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Valter Hugo Mãe: “A melhor coisa que os portugueses fizeram foi o Brasil”

Valter Hugo Mãe: “A melhor coisa que os portugueses fizeram foi o Brasil”

O escritor, um dos expoentes da nova literatura portuguesa, quer escrever um livro que se passe no Brasil

RUAN DE SOUSA GABRIEL
07/08/2015 - 20h02 - Atualizado 07/08/2015 20h02

José Saramago (1922-2010), o único escritor de língua portuguesa a ganhar o Prêmio Nobel da Literatura, definiu Valter Hugo Mãe, de 43 anos, como um "tsunami linguístico". O autor, nascido em Angola, mas radicado em Portugal desde a infância, publicou quatro livros sem nenhuma letra maiúscula – a “tetralogia das minúsculas” -, lançados entre 2004 e 2010. Nesse período, assinava valter hugo mãe – assim mesmo, em minúsculas, em sinal de humildade literária.

Contar com o elogio de Saramago, um mito da literatura, já credenciaria Mãe como um dos expoentes da nova literatura portuguesa. Mas, além de prêmios importantes em sua biolografia - Saramago (2007) e Portugal Telecom (2012) -,  Mãe ainda conta a admiração do público e da crítica. Seus livros são uma reflexão sobre a linguagem, a memória, a morte, a solidão e, é claro, Portugal. “A melhor coisa que os portugueses fizeram foi o Brasil”, diz Mãe, que está no Brasil até domigo, após participar do evento Fronteiras do Pensamento, em Porto Alegre, na última segunda-feira (3). "O brasileiro não tem consciência do quanto é próximo do português". Leia a entrevista a seguir:

O escritor Valter Hugo Mãe. Ele diz que os brasileiros são mais parecidos com os portugueses do que imaginam (Foto: Rita Rocha)

ÉPOCA - Na conferência do Fronteiras do Pensamento que proferiu em Porto Alegre, na última segunda-feira (3), o senhor afirmou que o bom-mocismo pode ser uma forma de resistir ao individualismo crescente da sociedade. Como o bom-mocismo pode nos salvar?
Valter Hugo Mãe - Eu combato a tirania da individualidade. Cada um de nós é uma figura coletiva e a única forma de reclamarmos uma identidade humana é termos em conta os outros. Parece que criamos uma euforia por nós mesmos e quase nos convencemos de que somos autossuficientes e podemos rejeitar os outros. Essa solidão extrema como objetivo é uma forma desumanização.

ÉPOCA - É por isso que o senhor inverteu o aforismo do filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980), que escreveu que “o inferno são os outros”, e escreveu um livro infantil chamado O paraíso são os outros (Cosac Naify, 32 páginas, R$36,90)?
Mãe - É exatamente isso. O paraíso são os outros é uma espécie de versão para crianças do romance A desumanização (Cosac Naify, 224 páginas, R$34,90). Eu tenho estado a trabalhar essa ideia de desmontar algumas verdades que nós tomamos como reais só porque elas são muito repetidas. Propagar a ideia de que o ser humano é atroz e vai ser sempre uma coisa terrível é fomentar e naturalizar uma característica que eu não aceito como sendo humana. A oportunidade de praticarmos o contrário da atrocidade é o que nos humaniza. Eu acho, no mínimo, muito chata a pessoa que acredita que o indivíduo horrível é a definição pura do ser humano.

ÉPOCA - O senhor acha que essa defesa do bom-mocismo e da coletividade precisa ser ouvida na Europa, que vive uma crise econômica e social, e onde a imigração voltou a ser uma questão e rivalidades históricas estão sendo recuperadas?
Mãe - Nós precisamos regressar a um ponto que nos lembre porque perseguimos a União Europeia. Temos de lembrar as intenções dos diversos povos que, num determinado tempo, foram, efetivamente, de aproximação, comunhão, equiparação e igualdade de oportunidades. Percebemos hoje que a União Europeia não foi criada como uma união de cidadãos, mas como uma união de consumidores. A partir do momento em que falha alguma coisa na economia, a construção da utopia de liberdade e igualdade falha imediatamente. Existia, da parte dos políticos, apenas hipocrisia. Eles estão tentando trocar uma ideia de liberdade por um mercado. Por meio dessa estratégia, a Alemanha conseguiu dominar financeiramente a Europa. É de uma obscenidade!

