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Woody Allen: “Faço filmes para distrair as pessoas dos horrores”

Woody Allen: “Faço filmes para distrair as pessoas dos horrores”

O cineasta, que estreou uma nova produção no Festival de Cannes, diz que filosofia – ao lado das mulheres, do jazz e da mágica – é uma das paixões de sua vida

RODRIGO FONSECA| DE CANNES
29/05/2015 - 08h00 - Atualizado 29/05/2015 08h00
Woody Allen, aos 79 anos, fala sobre o filme 'O homem irracional' (Foto: Platon/Trunk Archive)

Woody Allen botou o Festival de Cannes no bolso com seu novo filme, O homem irracional. Em entrevista a ÉPOCA, o diretor (cujo nome verdadeiro é Allan Stewart Konigsberg) falou sobre a boa recepção ao filme. Do auge de seus 79 anos (ele chega aos 80 no dia 1º de dezembro), Woody compartilha suas reflexões sobre arte, medo da morte e métodos para lidar com atores.

ÉPOCA –  Qual é a sensação de estar às portas dos 80 anos com 46 filmes no currículo, mas ainda com uma série de TV sob encomenda da Amazon TV e um longa-metragem novo em produção para 2016?     
Woody Allen –
Este meu filme novo, O homem irracional, fala muito sobre os existencialistas, filósofos que, ao contrário dos pensadores precedentes, fizeram da ação algo tão importante quanto a reflexão. Jean-Paul Sartre, por exemplo, teve uma vida agitada. Isso impediu que ele se prostrasse aos horrores do real. A realidade é dura. Você saiu do cinema, de duas horas de prazer, e é atropelado por tragédias das quais o pensamento não dá conta. Eu sigo fazendo filmes porque o papel da arte é criar uma alternativa para distrair as pessoas dos horrores da realidade. Aceitei fazer essa série de TV, mas não entendo desse meio, a televisão, portanto acho que vai ser catastrófico. Mas, de qualquer forma, o que eu fizer vai ser um meio de oferecer distração.

ÉPOCA – Para a crítica, entretanto, o que o senhor faz é visto como algo muito além de “distração”. Usa-se sempre a palavra gênio para descrevê-lo.
Woody –
Se eu sou um gênio, Rembrandt é o quê? E Dostoiévski? Passei a vida tentando ser um diretor sério, de filmes densos, e isso nunca foi aceito: queriam de mim comédias. O que você vê de bom em meus filmes não sou eu: é aquilo que meus fotógrafos enquadram. Tive a sorte de trabalhar com alguns dos melhores, como Gordon Willis, Carlo Di Palma e agora Darius Khondji, que fotografou O homem irracional. Fotógrafos e grandes atores fizeram o melhor de mim. No cinema, aprendi uma lição: escale bem sua equipe e seu elenco e deixe que eles deem o melhor de si sem atrapalhar.

ÉPOCA – Como o senhor lida com atores como Joaquin Phoenix,  um dos melhores de sua geração?
Woody –
Minha relação com os atores é sempre muito profissional, limitada ao set. Muitas vezes eu só vejo o que eles me deram de melhor na ilha de montagem. Filmei Blue Jasmine com Cate Blanchett, pelo qual ela ganhou um Oscar, e nunca mais voltei a vê-la. E isso porque passei muito tempo com o desejo de fazer um filme com ela e com Reese Witherspoon, com quem ainda não tive a oportunidade de trabalhar. Joaquin ajudou a fazer de Abe Lucas uma figura que traduz um dilema da filosofia: nem sempre aquilo que a teoria prega como saída harmoniosa para a tolerância entre os homens funciona na prática, principalmente quando a morte está envolvida. O homem irracional é um filme sobre a distância entre a prática e a teoria, que mostra quanto a filosofia ficou estagnada em seus conceitos.

"Fazendo cinema, eu encontro meios de adocicar o que há de amargo na vida"
 

ÉPOCA – O senhor cita em O homem irracional conceitos de pensadores como Kant, Kierkegaard e Heidegger de uma forma simples e bem-humorada que levou Cannes às gargalhadas. Quanto o senhor pesquisou sobre a história da filosofia para escrever essa trama?
Woody – 
Eu nunca faço pesquisa para nenhum filme que faço, pois só sei escrever sobre algo com o qual tenho alguma intimidade. Algo que me apaixone. Tenho quatro paixões na vida: jazz, mágica, mulher e filosofia. Os filósofos me divertem, pois às vezes encontro algo de romântico neles. Os filósofos do pós-guerra, por exemplo, têm algo quase teatral no modo de encarar a vida. O pensamento, expresso como uma ideologia, oferece um caminho para que uma pessoa se agarre perante o mistério assustador da morte.

