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"Cidade em chamas": mil páginas flamejantes sobre a Nova York dos anos 1970

"Cidade em chamas": mil páginas flamejantes sobre a Nova York dos anos 1970

Garth Risk Hallberg vendeu seu romance de estreia por US$ 2 milhões para uma gigante do mercado editorial americano

RUAN DE SOUSA GABRIEL
22/04/2016 - 10h00 - Atualizado 22/04/2016 10h00

“Nova-iorquinos nascem em todos os cantos dos Estados Unidos; aí, eles vêm para Nova York e percebem: aqui é o meu lugar”. Quem disse isso foi Delia Ephron, roteirista de Mensagem para você e outras comédias românticas, mas poderia ter sido qualquer um dos personagens de Cidade em chamas, um romance vigoroso de mais de mil páginas sobre a Nova York nos anos 1970. Garth Risk Hallberg, o autor do livro, é um nova-iorquino que nasceu na Louisiana e cresceu na Carolina do Norte, ambas no sul dos Estados Unidos. “Há algo de indecoroso em assumir-se nova-iorquinho, mas é assim que eu me sinto. Nova York é onde eu me sinto em casa”, diz Hallberg, que está passando uma temporada em Barcelona, mas se prepara para voltar a Nova York em breve. “Desde muito cedo, eu passei a amar essa cidade de um modo que só quem não nasceu lá é capaz”.

Garth Risk Hallberg (Foto: Reprodução)


 

Cidade em chamas (Foto: Divulgação)


 

Hallberg incendiou o mercado editorial em 2013, ao vender seu volumoso manuscrito à prestigiosa editora Knopf por US$ 2 milhões de dólares – o dobro que a Vintage Books pagou, em 2012, pela trilogia erótica Cinquenta tons. Era um valor impensável para um escritor quase desconhecido, cuja obra literária se resumia a um punhado de ensaios, contos, resenhas publicadas na imprensa e uma graphic novel. Os direitos cinematográficos do livro foram comprados pelo produtor hollywoodiano Scott Rudin, de As horas e Frances Ha. Cidade em chamas estreou nas livrarias americanas no ano passado e colecionou elogios dos resenhistas – ainda que alguns reclamassem que o livro tinha páginas demais. Graças à concisão da língua inglesa, a edição americana é cerca de cem páginas mais curta que a brasileira, a ser publicada na próxima semana. O romance foi vertido para o português por Caetano W. Galindo, tradutor de outros autores prolixos, como James Joyce e David Foster Wallace.

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Ao percorrer as mais de mil páginas de Cidade em chamas, o leitor encontra um mosaico de personagens excêntricos flanando pelas ruas imundas e violentas da Nova York dos anos 1970. William Hamilton-Sweeney é um filho rebelde da aristocracia nova-iorquina, ex-vocalista de um conjunto punk e pintor diletante. O namorado dele, Mercer Goodman, é um negro sulista que dá aulas numa escola para mocinhas endinheiradas e sonha em escrever “o grande romance americano”. A irmã, Regan, é bulímica e traída pelo marido, um consultor financeiro. Há também Charlie Weisbarger, um adolescente que vive longe do centro efervescente da metrópole, curte Patti Smith e David Bowie e arde de desejo por Samantha (bela, punk e das ruas). Completam o elenco um jornalista que perdeu as ilusões, um policial amargurado, punks e trabalhadores. O que aproxima todos esses personagens é um tiroteio no Central Park na noite de ano novo de 1977. A ação do livro se estende do Natal de 1976 até o histórico blecaute de Nova York, em 13 de julho de 1977. Depois de uma tempestade, a cidade sofreu um apagão que durou mais de 25 horas e foi consumida por saques e incêndios que resultaram em prejuízos de cerca de US$ 300 milhões.

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Hallberg tem 37 anos e não era nem nascido na época descrita no livro. Ele cresceu numa cidadezinha rodeada por plantações de tabaco e tradições arraigadas. Conheceu Nova York pelos livros e pelas canções de Patti Smith (que é lembrada nos “Agradecimentos”). “Nova York parecia oferecer um lar e sensação de pertencimento a pessoas excêntricas como a que eu achava que era”, diz. Aos 17 anos, Hallberg começou a visitar a cidade na companhia de alguns amigos que viviam em Washington, que também curtiam poesia e com quem ele trocava fitas cassete com canções de suas bandas favoritas. A viagem até Nova York levava cinco horas de ônibus. As ruas nova-iorquinhas que Hallberg conheceu na década de 1990 eram bem mais limpas e seguras que nos anos 1970. A controversa política de “tolerância zero” do prefeito linha-dura Rudy Giuliani instituiu punições automáticas para quaisquer tipos de infração, como a pichação. As taxas de criminalidade caíram pela metade, mas algumas vozes alertaram que as medidas do prefeito desrespeitavam liberdades individuais e tendiam ao racismo. “Não era mais aquela Nova York dos versos de Patti Smith, mas eu me senti acolhido por todas aquelas contradições”, diz Hallberg.

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A primeira faísca de Cidade em chamas surgiu em 2003, quando Hallberg finalmente se mudou para Nova York e percebeu que a linha do horizonte não era aquela da qual ele se lembrava. Faltavam duas torres. Hallberg se assustou com o fluxo vertiginoso de sua própria escrita e relegou o projeto à gaveta. Retomou o manuscrito em 2007 e passou três anos debruçado sobre ele. Essa primeira versão, que ele considerou impublicável, ultrassapava mil páginas. “A leitura do manuscrito deixou minha esposa, Elise, energizada. Foi então que pensei que talvez o livro não fosse impublicável”, afirma. “Os três anos seguintes foram de revisão, cortes, rearranjos e reescritas. Ao todo, foram quase sete anos de trabalho”.

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Hallberg considera o período pós-11 de setembro um espelho dos anos 1970. Ambos são tempos de crise precedidos por tempos de euforia. Cerca de 800 mil pessoas e quase 600 mil empregos foram embora de Nova York junto com os anos 1960. A década retratada em Cidade em chamas foi marcada por aumento da violência, do desemprego, da pobreza e do poder do mercado financeiro. Antigos bairros operários se transformaram em redutos dos artistas que revolucionaram cena cultural nova-iorquina. Problemas causados pela gentrificação, a crise econômica e a dicotomia entre liberdades individuais e segurança também tiram o sono da Nova York pós-11 de setembro. Em 2015, o preço médio de um apartamento em Manhattan beirou US$ 2 milhões – o mesmo valor pago a Hallberg por seu manuscrito. “Nós costumamos pensar nos tempos passados como diferentes dos atuais, mas o livro parte de um impulso que nos diz que podemos compreender melhor o presente olhando para esse espelho do passado”, afirma. “Um tempo de crise também é um tempo em que possibilidades escondidas ganham vida”.








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