ÉPOCA - Em a máquina de fazer espanhóis (Cosac Naify, 256 páginas, R$38,90), o senhor escreveu que “os portugueses são cidadãos não praticantes”. O senhor ainda concorda com essa afirmação ou mudou alguma coisa?
Mãe - Há uma tendência de acomodação. Os portugueses são tão imediatamente cordiais que conseguem ficar observando respeitosamente uma coisa que é só má para eles. Nós temos uma revolução que foi feita com flores [a Revolução dos Cravos, de 25 de abril de 1974, que depôs a ditadura fascista]. Nenhum povo no mundo fez uma revolução só com flores em que a única pessoa que morreu morreu de comoção! Isso diz muito da paciência e da capacidade de resistência dos portugueses. Podemos ver isso como uma falta de cidadania. Quando eu digo que, eventualmente, podemos ser um pouco como cidadãos não praticantes, é que quero ver uma certa revolta, uma certa expressividade. Eu escrevo muito em busca da expressividade.

ÉPOCA - Por que os portugueses têm essa tendência de acomodação?
Mãe - Os portugueses têm a percepção de que fomos uma das mais importantes nações do planeta e hoje somos um pequeno país que, acima de tudo, deve-se manter pacífico e calmo. O fundamental para esse povo é manter a paz. Num certo sentido, isso é admirável. Mas, quando você se depara com alguma coisa que é nojenta, é um pouco chato que as pessoas tenham medo de falar ou de se comprometer e não queiram lutar por alguma coisa.

ÉPOCA - O Brasil se vê como um país pacífico, conciliador, avesso a rupturas. O senhor acha que os brasileiros herdaram essas características dos nossos antepassados portugueses?
Mãe - Com certeza. Nós costumamos dizer, em Portugal, que a melhor coisa que os portugueses fizeram foi o Brasil [risos]. Há essa ideia de que a grande construção portuguesa que deu certo – ou que tenha a possibilidade de dar certo – foi o Brasil. Uma das coisas que eu percebo no Brasil é que o brasileiro não tem consciência do quanto é próximo do português. A primeira coisa que os brasileiros falam quando chegam a Portugal é que reconhecem a gastronomia, que julgavam ser a tradicional comida mineira, mas que existe há 700 anos num determinado lugar em Portugal.

ÉPOCA - Essa herança que faz de nós um povo pacífico e pouco propenso a revoltas é positiva ou negativa?
Mãe - Tem o lado positivo de transformar o povo num povo maravilhoso, que não quer incomodar ninguém nem ser incomodado, que prefere sempre estar bem e não ir à guerra. Por outro lado, de vez em quando, é inevitável ter a coragem para falar alguma coisa. A gente tem de acusar, de chamar a atenção. Se o povo está demasiadamente dedicado a ser feliz, não vai querer incomodar-se. E, às vezes, a gente precisa de se incomodar.

ÉPOCA - Por que o senhor escolheu a Islândia como cenário de A desumanização?
Mãe - É um elogio à Islândia. Uma pedra perdida no meio do mar, no meio de condições adversas, desenvolveu uma sociedade admirável. Os islandeses são recordistas mundiais em vários índices de desenvolvimento, como no que diz respeito aos direitos das mulheres e das minorias sexuais. Os islandeses aprendem música e lá há muitas orquestras. Como um país com 300 mil pessoas pode ter tantas orquestras? Os islandeses são instruídos, são leitores, são cidadãos praticantes. O número de telefone do primeiro-ministro está na lista telefônica. Assim, como os telefones residenciais de todos os políticos, dos músicos, da cantora Björk! Se você for à Islândia, você vai encontrar o telefone da casa da Björk e pode ficar ligando para ela! Eles têm confiança uns nos outros. Isso é absolutamente admirável. Eu achei que escrever um livro chamado A desumanização, que pondera um pouco sobre a definição da identidade humana, que tivesse como cenário um lugar que produz esse tipo de equilíbrio.

