fluiu rápido. Em tudo o que eu escrevo, não importa o tamanho, as primeiras páginas sempre são as mais difíceis e demoradas.” Ela falou também sobre a extensão do livro. “É um contrato entre autor e leitor. O autor promete ocupar mais tempo do leitor e entregar em troca uma experiência digna do tempo investido. Quanto maior o livro, maior a promessa. Levei isso muito a sério. Quis criar um livro de mistério que cumprisse essa promessa.” Os luminares é uma paródia do romance vitoriano, permeada por influências da astrologia. Personagens aparecem, desaparecem, mudam e se influenciam de acordo com os planetas ou signos do zodíaco que representam. A estrutura dos capítulos também é ousada. Na edição original em inglês, cada uma das 12 partes ocupa metade do espaço dedicado à anterior. A primeira tem 360 páginas. A última, apenas duas. A forma complexa não impede que os mais desatentos se deixem simplesmente levar pela trama. Nela, moradores de uma cidade neozelandesa durante a corrida do ouro – por volta de 1860 – tentam desvendar dois mistérios: a morte de um eremita e o desaparecimento de um ricaço. Capítulo após capítulo, cada uma das pontas soltas da trama é amarrada.
 

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Não tive televisão. Meus pais diziam que eu agradeceria a eles quando crescesse, e é verdade"
Eleanor Catton, sobre sua infância

O sonho de Eleanor em que um leitor duvida da autoria de sua obra é compreensível. A erudição com que o livro reproduz a linguagem, os detalhes históricos da Nova Zelândia do século XIX e o domínio sobre a narrativa impressionam. Os luminares vendeu mais de 500 mil exemplares em todo o mundo e recebeu elogios de publicações de prestígio. “Um livro tão bom como esse nunca é longo demais”, afirma a resenha publicada no New York Times. “Catton é uma mestra do ritmo e do enredo”, diz a crítica do Telegraph. Diante de tamanha maestria, o ceticismo de alguns leitores é uma reação quase natural. Como alguém de apenas 28 anos conseguiu criar uma obra tão madura? “O engraçado da idade é que é algo sobre o qual eu não posso falar nada. Não tenho o menor controle sobre isso. Não escolhi ter 28 anos, ninguém pode ter uma idade diferente da que tem.”

A trajetória de Eleanor antes do sucesso ajuda a entender como ela fez o que fez. Filha de um filósofo americano apaixonado pela Nova Zelândia e de uma bibliotecária neozelandesa, ela herdou dos pais o interesse pela história e uma tendência a levar a vida à moda antiga. Cresceu na cidade de Christchurch, perto das montanhas do sul do país, e fazia expedições para descobrir paisagens. Não tinha carro nem televisão. “Meus pais diziam, com bom humor, que eu agradeceria a eles quando crescesse, e é verdade”, diz. Sem outra distração, ela dividia seu tempo livre entre os passeios pelas montanhas e os livros da mãe. Lia as histórias em quadrinhos de Asterix e Tintim e as aventuras de Harry Potter.

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Eleanor formou-se em literatura inglesa e emendou um mestrado em escrita criativa, ambos na Nova Zelândia. Os originais de O ensaio surgiram nas aulas da pós-graduação. Ambientado nos Estados Unidos, com uma trama basea­da num escândalo sexual no colégio, seu romance de estreia tem pouco a ver com Os luminares ou a Nova Zelândia. Rendeu elogios da imprensa inglesa e o título de “menina de ouro da ficção” a Eleanor, então com 22 anos.

Como O ensaio, Os luminares também foi produto de um curso de escrita criativa. A primeira versão foi escrita durante a participação de Eleanor no Iowa Writer’s Workshop, nos Estados Unidos. “Queria escrever um livro que se passasse no sul da Nova Zelândia durante a corrida do ouro”, diz. “Desde que era adolescente, essa era uma das coisas que eu adoraria ter visto.” As constelações que ela via com os pais em suas viagens às montanhas inspiraram outro aspecto importante do livro: a astrologia. “Não acredito que os astros ditam a personalidade, mas queria brincar com essa ideia”, afirma.

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Apesar do sucesso e dos elogios da imprensa internacional, nem todos os neozelandeses gostaram do trabalho. Alguns dos principais críticos puseram em dúvida o conhecimento histórico de Eleanor e criticaram o tamanho do livro. Ela atribui parte dessa reação inicial negativa ao machismo. “Não me sinto perseguida quando recebo uma crítica negativa, mas acredito que alguns dos primeiros críticos se recusaram a entender a proposta do livro. Essa recusa pareceu ter muito a ver com  meu sexo e minha idade”, diz. Apesar do discurso, ela não vê o sucesso como uma afirmação das mulheres. “Tenho orgulho de pensar que o senso de possibilidade das mulheres jovens pode crescer graças a Os luminares, mas também teria orgulho se isso acontecesse com qualquer leitor, não importa sexo, idade e origem.”

Em sua posição, outras escritoras poderiam aproveitar para se render ao glamour do mercado literário e mudar- se para Londres ou Nova York. Eleanor parece não se interessar por nada disso. Quer continuar em Auckland, na Nova Zelândia, onde dá aulas de escrita criativa e divide um apartamento alugado com seus gatos e o namorado, o poeta americano Steven Toussaint, que conheceu no curso em Iowa. Pensa em comprar um apartamento com a ajuda das £ 50 mil (pouco menos de R$ 200 mil) que recebeu quando ganhou o Man Booker Prize. Nada de se mudar para uma cidade mais badalada. “Muitos ficam surpresos por eu viver onde vivo, como se a Nova Zelândia fosse um lugar em que as pessoas nascem, mas não moram”, diz. “Quero preservar as amizades vitais para mim e manter o contato com minha família.” Longe do burburinho dos grandes centros literários, ela diz que tentará fugir de perguntas sobre dois assuntos que não aguenta mais: sua idade e o tamanho de seu livro. “Não quis quebrar nenhum recorde”, diz. O próximo romance será mais curto.

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Eleanor afirma que um escritor tem o direito de escrever um livro tão longo quanto Os luminares apenas uma vez na vida. Ela aproveitou bem a chance. 








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