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Ana Cássia Rebelo, a autora portuguesa que expõe o desassossego feminino na rede

Ana Cássia Rebelo, a autora portuguesa que expõe o desassossego feminino na rede

Quando a lida diária termina, ela escreve no blog Ana de Amsterdam. Dos seus textos, emerge uma mulher única, porque igual a tantas outras

RUAN DE SOUSA GABRIEL
08/03/2016 - 14h38 - Atualizado 08/03/2016 15h58
Ana Cássia Rebelo (Foto: Enric Vives-Rubio)

Ana Cássia Rebelo, das 9 da manhã às 5 da tarde, trabalha como advogada numa repartição pública de Lisboa. É divorciada, mãe de três filhos e fruto de uma árvore genealógica que mais parece um mapa do antigo Império Português. Nasceu em Moçambique, em 1972, no tempo em que o país africano era colônia lusa. O pai é de Goa, antiga capital da Índia Portuguesa. A mãe nasceu no Alentejo. Ana vive em Lisboa desde os 5 anos de idade. À noite, após preparar o jantar e deitar os filhos, ela se transforma em Ana de Amsterdam e, num blog, escreve seu diário íntimo. Os textos de Ana de Amsterdam, o blog, foram reunidos num livro que impressionou a crítica portuguesa, cruzou o oceano e agora ganhou edição brasileira (Biblioteca Azul, 192 páginas, R$ 34,90).

Ana de Amsterdam (Foto: ÉPOCA)

“Comecei a escrever por causa da solidão. Vivia um casamento infernal do qual não era capaz de me libertar”, afirma. Quando os filhos iam dormir, Ana se recolhia no quarto e escrevia. Sempre à noite, nos intervalos de sua rotina atarefada de mulher moderna. “É porque entre trabalho, lida da casa e filhos, sobra-me muito pouco tempo disponível”, diz. O nome do blog é uma referência a Ana de Amsterdam, uma canção de Chico Buarque e Ruy Guerra que faz parte da peça Calabar, o elogio da traição. Ana de Amsterdam, uma das personagens, é uma prostituta francesa que se envolve com Bárbara, a viúva do pernambucano Domingo Fernandes Calabar,  que colaborou com os holandeses que invadiram o Nordeste no século XVII. Ana, a de Lisboa, identificava-se com os versos da canção: Sou Ana do Oriente, Ocidente, acidente, gelada/Sou Ana de Amsterdam. Ao estrear na rede, Ana pensava em ser uma dessas blogueiras que emitem opiniões sobre tudo, mas, aos poucos, Ana de Amsterdam se converteu num diário íntimo. “Mais do que dar opinião, interessava-me uma escrita íntima e confessional”, diz.

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Ana tem cicatrizes nos pulsos. Procurou ajuda psiquiátrica depois de uma tentativa de suicídio uma semana antes da estreia do blog. Desde a adolescência, listava as maneiras mais eficientes e menos dolorosas de acabar com a própria vida. Em vez de se confessar ao doutor que diagnosticou sua depressão, Ana converteu seu blog em confessionário, repositório de frases desassossegadas, longas e prolixas “É hoje a consulta com o novo psiquiatra”, escreveu no fim de junho de 2006, em uma de suas primeiras postagens., “Vou ter que resumir minha tristeza e solidão em frases contidas, curtas, concisas. Ainda não sei se lhe hei-de falar da frigidez.” Ana não esconde a frigidez. Nem a pornografia a que assiste, a masturbação e os encontros sexuais na hora do almoço. “Sinto-me tranquila ao escrever que me desespero, que não sinto desejo, que me masturbo, que a maternidade não me realiza. Não confesso nenhuma ignomínia”, afirma.

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Ana preenche também seu blog com pequenos contos sobre outras mulheres, como Adélia, que gostava mais do avô sem-vergonha do que da avó aristocrata, e Maria Adelaide, uma suicida de quem Deus tirava sarro. Essas histórias são inspiradas em mulheres que ela conhece. Esses continhos são concessões que faz à ficção. Ela também falseia a decoração de ambientes, datas e nomes. Todo o resto é verdade. No meio da torrente confessional, Ana reflete sobre o envelhecimento, fala dos filhos com amor e sente saudade. A escrita fragmentada e a observação do cotidiano lisboeta justificam as comparações com Livro do desassossego, de Fernando Pessoa.

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Dos fragmentos de Ana de Amsterdam emerge uma mulher igual a tantas outras de sua geração: dividida entre o trabalho, os filhos, as prendas domésticas e a insatisfação. A crítica apontou seu parentesco com outras mulheres que insistiram que literatura era substantivo feminino: Sylvia Plath, a poeta sufocada em sua redoma de vidro; Virginia Woolf, cujos diários Ana devora; Elena Ferrante, que busca ser todas as mulheres do mundo ao ocultar sua identidade. “Falo sobre aquilo que muitas mulheres sentem”, afirma Ana. “Ao assumir a verdade dos fatos e escrever na primeira pessoa, a minha escrita torna-se militante.” Se há um assunto sobre o qual hesita em escrever são seus três filhos. Numa página, revela não ter gostado da gravidez e que a maternidade nunca a realizou; na seguinte, conta como gosta do cheiro dos pés de seus “miúdos” e elogia-lhes a inteligência. “Posso magoar meu pai,  meu ex-marido,  mas não magoo meus filhos”, afirma. 

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Ana deixou os remédios há seis meses. “Quando estou muito triste, meus filhos põem a tocar um disco do Chico Buarque e logo esqueço a angústia e esse tolo desespero que teima em não me largar”, afirma. Ela também gosta da sofrência de Los Hermanos e de Clarice Lispector, Hilda Hilst e Adélia Prado. “Somos o que lemos e escrevemos. Sou africana, goesa, portuguesa e, sem nunca ter posto um pé no Brasil, sou brasileira”, diz. O êxito literário não levou, porém, ao fim da psicoterapia. “Ninguém trata uma depressão por meio da escrita”, diz Ana.








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