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Estreia de Bill Clegg na ficção é reflexão sobre o luto e a frustração social nos EUA

Estreia de Bill Clegg na ficção é reflexão sobre o luto e a frustração social nos EUA

O romance Você já teve uma família? acompanha os cidadãos enlutados de uma cidadezinha desigual que é um microcosmo dos Estados Unidos

RUAN DE SOUSA GABRIEL
17/06/2016 - 08h00 - Atualizado 17/06/2016 21h19

O agente literário e escritor americano Bill Clegg é uma celebridade do mercado editorial. Ele comanda um escritório na Quinta Avenida, em Nova York, e representa autores como Benjamin Moser e a atriz Diane Keaton. Clegg, porém, quase perdeu a carreira por causa da dependência química – ele era viciado em crack e cocaína. Narrou sua batalha contra o vício e sua jornada rumo à recuperação em dois livros memorialísticos: Retrato de um viciado enquanto jovem e Noventa dias. Para escrevê-los, ele voltou a Sharon, a cidadezinha onde nasceu, no nordeste dos Estados Unidos, em busca do tempo perdido. “Abri um arquivo no computador e comecei a escrever tudo de que eu me lembrava”, afirma o escritor, uma das atrações da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), entre 29 de junho e 3 de julho.

O escritor Bill Clegg (Foto: Ozier Muhammad/The New York Times)


 

Você já teve uma família? (Foto: ÉPOCA)


 

Naquele arquivo, Clegg registrou como viviam os habitantes de Sharon – cordiais, mas ressentidos pela crescente desigualdade social. “Quando me lembro de Sharon, a primeira coisa que me vem à cabeça é essa tensão e esse ressentimento que existiam entre uma classe trabalhadora e uma classe abastada”, afirma. Ele tanto mexeu naquele texto que, um dia, dali brotou uma frase estranha: “Ela vai embora”. Era ficção. “Essas três palavras são a primeira peça de ficção que escrevi na vida. E até hoje eu não sei de onde elas vieram”, diz. A frase estranha inicia o segundo capítulo de Você já teve uma família? (Companhia das Letras, 264 páginas, R$ 44,90), o romance de estreia de Clegg. A trama se passa em Wells, uma cidadezinha fictícia, habitada por cidadãos enlutados e invadida por nova-iorquinos ricos nos fins de semana. Quem vai embora no segundo capítulo é June, uma ricaça da cidade grande que perdeu toda a família quando, na véspera do casamento de sua filha Lolly, o fogo varreu o opulento casarão de pedra que ela mantinha em Wells. As chamas levaram Lolly, seu noivo, o ex-marido de June e o namorado dela, Luke, o único rapaz negro da cidade.

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Wells tem 1.500 habitantes, metade dos quais nem mesmo mora lá. Os grã-finos de Nova York são os verdadeiros donos da cidade – e os cidadãos de Wells são seus criados: limpam suas casas, cuidam de seus jardins, garantem sua segurança. “A gente mora num museu muito caro, que só abre nos fins de semana, e nós somos os zeladores”, diz Edith, a florista da cidade. “Wells é um microcosmo dos Estados Unidos e reflete toda essa tensão que existe quando a desigualdade econômica é tão grande”, afirma Clegg. “É isso que explica candidatos raivosos, como (o democrata socialista) Bernie Sanders, que dão voz às frustrações da população”, diz. Clegg dá voz às frustrações de seus personagens. Cada um dos capítulos de Você já teve uma família? leva o nome de um deles: Silas, um adolescente que presta serviços de jardinagens aos forasteiros; Lydia, a mãe de Luke; Rick, o rapaz órfão que fez o bolo do casamento impedido pelo incêndio. “Todos esses personagens navegam por águas que eu também naveguei: o luto e a perda”, diz.

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Clegg buscou inspiração nos conselhos que ele próprio dá a seus escritores: fuja dos rótulos e das expectativas. Um dos rótulos que ele rejeita para este livro é “memorialístico”. “Muita gente me pergunta qual dos personagens do livro é o mais parecido comigo. E eu respondo que são todos e, ao mesmo tempo, não é nenhum. Não há no livro nenhum personagem que mimetize minhas experiências, ainda que compartilhemos ideias e sentimentos.” E sabores. Um bolo de coco e laranja – receita brasileira – seria servido na festa de casamento que não aconteceu. Um bolo semelhante foi servido no casamento do próprio Clegg. “Foi o melhor bolo que eu já comi e por isso ele está no livro.” A receita pertence à mãe do dono de um restaurante brasileiro em Nova York.








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