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Um cirurgião sob suspeita: precursor da redesignação sexual é acusado de mutilação

Um cirurgião sob suspeita: precursor da redesignação sexual é acusado de mutilação

Um dos expoentes da delicada operação no Brasil é suspeito de ferir pacientes no Brasil

THAIS LAZZERI| DE JUNDIAÍ
04/10/2015 - 10h00 - Atualizado 04/10/2015 10h00

Na sala de espera, Mariah Agatha Lima conseguia enxergar a porta de vidro do centro cirúrgico, dois quartos, dois consultórios e uma sala de curativos. Dentro do consultório, viu apenas o desejo de realizar um sonho de mais de três décadas. “Vou transformar você numa mulher”, disse o cirurgião plástico Jalma Jurado, então considerado um especialista na cirurgia de redesignação sexual no Brasil. Agatha é uma mulher transexual, uma pessoa que nasceu com órgãos sexuais masculinos, mas sentiu, ainda na infância, que sua identidade era feminina. Em dezembro de 2007, quando ostentava o título de Miss Trans Universo, deixou a Itália onde vivera 12 anos como dona de salão de beleza e foi à clínica de Jurado, em Jundiaí, no interior de São Paulo. Ali, na hora, pagou metade do valor da cirurgia – € 10 mil, em dinheiro. Operou em 12 de junho de 2008, Dia dos Namorados. Agatha e seu marido haviam firmado um pacto, pelo qual ele a veria nua pela primeira vez, após um ano de relacionamento. Seria o fim da penumbra. Entretanto, após sete anos e cinco cirurgias malsucedidas, a sombra permanece.

As cinco cirurgias de Agatha estão entre as mais de 1.000 que o cirurgião Jalma Jurado, de 78 anos, fez na carreira. Na década de 1970, era um expoente das então experimentais cirurgias de redesignação sexual. Por sua habilidade, Jurado foi descrito em um documento do Conselho Federal de Medicina, de 1997, como “reconhecida autoridade no âmbito da cirurgia experimental de transgenitalismo no Brasil”. Jurado inclusive ajudou a difundir informações sobre a cirurgia no país. No ano passado, no entanto, o colegiado do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) decidiu que Jurado não poderia mais operar. Os processos administrativos, em segredo de Justiça, citam lesão corporal, mutilação, exercício irregular da profissão e indício de homicídio. Jurado também foi interditado pela Justiça, depois de ser processado por pacientes, que o acusam de erro médico. “A interdição cautelar não ocorreu sem qualquer justificativa ou com base tão somente em informações fornecidas pelas denunciantes, mas sim após averiguação de diversas irregularidades”, diz o trecho de uma sentença do Tribunal de Justiça de São Paulo, publicada em agosto de 2014.

Cirurgião plástico Jalma Jurado  (Foto: Alexandre Martins/Jornal de Jundiaí Regional)

A defesa de Jurado disse, na ocasião, que sua atuação não traria “prejuízo grave à população” e entrou com um recurso no Conselho Federal de Medicina. O Conselho transformou a interdição de Jurado de “total” para “parcial”, que o autoriza a operar, mas não em sua clínica. Desde agosto, Jurado está livre dessa restrição. Há duas semanas, com base em novas denúncias, o Cremesp decidiu por uma nova interdição total de Jurado. Ele recorreu ao Conselho Federal, que ainda não se pronunciou sobre o assunto. Jurado não atendeu aos reiterados pedidos de entrevista feitos por ÉPOCA. Em nota, sua advogada, Lilian Gaspar, afirma que a interdição do médico acabou em agosto de 2015. “Jalma está com seu registro ativo, podendo clinicar, rea­lizar qualquer espécie de cirurgias dentro de sua clínica, inclusive a cirurgia de redefinição (sic) sexual”, diz o texto.

