Vida

Editoras estrangeiras ajudam autora brasileira na batalha contra a invisibilidade

Editoras estrangeiras ajudam autora brasileira na batalha contra a invisibilidade

O romance "A vida invisível de Eurídice Gusmão" , de Martha Batalha, foi vendido para dez países e para cinema antes de ser publicado no Brasil

RUAN DE SOUSA GABRIEL
20/04/2016 - 08h00 - Atualizado 20/04/2016 09h59

Eurídice Gusmão, uma dona de casa do bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro, combatia o tédio com as panelas. O marido ia para o trabalho, os filhos iam para a escola e Eurídice se enfiava na cozinha. Abria o livro de receitas, matava aves, escolhia especiarias e preparava banquetes. Mas o marido e os filhos só gostavam de bife e macarrão – uns ingratos! Eurídice anotou num caderno todas as receitas que inventara e mostrou-o ao marido: “Você acha que posso publicar?”. Antenor caiu na gargalhada e respondeu: “Deixe de besteiras, mulher. Quem compraria um livro feito por uma dona de casa?”. Eurídice é uma personagem de ficção. Ela habita as páginas de A vida invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha.

>> Maria Valéria Rezende, a escritora que traz o sertão de volta à literatura

>> Ana Cássia Rebelo, a autora portuguesa que expõe o desassossego feminino na rede

Quando Martha Batalha, uma jornalista e escritora criada no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro, quis publicar um livro, quem a impediu não foi um marido antiquado. Foi a crise. No ano passado, a recessão bateu às portas do mercado editorial. Os governos, às voltas com o ajuste fiscal, diminuíram as compras de livros e atrasaram os pagamentos às editoras. Apostar em novos autores ficou mais arriscado. “Eu tive a má sorte de tentar publicar meu livro no Brasil num momento de crise”, diz Martha, que vive em Los Angeles, nos Estados Unidos, ao lado do marido e dos dois filhos pequenos. Luciana Villas-Boas, a agente literária de Martha, apresentou A vida invisível de Eurídice Gusmão para todas as grandes editoras brasileiras: Globo Livros, Record, Intrínseca, L&PM... Nem a Companhia das Letras, que publica o livro neste mês, quis apostar na história de Eurídice, a invisível. “Os editores estavam naturalmente paralisados”, afirma Luciana. “As editoras estão bastante fechadas à contratação de obras de ficção por causa do momento econômico”.

Martha Batalha (Foto: Jorge Luna)


 

A vida invisível de Eurídice Gusmão (Foto: Reprodução)


 

Martha começou a vencer a batalha contra a invisibilidade quando Luciana levou o manuscrito para a Feira do Livro de Frankfurt, na Alemanha. Eurídice começou a ser cortejada por editoras estrangeiras. A primeira a comprar os direitos da obra foi a alemã Sührkamp, que fez uma proposta acima do valor de mercado para evitar que o livro fosse a leilão. “Há muito tempo não víamos um livro de autor iniciante tão forte”, escreveu Sabine Erbrich, editora da Sührkamp, num elogioso e-mail para Martha. “Estamos apaixonados por este romance engraçado e tocante”. Martha leu o e-mail debulhada em lágrimas. “Foi um choro de alívio”, diz. Outros e-mails vieram. Da Holanda, da França, da Noruega... O livro foi comprado por dez editoras estrangeiras, como a Porto (Portugal), a Nieuw Amsterdam (Holanda), a Feltrinelli (Itália), a Seix Barral (Espanha e América Latina) e a francesa Denoel, que negociou uma edição de bolso com a Le Livre de Poche. “Não sei de outro caso de livro inédito em seu país que tenha sido contratado por uma editora de primeira linha no exterior”, afirma Luciana. Eurídice Gusmão não era mais invisível

>> O triste fim da Cosac Naify

Os encantos de Eurídice também chamaram a atenção de um rapaz que tem raízes tijucanas: o produtor Rodrigo Teixeira, da RT Features, que recebeu o manuscrito de Luciana. Teixeira comprou os direitos cinematográficos do livro, que será transposto para as telas pelo diretor Karim Ainouz, de Praia do futuro. “Karim e eu sempre discutimos a possibilidade de fazer um filme sobre o universo feminino”, afirma Teixeira. “Quando li o livro, percebi que conhecia todos aqueles personagens. A minha avó nasceu na Tijuca”. Ele espera que o filme repita a exitosa carreira internacional do livro. As filmagens começam em 2017. A carreira internacional do livro e o flerte com o cinema impressionaram a Companhia das Letras, que decidiu publicá-lo. “O livro foi editado, por mim, um milhão de vezes antes de chegar à Companhia das Letras, mas eles o tornaram ainda melhor”, diz Martha.

