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Legião estrangeira divulga a obra de Clarice Lispector mundo afora

Legião estrangeira divulga a obra de Clarice Lispector mundo afora

A linguagem complexa da autora dificultava a expansão de sua obra além das fronteiras brasileiras, mas um time de embaixadores a transformou num fenômeno literário

RUAN DE SOUSA GABRIEL E ANA HELENA RODRIGUES
15/05/2016 - 10h00 - Atualizado 17/05/2016 11h09

Em 2003, com George W. Bush na Casa Branca, a californiana Katrina Dodson decidiu exilar-se no Rio de Janeiro. No fim daquele ano, ela foi a uma livraria de Ipanema à procura de uma escritora que conhecia de ouvido: Clarice Lispector. Escolheu A paixão segundo G.H., sem saber que aquele romance, publicado em 1964, era um dos maiores enigmas da esfinge da literatura brasileira. Katrina passou as férias de Natal na Amazônia e levou o livro. Numa viagem de barco entre Manaus e Belém, devorou páginas confusas sobre uma mulher e uma barata – mas não conseguiu decifrá-las. “Não entendi nada. Era diferente de tudo o que já tinha lido, mas me apaixonei por Clarice”, diz.

Clarice Lispector em seu apartamento no Rio de Janeiro (Foto: Divulgação)


 

Todos os contos, de Clarice Lispector (Foto: ÉPOCA)


 

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Katrina traduziu para o inglês os 85 contos escritos por Clarice. The complete stories é a primeira reunião de todas as narrativas curtas da escritora e foi lançada em agosto de 2015 nos Estados Unidos. A edição foi organizada por Benjamin Moser, autor da elogiada biografia Clarice, e ganhou resenhas elogiosas na imprensa americana. “Há um sopro de loucura na ficção de Clarice Lispector”, afirmou o jornal The New York Times, que incluiu a antologia na lista dos 100 melhores livros do ano. The complete stories venceu o prestigioso prêmio de tradução da Pen, a associação mundial dos poetas, romancistas e ensaístas. Katrina derrotou tradutores de Fiódor Dostoiévski e Vladímir Sorókin, gigantes das letras russas. A edição brasileira, Todos os contos (Rocco, 656 páginas, R$ 69,50), acaba de ser lançada, quase um ano depois da edição americana.

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Depois do encontro amazônico, Katrina se debruçou sobre os mistérios da escritora. Quando Moser veio ao Rio, em 2012, ela o convidou para um passeio no Parque Lage. “Passamos horas conversando sobre Clarice, e bateu uma simpatia entre nós”, diz. Moser trabalhava nas novas edições dos livros de Clarice e percebeu que Katrina e ele concordavam sobre como Clarice deveria soar em inglês. Convidou-a, então, para traduzir os contos.

Katrina Dodson tradutora (Foto: Divulgação)

Existem edições da obra de Clarice em mais de 30 idiomas, como espanhol, russo, árabe, hebraico, quéchua e chinês. Há décadas, seus livros figuram nos catálogos das editoras estrangeiras. Porém, foi apenas nos últimos anos que ela atingiu o estrelato literário. Graças ao trabalho de Moser, que, em 2009, tornou-se o primeiro estrangeiro a escrever a biografia de um autor brasileiro, o nome de Clarice se tornou conhecido fora das cátedras acadêmicas. “O lugar de Clarice é junto dos grandes escritores modernos, como Kafka”, diz ele. “Grandes escritores não têm nacionalidade. Eles são de todo o mundo.”

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Moser se  encantou com Clarice ainda na faculdade, quando precisou ler A hora da estrela numa aula de português. “A literatura brasileira não viaja bem, mas eu comprei uma passagem para Clarice”, diz ele, que há 12 anos tenta elucidar as ambiguidades da escritora. Além de Todos os contos, Moser coordenou a edição de outros cinco romances de Clarice nos Estados Unidos e assinou uma nova tradução de A hora da estrela. Ele conversou com ÉPOCA da Holanda, onde acabou de lançar a biografia de Clarice. Neste mês, vai levá-la a um festival literário na Palestina. “Clarice foi uma judia refugiada, e eu faço questão de apresentá-la ao povo palestino, que é tão oprimido e sofreu tantos abusos quanto os judeus”, diz.

