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Benjamin Moser: "Clarice Lispector e eu deciframos um ao outro"

Benjamin Moser: "Clarice Lispector e eu deciframos um ao outro"

O escritor americano é responsável pelas novas edições da escritora brasileira em inglês e por divulgar sua obra mundo afora

ANA HELENA RODRIGUES, COM RUAN DE SOUSA GABRIEL
15/05/2016 - 10h00 - Atualizado 17/05/2016 17h34

Clarice Lispector (1920-1977), uma das maiores escritoras brasileiras, foi constantemente confundida com uma estrangeira. Um problema de dicção misturado ao carregado sotaque nordestino dava a impressão de que ela não falava nosso idioma muito bem. Sua escrita subjetiva, recheada de expressões incomuns, faz com que seu leitor se pergunte se o que ele está lendo é realmente português. Clarice também não gostava de dar entrevistas e, quando dava, era evasiva nas respostas, levantando a suspeita de que ela não tinha entendido qual era a pergunta. Tudo isso, somado à sua beleza exótica, ajudou a construir a imagem misteriosa da escritora, que continua a despertar a curiosidade e admiração de leitores ao redor do mundo, mesmo após quase 40 anos de sua morte.

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Os livros de Clarice já foram traduzidos para mais de 30 idiomas desde a década de 1950. Porém, a popularização de sua obra além dos círculos acadêmicos começou recentemente, com a publicação da biografia Clarice, escrita pelo americano Benjamin Moser. “A minha empolgação de levá-la ao público internacional – coisa que eu faço há 12 anos – foi justamente colocá-la em seu devido lugar, que é entre os grandes escritores moderno.”, disse Moser a ÉPOCA. Além da biografia de Clarice, Moser é responsável pela edição de novas traduções da escritora em inglês, inclusive da antologia Todos os Contos (Rocco, 656 páginas, R$ 69,50), que acaba de ser lançada no Brasil. O livro reúne todos os 85 contos escritos por Clarice e chega ao país quase um ano depois de ser publicado nos Estados Unidos, onde foi considerado um dos 100 melhores livros do ano pelo jornal The New York Times. “Até quem conhece e adora Clarice vai ter uma surpresa enorme ao se deparar com a maneira como a obra dela foi dividida nesse livro”, diz. “A totalidade da obra dela em um livro só é uma coisa espetacular." Leia abaixo a entrevista:

Benjamin Moser biógrafo (Foto: Leticia Moreira/Folhapress)

ÉPOCA – Por que você se interessou em estudar português?
Benjamin Moser –
Eu queria estudar chinês. Na faculdade me dei conta de que eu não levava jeito para estudar chinês, era muito difícil. Mas eu tinha de fazer outro idioma e caí, totalmente por acaso, numa aula de português. E por aí foi. Eu não tinha nenhum outro motivo além de preencher minha grade de aulas. Eu tinha que estudar uma língua e foi essa. Deu no que deu.

ÉPOCA – E você conheceu Clarice Lispector nessas aulas de português?
Moser –
Sim. No segundo ano, começamos a ler obras curtas de autores brasileiros. A gente ainda não entendia português muito bem. No final daquele semestre, a gente leu A hora da estrela. E assim nasceu essa paixão, que fica cada vez maior.

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ÉPOCA – Por que Clarice se destacou entre os outros autores brasileiros que você teve de ler nessa aula?
Moser –
Para mim é difícil de falar de Clarice ao lado dos outros autores brasileiros, porque eu me apaixonei por uma obra, por uma autora. O fato de ela ser brasileira não influiu muito nesse sentimento, nessa paixão que foi nascendo. O que ficou óbvio para mim é que, além de ser brasileira, ela pertence à classe dos grandes autores internacionais. A minha empolgação de levá-la ao público internacional – coisa que eu faço há 12 anos – foi justamente colocá-la em seu devido lugar, que é entre os grandes escritores modernos. Eu a comparo mais a Kafka e outros grandes autores. Grandes autores não têm nacionalidade. Eles são de todo o mundo. A literatura brasileira enfrenta alguns obstáculos, pois não viaja muito. E eu resolvi comprar uma passagem para Clarice.

