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'Graça infinita', o melhor legado de David Foster Wallace

'Graça infinita', o melhor legado de David Foster Wallace

Chega ao Brasil o torrencial romance 'Graça infinita', obra-prima em 1.139 páginas do atormentado escritor americano

PAULO NOGUEIRA*
21/11/2014 - 07h01 - Atualizado 21/11/2014 07h01
David Foster Wallace (Foto: Marion Ettlinger/Corbis Outline)

No dia 12 de setembro de 2008, o escritor americano David Foster Wallace se enforcou em sua casa, aos 46 anos. Sucumbira a 20 anos de profunda depressão, consumo de drogas e álcool, doses cavalares do antidepressivo Nardil e excruciantes passagens por clínicas psiquiátricas. O calvário não o impediu de ser a voz literária mais assombrosa de sua geração.

Foi a mulher de Wallace, Karen Green, que encontrou o corpo do marido. Recentemente, ela publicou Bough down, poemas em prosa em que relata a espiral de luto privado e exposição pública que enfrentou depois da morte do marido. Recebido com êxtase compungido pela crítica dos Estados Unidos, o livro é arrepiante. Um trecho: “Tenho a impressão de que quebrei suas rótulas quando te puxei para baixo. Continuo a ouvir esse som. Quero você furioso com os políticos, quero você tentando me manipular para lhe fazer favores que eu faria de qualquer maneira. Quero você procurando os óculos, quero você tentando não gozar, quero você ficando com espinafres entre os caninos e a gengiva, resmungando com minha tagarelice ou com minha mãe. Não te quero em paz. Não essa paz”.

As cinzas de Wallace foram espalhadas na ilha chilena de Masafuera (a ilha do Robinson Crusoé histórico, Alexander Selkirk) pelo amigo e também romancista Jonathan Franzen. Em seguida, Franzen escreveu na revista The New Yorker: “O establishment literário nunca escolheu David para um prêmio nacional, e agora o declara um tesouro do país”. É como diz Machado de Assis no conto O empréstimo: “Agora que ele está morto, podemos elogiá-lo à vontade”. Em 2012, Wallace foi finalista do Prêmio Pulitzer com o romance The pale king, cujo manuscrito incompleto o editor exumou da garagem e publicou postumamente.

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O panteão literário é um terreno tão movediço e competitivo que mesmo o leal Franzen pisou na bola. Numa conversa com o editor da New Yorker, David Remnick, Franzen disse que Wallace falsificava uma parte de sua prosa de não ficção. Acontece que o próprio Wallace reconhecera o fato numa entrevista à revista on-line Salon: “Se você contrata um ficcionista para escrever não ficção, claro que haverá um pouco de polimento ocasional”. A técnica de colagem tem tudo a ver com a carpintaria literária de Wallace, desde que ele rabiscou sua primeira vogal.
 

VISCERAL A capa da edição brasileira de Graça infinita e foto de seu autor, em 2001. Seu livro tem uma linguagem rebuscada e traz personagens viscerais (Foto: Divulgação)

Acaba de sair no Brasil a opus magnum de Wallace, o torrencial Graça infinita (Cia. das Letras, 1.139 páginas, R$ 112), um dos romances-evento da história da literatura. Foi escrito aos 33 anos, depois de ele tentar se refugiar no ensaio e na cátedra, insuficientes para quem queria inventar uma nova maneira de urdir a narrativa literária.      

As livrarias brasileiras já dispunham de duas obras de Wallace. Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo (título lúgubre e premonitório) reúne reportagens publicadas na imprensa americana, um suntuoso banquete verbal que vai de um cruzeiro de luxo pelo Caribe a um festival da lagosta, passando por um perfil cubista do tenista Roger Federer. A tradução e o prefácio são de Daniel Galera, um dos inúmeros escritores brasileiros contemporâneos que assumem a influência de Wallace.