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No caso de Agatha, desde a primeira tentativa malsucedida, Jurado culpou o silicone industrial que ela injetou no corpo. Antes da cirurgia, ele retirou silicone das nádegas dela, o que é contraindicado por médicos habituados a fazer esse tipo de procedimento. Agatha só desconfiou que havia algo errado no dia em que estava na clínica para pagar pelo que seria sua sexta cirurgia. Uma paciente gritava. Agatha foi ao encontro dela. As enfermeiras tentavam impedir que as duas conversassem, sob a alegação de sigilo. “Mas a culpa é do silicone”, disse Agatha, numa tentativa de acalmar a mulher a seu lado. “Nunca usei silicone. Ele é o culpado por eu estar mutilada”, disse a paciente, cujo nome fica preservado. Aos 48 anos, solteira, ela é só desespero. Em uma casa perto da clínica de Jurado, ela grita e chora ao falar sobre “a aberração que se tornou”. As cicatrizes em seu corpo ultrapassam a genitália e estão na barriga, nos rins e no olho direito. Ela foi operada oito vezes em dois anos. Escolheu Jurado por não aguentar os 15 anos de fila para realizar a cirurgia em hospitais públicos. Ela afirma que, da última vez em que esteve na clínica para fazer curativos, Jurado a operou sem autorização. Com um absorvente e uma faixa feita com a fronha do travesseiro da clínica, ela recebeu alta. A paciente afirma que teve de trocar o colchão inúmeras vezes em razão das hemorragias que sofria. Os pontos da cirurgia demoraram oito meses para fechar. “Eu tinha cheiro de túmulo”, diz. Por quase dois anos usou uma sonda urinária, que comprometeu a função renal. Em razão da falência renal, o nível de creatinina no organismo subiu e comprometeu a visão do olho direito.

Depois do encontro na clínica, Agatha e a paciente que conheceu criaram um grupo fechado no Facebook para denunciar Jalma Jurado. Outras sete vítimas se juntaram. Os advogados de Jurado obtiveram uma decisão judicial para tirar a página do ar, sob pena de uma indenização diária de R$ 40 mil e ressarcimento de R$ 150 mil por danos morais. A manifestação digital foi encerrada, mas pacientes abriram processos judiciais contra Jurado. No Ministério Público do Estado de São Paulo, em Jundiaí, correm ações criminais contra Jurado. No dia 26 de maio, o centro cirúrgico da clínica de Jurado foi interditado. “A interdição é para que parasse de operar naquelas condições”, afirma a promotora Karina Bagnatori. “Na verdade, operar sem condições, como mostram os laudos do Conselho Federal de Medicina e da Vigilância Sanitária.” Uma vistoria atenta que faltam carro de anestesia, equipamento para ventilação pulmonar e vestiário para os médicos no centro cirúrgico. No dia 24 de junho, quando técnicos chegaram à clínica, que deveria estar com o centro cirúrgico fechado, encontraram Jurado paramentado com vestes cirúrgicas, um quadro de avisos com as cirurgias do dia e pacientes à espera, indícios de que estaria operando ilegalmente. Um novo inquérito foi aberto para apurar exercício ilegal da profissão. A clínica foi lacrada.

Pacientes foram levadas da clínica para uma pensão, após as cirurgias, com tampão, cateter e sonda para urinar

A clínica de Jurado funciona em uma casa, dividida internamente entre dois núcleos circulares – um para a recepção de pacientes e outro para o centro cirúrgico. No dia que ÉPOCA esteve na clínica, havia pacientes em um dos quartos e uma outra marcava a data de um reparo nos seios. A seleção de pacientes para a cirurgia de redesignação sexual deve ser feita por uma equipe multiprofissional, num processo que leva pelo menos dois anos. São avaliadas as condições físicas e emocionais. A investigação mostra que Jurado pula essa etapa, inclusive a rotina de exames pré-cirúrgicos e a avaliação da paciente por um anestesista. Jurado opera com uma enfermeira dentro da clínica, quando as normas determinam que o procedimento seja feito por pelo menos dois médicos – e somente em hospitais. A justificativa é reduzir o custo da operação. A paciente só deve receber alta uma semana depois e precisa ser monitorada o tempo todo por um médico. Na clínica de Jurado, uma enfermeira acompanha a paciente e a alta acontece assim que ela desperta da cirurgia. Agatha despertou num dos quartos e, pela enfermeira, soube que não poderia permanecer ali “por falta de estrutura”. Com uma espécie de tampão na vagina recém-­construída, sonda na uretra e cateter na coluna, foi encaminhada a uma pensão da região. O Hotel Jundiaí ou a Hospedaria Plaza, próximos à clínica, são os destinos mais frequentes.