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ÉPOCA –  O que a morte representa para o senhor?
Woody –
Rever filmes do Fred Astaire é algo que me ajuda a não pensar na morte. Eu podia, agora, com 79 anos, parar de filmar, mudar para uma praia e ficar o dia todo sentado pensando: “Como eu vou morrer? E se eu contrair ebola?”. Mas não quero isso. Quero pensar esteticamente as questões que me instigam. Fazendo cinema, eu encontro meios de adocicar o que há de amargo na vida, pelo menos para os outros, pois nunca revejo meus filmes. Se eu revir algum, vou ficar pensando no que errei.

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ÉPOCA –  A trama de O homem irracional trata de um crime. É comum em sua obra a recorrência de filmes nos quais os personagens cometem assassinatos, roubos.  De onde vem essa ligação com histórias criminais?
Woody –
De certa forma, tudo vem da leitura de Dostoiévski, pelo modo de ele tratar os dilemas do real como se um crime estivesse sempre a acontecer nas decisões extremas do mundo. Se no cinema tenho em Bergman e Fellini meus faróis, os russos são minha bússola quando se pensa na palavra escrita. Mas talvez isso tenha a ver com a estetização do crime. Em O homem irracional, o personagem de Joaquin usa toda a história da filosofia, do idealismo de Platão até os conceitos modernos de Heidegger, a fim de dar ao crime que espera cometer uma justificativa e uma estetização. Os crimes, quando pensados, planejados com requinte, têm uma dimensão estilizada, para espelhar as peculiaridades dos criminosos. Não seria capaz de cometer um crime, até por ser um sujeito paranoico. Em geral, já embarco com facilidade na sensação de que pode haver alguém querendo me pegar. Sou do tipo que fecha a janela quando está em casa e se certifica de que ela está fechada por segurança. Por isso, seria impraticável cometer um crime qualquer. Mas gosto de imaginar meios de como representar um crime no cinema.   

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ÉPOCA – Como funciona seu método de trabalho, que lhe permite fazer um longa-metragem por ano?
Woody –
Eu anoto coisas, ideias, situações com as quais deparo, perfis de personagem. Guardo essas anotações em uma gaveta e, de tempos em tempos, eu as revisito, para ver o que elas podem me oferecer. Muitas vezes, nem me lembro mais do que anotei. Por isso, quando uma ideia é boa, ela ainda pode me surpreender anos depois. Foi assim com Meia-noite em Paris. Pensei naquela ideia de um homem que revisita diferentes épocas da tradição literária muito tempo antes e deixei na gaveta. Na hora certa, quando surgiu a chance de fazer um filme na França, aquelas propostas foram úteis.  Existe também um método peculiar meu de montagem, quando, efetivamente, meus filmes nascem.

ÉPOCA – E qual é esse método?
Woody –
Eu vou para a ilha de edição levando vários discos. Escuto um atrás do outro. Às vezes, vários ao mesmo tempo. Vou escutando as músicas em função de cada cena para ver se há necessidade de preencher a imagem com uma trilha. Se não, eu deixo que a música me revele o tom da cena.

ÉPOCA – Cada vez mais, o senhor tem deixado de atuar em seus filmes e criado figuras narradoras que contam ou comentam as histórias.  Por que esse recurso?
Woody –
É um meio de realçar a introspecção dos personagens. É um recurso que tirei da literatura e que vi ser muito bem usado no cinema por um mestre: Billy Wilder. Billy também queria ser um diretor de dramas, de histórias sérias. Mas é mais conhecido por suas comédias, como Quanto mais quente melhor. Ele tinha uma relação forte com a literatura e aprendeu nos livros o valor do narrador, como essa figura pode abrir novas camadas de significado.

ÉPOCA –  Emma Stone virou sua diva. O que ensinou a ela com seu processo de filmar?
Woody –
Eu não ensino nada. Primeiro porque, na arte, qualquer aprendizado é intuitivo, inconsciente. Depois… Emma já chegou para mim com o talento lapidado. Eu só convoco gente talentosa. Meus atores protagonistas, no geral, já tinham uma carreira estabelecida antes de mim, e seguiram a sua própria maneira, com escolhas particulares, depois do que filmaram comigo. Tento apenas contar histórias que valorizem aquilo que os personagens sentem e pensam. Nada mais.

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ÉPOCA –  Emma pode seguir os passos de suas musas anteriores, como Diane Keaton, Mia Farrow e Scarlett Johansson, com quem o senhor trabalhou várias vezes?
Woody –
Poderia sim trabalhar com ela de novo, pois Emma tem a habilidade de me entregar algo muito mais refinado do que eu poderia esperar. Mas não existe nada definido. Tenho agora projetos em andamento nos quais ela não está. Como falei, minha relação com os atores é trabalho... e só.  Eu descobri a existência de Emma ao zapear a TV, numa manhã em que estava em casa, fazendo exercícios físicos, sem muita paciência. Por acaso, parei num canal que exibia um filme mais antigo dela e, quando dei por mim, não conseguia tirar os olhos da tela, encantado pela agilidade que ela tem atuando em cenas de humor. A gente se entende porque falamos a língua do humor. 








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