Benjamin Moser biógrafo (Foto: Leticia Moreira/Folhapress)

Em 2013, no Salão do Livro de Paris, Moser apresentou Clarice à editora ucraniana Anetta Antonenko, que passou a publicá-la em sua terra natal. Clarice nasceu na cidadezinha de Tchetchelnik, na Ucrânia. Sua família refugiou-se do antissemitismo no Brasil, e ela cresceu no Recife. O sotaque nordestino misturado a um problema de dicção e à beleza exótica levava muitos a vê-la como uma estrangeira. “Eu, enfim, sou brasileira, pronto e ponto”, dizia Clarice. Yaroslav Gúbarev, o tradutor ucraniano, concorda: Clarice tem raízes na Ucrânia, mas é uma escritora brasileira. Em Donetsk, no leste da ex-república soviética, há muitos jogadores de futebol brasileiros e Gúbarev quis aprender a língua deles. “Às vezes, nas obras de Clarice, sente-se a memória coletiva da Ucrânia, onde ela nasceu”, afirma.  Ele cita, como exemplo, uma passagem do romance Água viva, que faz referência a cultivos pouco comuns no Brasil. “Por dentro é a obscuridade. Um eu que pulsa já se forma. Há girassóis. Há trigo alto. Eu é.” “Quando menciona girassóis e trigo alto, ela quer dizer Ucrânia”, diz Gúbarev. “Mas não é porque ela nasceu na Ucrânia que gosto das obras dela. É que, às vezes, ela toca em profundidades que nenhum outro escritor toca.”

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Foi nos últimos meses que o rosto de Clarice estampou as capas de suplementos literários estrangeiros, mas o processo de internacionalização de sua obra começou quando ela ainda morava no exterior. Entre 1944 e 1959, ela acompanhou o marido diplomata em missões na Europa e nos Estados Unidos, onde escrevia, em português, textos que eram enviados para ser publicados no Brasil. “As primeiras traduções dos contos e romances de Clarice são dessa época”, diz Nádia Gotlib, autora de Clarice: uma vida que se conta. “Em 1954, Clarice teve seu primeiro romance vertido para o francês: Perto do coração selvagem, em tradução, aliás, que ela detestou.”

Na França, a Éditions des Femmes, uma editora feminista, publica os livros de Clarice desde 1978. A partir dos anos 1980, foram lançados audiolivros nos quais atrizes como Fanny Ardant e Chiara Mastroianni recitam alguns de seus contos. A escritora feminista Hélène Cixous também contribuiu para a divulgação da obra de Clarice ao traduzir alguns de seus romances e analisá-los em ensaios. “Clarice é cada vez mais conhecida na França e na Europa graças às reedições de seus clássicos, como A hora da estrela e Perto do coração selvagem”, diz Christine Villeneuve, da Editions des Femmes.

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As primeiras traduções de Clarice para o inglês apareceram nos anos 1950. O conto “Tentação” foi publicado na imprensa americana em 1955. Elizabeth Bishop, poeta americana que viveu no Brasil, traduziu alguns contos da escritora brasileira e tentou publicá-los na revista The New Yorker. Isso garantiria algum dinheiro a Clarice, que, separada do marido, enfrentava dificuldades financeiras desde sua volta ao Rio. Mas os contos continuaram inéditos para o público americano. Há notícia de apenas um texto escrito por Clarice em inglês: uma história policial criada para seu filho Paulo, no tempo em que eles viviam nos arredores de Washington. A própria Clarice, depois, traduziu a historieta e publicou-a no Brasil, em 1967, com o título O mistério do coelho pensante.

Traduzir a prosa poética de Clarice não é tarefa simples. Ao longo dos dois anos em que trabalhou nos contos, Katrina deparou com expressões que não sabia se eram metáforas ou regionalismos. Uma delas aparece em “Tanta mansidão”: “Nunca pensei que o mundo e eu chegássemos a esse ponto de trigo”. “Eu perguntei para pelo menos dez brasileiros o que era ponto de trigo, mas ninguém sabia!”, diz Katrina. “Quando eu encontrava essas expressões enigmáticas, eu me dava uma trégua, traduzia literalmente e deixava a interpretação para o leitor.” A resposta para o enigma pode estar novamente nos campos ucranianos. “Na Ucrânia, ponto de trigo pode significar plenitude”, diz o tradutor Gúbarev.

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Clarice chegou a seu ponto de trigo. É cada vez maior a legião estrangeira que devora seus livros e tenta decifrá-los. São leitores comuns, que não sabem português nem estudam literatura latino-americana, mas beneficiaram-se de boas traduções. “Antes da publicação dos contos, sempre se dizia ‘a escritora brasileira Clarice Lispector’, como uma forma de apresentação. Hoje, isso não é mais necessário, pois ela é como Kafka ou Virginia Woolf”, diz Katrina. “É só Clarice Lispector. E, às vezes, é só Clarice.”

Clarice Lispector pelo mundo (Foto: ÉPOCA)







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