Pacientes aceitam condições ruins como essas por ansiedade, desespero e falta de opção. Apenas cinco hospitais estão habilitados para a realização da cirurgia de redesignação sexual no Brasil. No Hospital das Clínicas, em São Paulo, só há vagas para 2020. “E não marquei todo mundo”, diz Elaine Costa, coordenadora do ambulatório. A maioria das mulheres transexuais enfrenta uma vida de escassas escolhas, prisioneira de um corpo que seus desejos não reconhecem. Na infância, transexuais desejam as roupas e as maquiagens das amigas. Na adolescência, quando os hormônios começam a trabalhar para o que foram biologicamente preparados, a repulsa aumenta.

Mariah Agatha Lima em sua casa (Foto: Renata Campanelli/ÉPOCA)

Não raro, preconceito, violência física e emocional fazem parte da história de transexuais. Uma das pacientes de Jurado afirma que, quando criança, apanhava do pai por querer brincar de boneca; o avô a chamava de “cria do demônio”. Depois da separação dos pais, podia ser menina dentro de casa, mas fora dela tinha de ser rapaz. A cirurgia é vista como a libertação de uma vida de sofrimento, com uma forte carga de fantasia sobre os resultados. “Há quem leve fotos de como quer ficar”, diz Alexandre Saadeh, psiquiatra do ambulatório do Hospital das Clínicas. “Mas estamos falando de cirurgia corretiva, não estética.” É uma cirurgia que castra, mutila e é irreversível. Uma das principais técnicas, usada por Jurado, consiste em usar tecido do pênis para construir uma vagina. A recuperação é lenta, dolorosa e sujeita a complicações no futuro.

Rita de Cássia de Siqueira experimentou as consequências mais extremas de seis cirurgias. Seu sobrinho Roberto Eustáquio afirma que ela foi operada seis vezes por Jurado, a última delas em 10 de julho do ano passado, quando ele estava interditado. Nove dias depois, Rita foi internada no Hospital Regional de Osasco, em São Paulo. Os exames de sangue mostraram infecção grave e a ultrassonografia perfurações no intestino e na bexiga. Horas antes de morrer de infecção generalizada, Rita disse a Roberto não se arrepender, porque “morreria  como sonhou vir ao mundo”. Cinco dias depois, sua nova certidão de nascimento chegou.

O promotor Alfonso Presti, do Conselho Estadual LGBT, afirma que, a despeito de todos os riscos, as mulheres trans são seduzidas com promessas de resultados positivos e negligenciam a segurança. O silêncio duradouro e a persistência, a despeito dos maus resultados, como no caso de Agatha, são um misto de resignação e busca de esperança. Uma das pacientes afirma que Jurado disse a ela que desistisse de processá-lo, pois nesse caso nenhum outro médico a operaria. “Ele ganha o silêncio da vítima infundindo o medo”, diz.

Agatha demorou a romper esse ciclo de medo. Hoje, os cabelos longos, avermelhados, e a cintura fina fazem com que ela pareça ainda mais magra. Agatha está abatida. Fecha os olhos, num suspiro profundo. As unhas das mãos, roídas, espalham a angústia sobre a mesa. Agatha mostra, sem pudor, fotos da intimidade que ela mal vê. Em vez de ter o desejado órgão sexual feminino, tem cicatrizes que atravessam coxas, nádegas e púbis. Agatha toma fôlego para contar que queria apenas ter uma vida sexual com o marido, como qualquer casal que se ama pode ter. “O que eu sou?”, diz. Agatha ainda não conseguiu ser a mulher que deseja. 








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