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As biografias contraditórias de Luís Carlos Prestes

As biografias contraditórias de Luís Carlos Prestes

Dois biógrafos de Luís Carlos Prestes – um deles Anita, sua filha com Olga Benario – discordam sobre a trajetória do líder comunista

MARCELO BORTOLOTI
20/11/2015 - 10h19 - Atualizado 20/11/2015 10h19
Prestes (Foto: ARQUIVO/ESTADÃO CONTEÚDO)

A primeira biografia do líder comunista Luís Carlos Prestes foi escrita em 1941 por Jorge Amado. O cavaleiro da esperança tinha tom panfletário, com o objetivo de despertar na população simpatia pela campanha de libertação de Prestes, preso pela ditadura do Estado Novo. Jorge vivia um momento de intensa militância comunista e nunca se orgulhou do livro, recheado de elogios ao biografado, como este: “Nele (Prestes) os lados negativos não surgiram nunca, nem nos dias de luta, nem nos dias de triunfo, nem nos dias de prisão”.

Prestes viveu o bastante para rechear múltiplas biografias. Capitão, rebelou-se contra o Exército, em 1924. Liderou a Coluna Prestes, um grupo de revoltosos que percorreu mais de 25.000 quilômetros por 13 Estados em três anos. Morou na Bolívia e na União Soviética antes de ser preso no Brasil, no governo ditatorial de Getúlio Vargas, em 1936. Saiu da cadeia em 1945, participou da vida política do país nos anos seguintes, caiu na clandestinidade, exilou-se na União Soviética e morreu aos 92 anos, em 1990. Apesar disso tudo, seu papel na história não ficou bem esclarecido. Nos escritos sobre ele, costuma haver emoção demais e distanciamento de menos. Duas biografias lançadas nos últimos meses mostram que continua difícil explicar quem ele foi.

>> A polêmica das biografias no Brasil

A primeira foi publicada no final do ano passado pelo ex-guerrilheiro e militante de esquerda Daniel Aarão Reis. A segunda foi escrita por Anita Leocadia, filha de Prestes. Ambos são historiadores respeitados. Poderia ser o momento de consolidar uma imagem do polêmico personagem. Os livros, porém, divergem em pontos importantes. Prestes sabia ou não da falta de apoio popular e militar aos comunistas antes de liderar o levante de 1935? Sua primeira mulher, Olga Benario, tinha ou não um filho que deixou na União Soviética? Qual foi o destino do dinheiro que Getúlio Vargas deu a Prestes para que ele apoiasse a Revolução de 1930?
Anita diz que a biografia de Aarão Reis é marcada por um viés anticomunista. “Há uma quantidade grande de erros e mentiras para desqualificar a mãe, as irmãs e o próprio Prestes. Ele diz barbaridades sem citar a fonte”, afirma. Aarão Reis não comenta o livro da colega. Diz apenas que sua biografia acabou provocando a ira de Anita por desafiar alguns “tabus consagrados”.

A trajetória dos dois historiadores é marcada pelo engajamento à doutrina de Prestes. Anita nasceu num campo de concentração na Alemanha, em 1936. Antes de completar 2 anos foi separada da mãe, Olga, morta pelos nazistas. Foi criada por uma tia e pela avó paterna. Passou a  primeira infância no México, onde aprendeu que os pais eram heróis que lutavam por um ideal nobre. Conheceu Prestes aos 9 anos, num evento em que o pai era ovacionado, e foi abraçada e beijada pelo público. Passaram pouco tempo juntos. Por causa da perseguição política, foi mandada para a União Soviética, onde viveu a adolescência e juventude. Ela só teve contato mais prolongado com o pai depois dos 21 anos. Como toda a família, converteu-se ao comunismo. Foi perseguida pela ditadura militar e, nos anos 1990, concluiu um doutorado em história, com tese sobre a Coluna Prestes. Escreveu 11 livros sobre assuntos relacionados à trajetória do pai.

Daniel Aarão Reis também é um militante da esquerda e admirador de Prestes, que encontrou uma única vez, em Moçambique, no final dos anos 1970. Antes disso, em 1969, como integrante do grupo guerrilheiro MR-8, participou da decisão de sequestrar o embaixador americano Charles Burke Elbrick, trocado por prisioneiros da ditadura militar.

Aarão Reis foi preso e torturado durante 50 dias no DOI-Codi (órgão subordinado ao Exército, incumbido de investigar e reprimir atividades consideradas subversivas pelo governo militar), no Rio de Janeiro. Ganhou liberdade junto com outros presos trocados pelo embaixador alemão Ehrenfried Von Holleben, também sequestrado. No final dos anos 1980, concluiu doutorado em história com uma tese sobre organizações comunistas brasileiras. Foi fundador do PT e presidiu o diretório do partido no Rio de Janeiro. Afastou-se da militância em 2005, segundo ele, “antes dos escândalos”.

Ambos pesquisaram de forma extensa para escrever. Anita diz que preparava sua biografia havia 30 anos. Entrevistou o pai várias vezes e pesquisou em arquivos brasileiros e soviéticos. “Eu conheci bem o pensamento dele e procurei apresentar a verdade, de forma isenta, colocando provas documentais de cada citação”, diz.

Aarão Reis foi convidado há cinco anos para escrever um perfil de Prestes. O projeto cresceu. Consultou arquivos em Moscou e Washington, e também no Rio de Janeiro, Recife, São Paulo, Campinas, Porto Alegre e Brasília. Viajou para áreas no trajeto da Coluna Prestes, em Rio Grande do Sul, Paraná, Tocantins e Ceará. Entrevistou Maria, a segunda mulher de Prestes, mas não conseguiu nenhum depoimento de Anita.

As divergências entre as duas obras começam pelo nome do biografado. Anita adotou a grafia Luiz Carlos, escolhida pelo pai, enquanto Aarão Reis usou Luís Carlos, como na certidão de nascimento. Os conflitos se somam ao longo dos textos. Anita afirma que a Coluna Prestes “conquistou a simpatia” das populações do interior, por onde os revoltosos passaram na década de 1920. Aarão Reis diz que os moradores fugiam antes que os revoltosos chegassem e, por causa de saques e abusos, ficavam na miséria depois de sua passagem.

Há mais diferenças relevantes entre as versões (leia o quadro). Em 1930, Getúlio Vargas doou a Prestes 800 contos de réis para que ele e a Coluna apoiassem a revolução que o levou ao poder. Prestes recebeu, mas não deu o apoio. Segundo Anita, depois de saldar uma dívida da Coluna, ele repassou o dinheiro à Internacional Comunista na Argentina. Aarão Reis afirma que parte do dinheiro foi entregue a um militante que compraria armas na França e o restante deixado com um representante comunista no Uruguai.

Outro ponto polêmico diz respeito a Olga, mulher de Prestes. Aarão Reis afirma que ela era casada e deixou um filho na União Soviética antes de vir para o Brasil. Segundo Anita, esse filho nunca existiu. “Estive em Moscou, tirei cópia do prontuário dela e não tem nada disso. Ela não era pessoa de abandonar um filho. É uma calúnia sem tamanho”, diz Anita. Aarão Reis afirma ter encontrado a referência nos arquivos da Internacional Comunista em Moscou e em depoimentos de militantes do Partido Comunista. Fernando Morais, autor da biografia de Olga Benario e do texto da contracapa do livro de Anita, diz que foi a primeira vez que ouviu falar desse filho. Duas biografias depois, a trajetória de Prestes continua a despertar paixões, polêmicas e dúvidas.

As biografias de Luís Carlos Prestes (Foto:  )







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