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O filme "Cinquenta tons de cinza" e o chicotinho que não machuca ninguém

O filme "Cinquenta tons de cinza" e o chicotinho que não machuca ninguém

O temível sadomasoquista Christian Grey se transforma num garoto bonitinho – mas para lá de ordinário

SERGIO GARCIA E NINA FINCO
20/02/2015 - 08h02 - Atualizado 24/07/2015 17h14
COMPORTADOS Anastasia e Christian Gray em cena não  tão tórrida.  O casal tépido não inspira  nem escandaliza  (Foto: Graeme Reynolds )

Poucos filmes causam tanto estrondo quanto os que unem despudor e pretensão artística. O novo representante dessa série é Cinquenta tons de cinza, que chegou ao Brasil nesta semana. A pretensão artística está expressa, entre outras coisas, na escolha da diretora. A inglesa Sam Taylor-Johnson é uma fotógrafa e artista plástica de relativo sucesso, com participação na Bienal de Veneza de 1997. O despudor está na quantidade de cenas de sexo. Elas ocupam 16 minutos, 11,4% do filme – proporcionalmente, mais que em clássicos do erotismo como Último tango em Paris ou os recentes Ninfomaníaca e Azul é a cor mais quente (leia o quadro abaixo). Só que no cinema, como no sexo, quantidade não é sinônimo de qualidade. Cinquenta tons de cinza não emociona como Último tango em Paris, não encanta o espectador com a beleza estética das cenas de sexo como Azul é a cor mais quente, nem é provocativo como Ninfomaníaca. Está para os filmes eróticos como a posição missionária para o sexo. Só sai do papai e mamãe burocrático em alguns momentos de humor. Apropriadíssimos, aliás – afinal, que mulher não gargalharia de um galã franzino  (o ator Jamie Dornan) que, adepto de um chicotinho, a convidasse para um tal “quarto vermelho da dor”?

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A diretora Sam, coitada, bem que tentou. O filme Cinquenta tons de cinza faz alterações despudoradas no best-seller que lhe deu origem – o livro de E.L. James arregimentou mais de 100 milhões de leitores no mundo inteiro. De um lado, as mudanças resultam em diálogos mais enxutos e numa trama mais ágil. De outro, o roteiro emasculou o chicotinho do protagonista, o bilionário priápico Christian Grey – que, na tela, não machuca ninguém. Relembremos a trama, um conto de fadas incomum, em que o príncipe encantado é, na verdade, um lobo mau tarado. Grey é o presidente de um conglomerado industrial com sede em Seattle. Muito reservado, seco ao extremo no trato e acostumado a mandar com mão de ferro em tudo e todos, Christian vê sua vida mudar ao conhecer Anastasia Steele (Dakota Johnson), uma jovem estudante que vai entrevistá-lo e se encanta por ele. Só que o empresário de olhar levemente alucinado se mostra um sujeito esquisitão. Bonito e bem-sucedido, ele nunca teve uma namorada. Grey não dispensa as mulheres, apenas reserva a elas uma relação insólita. Não quer romance nem afeto, mas, sim, uma escrava sexual de papel passado. Para práticas sadomasoquistas. Ele, dominador; ela, submissa. Grey é chegado em toda sorte de engrenagens para causar dor ritualística: chicotes, algemas, cordas (e até camas).

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Só que, no filme, o temível Grey do livro não mete medo em ninguém – muito menos em Anastasia. Embora jovem e inexperiente (virgem, na verdade, aos 21 anos, quase no fim da faculdade...), ela consegue se impor ao bicho-papão de chicotinho. “No filme há quase uma inversão de papéis. A partir do momento em que Grey necessita que Anastasia seja a submissa, sem que ela ceda, é ele quem se torna o submisso”, diz a sexóloga e psiquiatra Carmita Abdo, da Universidade de São Paulo. Quem for à sessão esperando ver uma sequência de cenas de sexo vai se decepcionar. Enormemente. As cenas não primam pelo realismo ou pela revelação. Chegam a ser contidas, se comparadas às imagens fortes de Ninfomaníaca ou Azul é a cor mais quente. Um crítico do jornal inglês The Guardian queixou-se da ausência de pênis no filme. Trata-se, provavelmente, de uma estratégia para angariar mais público. A ideia é que Cinquenta tons de cinza possa ser visto por menores de idade.

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Ah, que saudade do tempo em que os filmes eróticos eram proibidos para menores. Último tango em Paris, lançado em 1972, descreve a fúria sexual de dois amantes que se conhecem por acaso na capital francesa. Dirigido pelo italiano Bernardo Bertolucci, o filme legou passagens que figuram na antologia do cinema. São marcantes o monólogo do protagonista, o magistral Marlon Brando, diante do corpo da mulher morta e a sequência em que ele besunta a amante com manteiga. Com seu ímpeto e poesia, Último tango foi considerado pela americana Pauline Kael, cânone da crítica à época, o filme mais libertador já feito. Outra obra da mesma década que deu o que falar foi o japonês O império dos sentidos, uma trama com temperatura sexual incandescente. O filme de Nagisa Oshima joga com vários mitos do Oriente e do Ocidente – e a cena em que a personagem principal, Sada, castra o amante e sai às ruas com seu pênis nas mãos é inesquecível. Mais recentes, mas da mesma forma controversos, são Azul é a cor mais quente, com direito a uma longa cena de sexo lésbico, e a cinessérie Ninfomaníaca, que deixa o espectador aturdido ao mostrar a obsessão sexual da personagem.

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“Quando li o roteiro, me perguntei qual seria o coração desse conto de fadas obscuro. A parte do sexo chamou a atenção, pois era o que todos comentavam”, disse em entrevistas a diretora  Sam Taylor-Johnson. “Pensei: se pudesse pegar essa garota virginal e fortalecê-la a ponto de não deixá-la como vítima, então o trabalho estaria feito.” Essa opção da cineasta deixou o clima cinzento entre ela e a autora E.L. James, que é também coprodutora do filme. Sam diz que “por enquanto” não quer nem ouvir falar de dirigir as sequências. Antes de Cinquenta tons de cinza, a diretora tinha uma trajetória tímida no cinema. Sua obra de maior projeção foi O garoto de Liverpool (2009), um longa-metragem sobre o jovem John Lennon. O papel principal coube a Aaron Johnson, com quem ela se casaria logo depois, a despeito da diferença de idade: ela tem 47 anos, e ele 24.

Cinquenta tons de cinza não vai estigmatizar sua diretora e suas atrizes (como aconteceu com Último tango e Império dos sentidos) nem será intensamente discutido como foram Ninfomaníaca ou Azul é a cor mais quente. Vai ser visto pelo mesmo público do livro, não vai provocar nenhum escândalo – o que é a morte para uma produção erótica com pretensões artísticas – e será logo esquecido. Comparado aos clássicos do erotismo que vieram antes dele, o filme se atém às preliminares, sem nunca chegar lá. Como o Christian Gray de Jamie Dornan, com rosto e físico de cantor de banda adolescente, Cinquenta tons de cinza é um filme bonitinho, mas para lá de ordinário.








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