ÉPOCA - Mas A desumanização é um livro bastante solitário, que não fala dessa Islândia progressista e moderna.
Mãe - A ação se passa na Islândia por coisas que ficam à porta do livro, mas que são motivações para o meu interesse por aquele país. A Islândia está lá como um símbolo.

ÉPOCA - O escritor português José Saramago (1922-2010) definiu o seu estilo como um “tsunami linguístico, semântico e sintático” e afirmou que ler o que o senhor escrevia era como “assistir a um novo parto da língua portuguesa”. Como foi receber esses elogios do único lusófono que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura?
Mãe - Foi incrível. É um prêmio que cresce dia a dia. Com o tempo, eu sinto que o que o Saramago disse sobre o meu livro e o carinho que ele estabeleceu comigo são algo que rende juros. Com a distância parece ainda mais incrível que eu o tenha conhecido e que ele tenha gostado de mim. Eu fiquei felicíssimo naquele momento. Achei que as agruras da minha vida valeram a pena. Quando Saramago ainda estava vivo, eu aconselhava toda gente a ganhar o Prêmio Saramago, só para receber um elogio dele [risos].

ÉPOCA - Você já disse que escreveu a tetralogia minúscula – os quatro livros escritos sem letras maiúsculas que começou com o nosso reino (Editora 34, 168 páginas, R$ 36) e terminou com a máquina de fazer espanhóis e é composta por personagens das mais diferentes idades – para refletir sobre as fases da vida e o que significa completá-la. O que o senhor aprendeu ao fim dessa reflexão?
Mãe - Eu devia dizer que não aprendi o bastante, mas eu acho que aprendi alguma coisa. Eu acho que os livros me ajudaram a encontrar a calma. Eu tenho a sensação de que aquilo que eu mais sei é sobre os temas que passam pelos meus livros. Não só o que ficou no livro, mas tudo o que veio ao redor, como todas as conversas que tive ao redor do livro. Depois de escrevermos um livro, tem gente que surge na nossa vida com experiências mais incríveis do que qualquer personagem. Subitamente, a realidade nos oferece uma visão para uma realidade que estava discreta e, eventualmente, o mundo é lhe revelado com esplendor para o bem e para o mal.

ÉPOCA - Depois desse livro que se passa na Islândia, o senhor pretende escrever algum livro cujo cenário seja o Brasil?
Mãe - Eu quero muito. Já tenho até uma ideia. Quero viver alguns meses num lugar pequeno do Brasil, porque eu só sei escrever sobre lugares pequenos. Cidade grande é muita informação e eu intensifico muito os pormenores. Eu preciso criar tramas em que as figuras surjam com uma certa limpeza. Cidade grande é multidão e eu não sei falar sobre multidão. A minha relação com Brasil é muito forte e ficou ainda mais forte depois da experiência de ser editado e ter leitores aqui. Não quero que o livro pareça uma correspondência boba ou oportunismo. Isso seria muito desrespeitoso. Eu já avisei que vou escrever um livro que se passe no Brasil. É uma vontade que eu tenho há muito tempo.

ÉPOCA - E vai ser escrito em português do Brasil?
Mãe - Essa é a grande dúvida [risos]. Como escrever um livro com figuras brasileiras? Como eu transformo o meu português, que é endêmico de Portugal e adulterado pelas minhas próprias deficiências e virtudes, num português que é, evidentemente, outra coisa? Que capacidade terei eu de parecer um bom autor “brasileiro”? Não vai ter como. Mas eu vou ter que arranjar um jeito de parecer um bom autor português que entendeu alguma coisa sobre o Brasil. Tenho muito medo, mas não sou de ficar desistindo por medo. Quando mais tenho medo, é quando eu salto.

ÉPOCA - Além de escritor, o senhor também era integrante do Governo, uma banda de pós-fado. Ainda canta?
Mãe - Não. Estou com pólipo nas cordas vocais e fico rouco. Tenho feito exercícios de respiração, mas estou longe de ficar bem. Era mais importante, para mim, cantar no banho do que cantar na banda [risos]. Porque, no banho, era uma coisa de todos os dias. Era, de fato, o meu ritual musical. A banda era uma coisa meio boa, mas meio tola, meio doida que a gente inventou. Eu preciso ficar bom para cantar, sobretudo, enquanto tomo banho.








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