>> O novo jeito de ser gay no cinema

A vida invisível de Eurídice Gusmão narra os dramas de duas irmãs no Rio de Janeiro de meados do século XX, uma época em que os homens davam as cartas na sala e as mulheres eram aconselhadas a permanecer na cozinha. O livro dialoga com Razão e sensibilidade, de Jane Austen; mas, em vez dos campos ingleses, o cenário é a Tijuca, bairro de classe média da Zona Norte do Rio de Janeiro. Eurídice, como a Elinor Dashwood do romance inglês, era racional, respeitava as convenções sociais e fazia tudo o que esperavam dela. Guida, a irmã mais velha, era sensível como Marianne Dashwood. Pintava os lábios de vermelho, sabia imitar os penteados das estrelas de cinema e sonhava com um grande amor. Eurídice e Guida ilustram as duas opções que as mulheres tinham nos anos 1950: submeter-se ou se rebelar. “Quis escrever sobre essas mulheres que foram impedidas de se realizar porque nasceram no lugar e na época errados”, afirma Martha. “É um livro sobre esse machismo cotidiano que passa despercebido.”

>> A Teoria dos Jogos nos livros de Jane Austen

>> Musical reconta "Orgulho e preconceito" com canções sertanejas

Ao redor de Eurídice e Guida, orbitam um punhado de personagens igualmente invisíveis: vizinha fofoqueira, o quarentão que não sai da barra da saia da mãe, o marido burocrata que não entende as aspirações da mulher, o moço rico sem caráter, a empregada que tem sempre uma bandeja nas mãos. “Era para ser só a história da Eurídice e da Guida”, diz Martha. “Mas, quando eu comecei a ler sobre aquele tempo, descobri outras histórias e foi impossível não incluí-las no livro”. Ela fez uma rigorosa pesquisa histórica para reconstituir a vida da classe média carioca em meados do século XX. Leu Gilberto Freyre, cronistas do cotidiano carioca, como João do Rio e Luís Edmundo, e debruçou-se sobre os jornais da época. Uma funcionária da Biblioteca Nacional, no Rio, ficou emocionada quando Martha apareceu por lá em busca de jornais antigos. Os acervos digitalizados permitiram que Martha continuasse as pesquisas na Califórnia. Passeando pelo acervo do Jornal do Commercio, ela encontrou o obituário de uma poeta obscura que virou a falecida sogra de Eurídice.

Svetlana Alexievich, a arqueóloga do socialismo real

Martha nasceu no Recife, mas cresceu na Tijuca, onde uma de suas avós ainda mora. Nos tempos de repórter, Martha cobriu enterro de traficante, pagode e dengue. Fundou a própria editora, a Desiderata, que foi vendida à Ediouro em 2008. Seguiu para os Estados Unidos, onde fez mestrado em edição de livros e trabalhou em algumas editoras. Largou tudo para virar escritora. É disciplinada e encara a escrita como trabalho. Leva os filhos para a escola, corre e se tranca no quarto para escrever. Não tem faxineira, mas conta com a ajuda de uma babá que cuida das crianças enquanto ela escreve. “Se eu fico mais de dois dias sem escrever, fico mal humorada, porque não sei mais para onde estão indo meus personagens!”, diz.

Martha vai trocar a Zona Norte pela Zona Sul em sua próxima incursão literária. O romance que ela está escrevendo acompanha, durante cem anos, a trajetória de uma família que vive num castelinho em Ipanema. “É uma metáfora para a classe média brasileira”, afirma. “Eu não quis fazer literatura para vender no exterior. O meu sonho é ter leitores no Brasil”.








especiais