A segunda obra de Wallace editada no Brasil é Breves entrevistas com homens hediondos. São 23 contos, uma antologia em que transparece um cacoe­te proverbial dele: a incontinência gorgolejante de notas de rodapé, que incluem notas de rodapé às notas de rodapé. E aquele estilo inconfundível até numa vírgula, que vai da matemática fractal à gíria mais mequetrefe.
A tradução de uma obra tão obcecada com a linguagem como Graça infinita é um desafio temível – tanto que o romance ainda não foi editado na ultraliterária França (e a tradução alemã levou quatro anos). A começar pelo próprio título original, Infinite jest, retirado de uma fala do quinto ato de Hamlet, quando o príncipe dinamarquês segura a caveira de Yorick, o bobo da corte: “I knew him, Horatio; a fellow of infinite jest, of most excelente fancy” (“Eu o conheci, Horatio, um cara sempre brincalhão, cheio de imaginação”). Em Portugal, o título virou Piada infinita. No Brasil, o curitibano Caetano Galindo, responsável pela melhor tradução em português do não menos intimidante Ulisses, de James Joyce, optou por Graça infinita, talvez seguindo Millôr Fernandes, que fez o mesmo em sua versão de Hamlet.

A trama de Graça infinita, não retilínea e caleidoscópica, começa num futuro próximo, pouco depois do assassinato do presidente Limbaugh. Os EUA integram uma confederação, a Onan (ressonâncias com onanismo...), com o Canadá e o México. Parte da Nova Inglaterra é um enclave de um grupo de separatistas do Québec. Somos apresentados a Harold Incandenza, de 18 anos, prodígio do tênis com uma cultura enciclopédica e maconheiro inveterado. Hal é filho de Avril Mondragon, catedrática implacável com as palavras e as regras gramaticais (baseada na mãe do próprio Wallace). O pai é James O. Incandenza, fundador da faculdade e alcoólatra que, no fim da vida, arruinara o patrimônio familiar e explodira sua cabeça num micro-ondas. Por fim, Hal é irmão de Orion, um jogador de futebol americano, e de Mario, o caçulinha deficiente.

A cronologia errática do romance corresponde, tim-tim por tim-tim, aos valores de uma sociedade que promove a evasão. Na crise ditada pela morte do presidente Limbaugh, o calendário americano foi vendido à publicidade. Os anos são identificados pelas marcas que o compraram (uma paródia à Revolução Francesa, que criou nomes de meses virtuosos e estapafúrdios), incluindo uma marca de cuecas e lingerie.

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A palavra-chave de Graça infinita talvez seja entretenimento – e não num sentido hedonista. Wallace descreve uma América tão subjugada pelo entretenimento que um filme eletrizante vira arma terrorista, suscetível de fazer os espectadores morrer de prazer. Não é à toa que os radicais separatistas escolhem aquela ameaça: na sociedade descrita no livro, as substâncias tóxicas são as recreativas – sejam séries de televisão, remédios (o autor sabe tudo sobre eles) ou resorts de férias.

O reconfortante em Wallace é que, apesar de todo seu estonteante virtuosismo técnico, ele não se reduz a um escritor para escritores (como, em certa medida, são Joyce ou Thomas Pynchon, com quem Wallace costuma ser comparado). Não obstante a obsessão dele com o infinito no infinitesimal (em descrições quase pontilhistas), Wallace conjuga a pirotecnia pós-moderna, fascinada com os próprios códigos narrativos, com a boa e velha fabulação de quem tem realmente uma história apaixonante para contar. É isso que, desde Homero e aquele cavalo de madeira, agarra o leitor pelos colarinhos e o faz salivar pelo próximo parágrafo.

Wallace é exímio na criação de personagens de uma humanidade visceral e idiossincrática, fervilhando de vidas emocionalmente tridimensionais. Foi ele que, num libelo-manifesto, engastado num ensaio sobre Kafka, deplorou o cinismo cabotino “dos agentes do desespero e marasmo na vida cultural americana”, bem como o desinteresse pelas questões morais que inspiraram os grandes autores do século XIX.

Como afirmou Michiko Kakutani, crítica literária do The New York Times, em Graça infinita Wallace transcendeu a famosa divisão de escritores entre “mandarins” (como Proust, de prosa ornamental e até bizantina) e “vernaculares” (como Hemingway, que preferiu construções mais coloquiais). Como Wallace sugere no desfecho do tristíssimo romance The pale king, a felicidade é a capacidade de prestar atenção, de viver o momento presente, de encontrar “a cada segundo o júbilo e a gratidão pelo dom de estar vivo”. O fato de o autor dessas linhas ter se enforcado é um problema tanto dele quanto da sociedade que tão ele admiravelmente descreveu – e, volta e meia, amou.

*Paulo Nogueira é escritor, autor do romance O amor é um lugar comum








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