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ÉPOCA – Você já tinha uma relação com o Brasil antes de conhecer Clarice?
Moser –
A minha avó tinha sido casada com um pernambucano de origem europeia, mas ele não foi o meu avô. A minha família tem uma relação muito antiga com a América Latina, porque somos do Texas, que faz fronteira com o México. Mas isso não tem nada a ver com minha relação com o Brasil. O Brasil veio depois. E veio por acaso. É como se casar com uma pessoa de outro país e, assim, conhecer o país dela. Eu casei com Clarice, com a família dela, os livros dela, os amigos dela – o mundo dela. E fiquei com o Brasil de presente.

ÉPOCA – Você escreveu uma biografia de Clarice. Quando pesquisava a vida dela no Brasil, as pessoas estranhavam o fato de um estrangeiro se interessar tanto por uma escritora brasileira?
Moser –
Eu fui o primeiro estrangeiro a escrever uma biografia de um autor brasileiro, mas só soube disso depois. Havia algo de novidade nisso, mas, na época, eu não sabia. Eu acho que as pessoas gostaram desse meu esforço porque não tinha sido feito antes. O Brasil era conhecido mais pela música do que pela literatura. Você não precisa saber português para gostar de bossa nova, de samba. Esses ritmos se internacionalizaram. O futebol também viaja bem. Mas a literatura precisa de embaixadores para levá-la além das fronteiras do país. Eu tive o carinho e apoio de vários amigos para mostrar, ao mundo, uma cara do Brasil que era diferente dessa cara estereotipada, que não é muito interessante. Acho que esse trabalho ajudou a mudar um pouco a imagem do Brasil.

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ÉPOCA – A quantas andam as edições estrangeiras da obra de Clarice?
Moser –
A [editora americana] New Directions já publicou seis traduções de obras de Clarice e eu tenho um contrato para coordenar mais seis edições de livros dela. O meu casamento com essa mulher dura a vida toda. Ainda levarei pelo menos mais uma década nas traduções, edições e divulgação internacional da obra dela. Depois das edições em inglês, as publicações pelo mundo avançaram de forma espetacular! Todos os contos, por exemplo, apareceu até no The New York Times! E esse projeto foi vendido imediatamente para França, Alemanha, Holanda, Portugal, Turquia, Coreia do Sul, Inglaterra e, o mais importante de todos, Brasil. Nunca havia sido publicada uma reunião de todos os contos dela no Brasil. Até quem conhece e adora Clarice vai ter uma surpresa enorme ao se deparar com a maneira como a obra dela foi dividida nesse livro. A totalidade da obra dela em um livro só é uma coisa espetacular.

ÉPOCA – Clarice nasceu na Ucrânia e, mesmo no Brasil, às vezes, era considerada estrangeira. Esse é um dos pontos que você levanta na biografia que escreveu dela. Você acha que o seu trabalho ajudou o Brasil a aceitá-la como uma escritora brasileira?
Moser –
É uma pergunta interessante. Clarice nunca tinha sido vista como brasileira pelos brasileiros. E acho que isso foi por causa da fala. Ela não tinha um sotaque estrangeiro, mas uma maneira de falar estranha. Depois, eu soube que isso tinha a ver com a doença da mãe dela, que tinha sífilis. Uma médica, na Suíça, contou-me que as crianças que têm mães sifilíticas têm uma fala distinta. Além de falar dessa maneira estranha, ela tinha nascido fora do Brasil e escrevia em um idioma sem nenhum precedente na literatura brasileira. É uma linguagem muito louca! É muito poético. Não que ela não soubesse português direito, ela era altamente educada. É claro que ela é brasileira. É ridícula essa insistência que Clarice era estrangeira. Quem chega a um país com 1 ano de idade não tem nenhuma lembrança de outra coisa. Por outro lado, eu acho que os brasileiros tiveram razão ao perceber que ela não era uma brasileira comum, havia algo de diferente nela. Ela não era Rachel de Queiroz, Cecília Meireles ou João Guimarães Rosa, para quem o Brasil é uma pátria inevitável. É possível perceber que Clarice não tem um lugar óbvio no Brasil. Ela criou um lugar para si mesma, um lugar que é o momento mais alto da história da literatura brasileira. Isso nacionaliza, de certa forma, o idioma que encontramos nos textos dela, porque as pessoas a leem desde o colégio e vão achando normal que Clarice Lispector, nossa glória nacional, fale assim.  Clarice é e não é brasileira. E esse lugar entre ser e não ser é exatamente o lugar das personagens de Clarice. Todas são pessoas que quase não conseguem se encaixar em sociedade nenhuma. Mas eu acho que não tem a ver com Brasil. Era ela que não se encaixava.

