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'O livro do destino' mostra a evolução das mulheres na sociedade iraniana

'O livro do destino' mostra a evolução das mulheres na sociedade iraniana

No Irã, as mulheres estudam, trabalham e podem pedir divórcio. Mas ainda enfrentam a opressão da tradição no dia a dia

NINA FINCO, COM RUAN DE SOUSA GABRIEL
03/07/2015 - 09h23 - Atualizado 03/07/2015 09h23

A família de Massoumeh se mudou para Teerã, a capital iraniana, no final dos anos 1960, uma década antes da revolução que derrubou a monarquia pró-Ocidente do xá Reza Pahlevi. Por ser menina, a estudiosa Massoumeh ocupava a posição mais baixa na hierarquia familiar e morria de medo de seus irmãos mais velhos – um fanático religioso e um bêbado –, que acreditavam que o clima liberal de Teerã corromperia a adolescente. A honra dela era um bem familiar, guardado ciosamente pelos homens da casa.

Massoumeh é a protagonista de O livro do destino (Bertrand Brasil, 462 páginas, R$ 49,90), romance da iraniana Parinoush Saniee – a narrativa acompanha a trajetória de Massoumeh até os primeiros anos do século XXI e envolve casamentos forçados, revolucionários marxistas, guerras, sacrifícios femininos e conflitos entre a tradição e vontade individual. O livro do destino é um retrato das mudanças pelas quais a sociedade iraniana passou nos últimos 50 anos – um retrato pintado, com precisão e delicadeza, por uma mulher.

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Parinoush, a autora, é socióloga. Ela  trabalhou no Ministério do Trabalho do Irã, onde conduziu uma pesquisa sobre as dificuldades enfrentadas pelas mulheres para se inserir na sociedade. Os dados foram compilados em relatórios que ninguém lia. Por isso, ela decidiu escrever o romance, para ser lida:  “Massoumeh simboliza uma geração que tentou tomar as próprias decisões, mas teve de se submeter à tradição”.

No romance, depois de obter autorização do pai e do marido, Massoumeh continuou os estudos na universidade, como fizeram muitas mulheres de sua geração. Mais da metade dos universitários iranianos são mulheres. Elas representam 65% das matrículas nos cursos de humanidades. Essa presença impressiona os ocidentais, que costumam associar o Irã ao apedrejamento de adúlteras e às burcas que cobrem os corpos femininos. “A República Islâmica não esperava que, um dia, teríamos mais mulheres educadas do que homens”, afirma Haleh Esfandiari, pesquisadora iraniana-americana do Woodrow Wilson Center, nos Estados Unidos. Isso aconteceu porque o acesso à educação virou bandeira de propaganda do regime, que queria mostrar que a tradição islâmica não impedia o progresso das mulheres. Elas ocuparam o espaço.

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As iranianas podem dirigir, trabalhar, pedir o divórcio e obter a guarda dos filhos. São direitos inimagináveis em outros países do Oriente Médio, como a Arábia Saudita, onde as mulheres precisam da autorização masculina para trabalhar e são proibidas de conduzir automóveis. Ainda assim, no Irã, os homens têm prioridade na divisão da herança e seu testemunho judicial tem mais valor que o delas. Adulta, Massoumeh é impedida de fazer o que deseja por seus filhos, que ela educou de forma liberal.  “As iranianas recuperam alguns dos direitos que perderam depois da revolução, mas tiveram de lutar muito por isso”, diz Haleh.

Os iranianos vivem duas vidas: uma pública e uma privada. Os milhares de antenas parabólicas que enfeitam os telhados das casas em Teerã provam que os iranianos assistem aos programas proibidos pelo governo. Apesar da censura à internet, são ativos nas redes sociais. Os dilemas entre o que é permitido às mulheres dentro e fora de casa e as contradições do regime teocrático marcam os conflitos enfrentados por Massoumeh em O livro do destino, que também teve de desafiar os aiatolás para chegar às livrarias. Em 2003, quando o presidente era Mohammad Khatami, um clérigo reformista que conquistou o voto feminino, cada editora recebeu a permissão de publicar um título sem autorização prévia. Foi assim que O livro, que havia sido censurado, veio à luz.

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Em 2005, o romance já havia sido reimpresso 14 vezes, mas o novo presidente era o linha-dura Mahmoud Ahmadinejad. A circulação foi proibida. Parinoush recorreu da decisão com a ajuda de Shirin Ebadi, advogada e ativista dos direitos humanos que recebeu o Nobel da Paz em 2003. Elas venceram. O livro do destino tornou-se o maior best-seller da história do Irã.  “As iranianas são ávidas leitoras e muitas se enxergam na protagonista do livro. Eu perdi a conta de quantas leitoras me disseram que essa é a história da vida delas”, afirma a autora. “Eu ouso dizer que as mulheres são a mais importante força de resistência na luta pelos direitos humanos no Irã.”  Haleh concorda: “A geração mais jovem – e, especialmente, as mulheres – é o grande instrumento da mudança no Irã”. 

A socióloga iraniana Parinoush Saniee (acima). Ela retratou em livro (no detalhe) a vida e o sentimento das mulheres de seu país (Foto: Divulgação)
sem véu A socióloga iraniana Parinoush Saniee (acima). Ela retratou em livro (no detalhe) a vida e o sentimento das mulheres de seu país (Foto: Divulgação)







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