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ÉPOCA – Você foi o primeiro a contar como a vinda da família Lispector para o Brasil foi motivada pelo antissemitismo. No Brasil, quase não nos lembramos de que Clarice era judia. Quão importante é essa identidade judaica na literatura que ela produziu?
Moser –
Clarice não era vista como judia porque essa categoria não existia no discurso brasileiro. Aquela forma clássica de antissemitismo, que existia na Ucrânia, na Polônia e na Alemanha, de fato, não existia no Brasil, onde quase não havia judeus. E quase não havia judeus por causa do antissemitismo português. Mas qualquer judeu brasileiro, ou de outro país, não tem nenhum problema em vê-la como judia – porque ela fala como judia. Qualquer pessoa de família judaica reconhece uma certa fala, uma certa maneira de ser, um humor negro... Em Clarice, isso é muito óbvio. Uma mulher, por exemplo, sabe quando uma mulher está falando. Uma mulher reconhece, em Clarice, uma voz feminina. Ser judia foi uma característica que a definiu. Os Lispectors foram expulsos da terra deles por serem judeus, a mãe dela foi estuprada por soldados russos por ser judia. Ela é judia e nunca teve problema com isso, mas foi a característica que a definiu. Ela foi expulsa da terra dela por ser judia, a mãe dela foi atacada por ser judia. E essa característica judaica de Clarice foi bastante reconhecida internacionalmente. Descrevê-la como judia para mim é tão óbvio como descrevê-la como mulher ou brasileira. Tudo isso faz parte dela e ajudou muita gente a entendê-la. Sobretudo nos EUA, onde há uma tradição de literatura judaica. Mas tudo isso não serve para definir totalmente uma pessoa. É uma maneira de despertar o interesse das pessoas e apresentá-las a uma literatura que, na verdade, dispensa rótulos.

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ÉPOCA – Como é pertencer à legião estrangeira que irradia a obra de Clarice pelo mundo?
Moser –
É maravilhoso! Clarice era totalmente ignorada fora do mundo acadêmico. Quase não era lida. Depois das edições em língua inglesa, houve uma revolução na reputação dela. Foi uma coisa espetacular! Quando eu comecei esse trabalho, eu não tinha sequer editor. Passei cinco anos trabalhando sem contrato, com o meu próprio dinheiro – e foi um livro caríssimo, por conta das viagens, do tempo. Foi um trabalho muito solitário. Há muitos livros que, apesar de bons, ninguém olha. Para mim, ver a Clarice retirada daquela montanha de esquecimento e ambições frustradas que é o mundo literário, é uma alegria! É como ver um filho dar certo na vida e ser feliz! Clarice é um pouco minha esposa, mas também é um pouco minha filha. Eu fico feliz em vê-la fazendo sua carreira, ainda que póstuma. Eu nunca me canso da Clarice.  Eu acho uma honra ajudá-la nessa carreira. Acabo de lançar a biografia dela na Holanda. E, neste mês, vou levá-la a um festival literário na Palestina. Faço questão, como judeu, de apresentar Clarice, uma judia refugiada, ao povo palestino, tão oprimido e que sofreu muitos dos mesmos abusos que sofreram os judeus. Eu acho que quem vai acabar com a ocupação na Palestina é Clarice Lispector. Tenho a impressão de que tentaram de tudo para se livrar da ocupação israelense, só não tentaram Clarice. Vamos ver se ela consegue trazer paz e justiça ao Oriente Médio. Eu acredito muito nela, sabe? (Risos).

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ÉPOCA – Numa carta ao escritor mineiro Fernando Sabino, Clarice comentou que, quando foi ao Egito, encarou a Esfinge e não conseguiu decifrá-la, mas que a Esfinge também não a decifrou. Nessa sua longa relação com Clarice, quem decifrou quem?
Moser –
Clarice fez a minha cabeça. Ela me decifrou como escritor, como artista, como amante, como pessoa, intelectual e espiritualmente. Ela está em todos os meus pensamentos. Eu devorei Clarice como a esfinge devorava suas vítimas. De certa forma, eu também a decifrei ao levá-la do português para outros mundos e outras línguas. O trabalho de decifração é um trabalho de tradução e divulgação – um pouco menos violento do que a esfinge que devorava e arrancava pedaços dos pobres passantes. É uma decifração positiva. Clarice e eu deciframos um ao outro.








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