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Francês que era ateu, virou católico e perdeu a fé escreve livro sobre o cristianismo

Francês que era ateu, virou católico e perdeu a fé escreve livro sobre o cristianismo

No livro O reino, o escritor francês Emmanuel Carrère escava as ruínas de sua fé e, espantado, investiga as verdade de uma religião na qual ele não mais acredita

RUAN DE SOUSA GABRIEL
02/06/2016 - 08h00 - Atualizado 02/06/2016 12h00

A “estrada de Damasco” é a metáfora favorita dos cristãos para a conversão religiosa. Segundo a Bíblia, foi no caminho poeirento entre Jerusalém e a capital da Síria que Saulo, judeu fanático e perseguidor de cristãos, ouviu uma voz vinda do céu: “Saulo, Saulo, por que me persegues?”. Quem perguntava era o próprio Jesus, o líder crucificado da seita que Saulo queria exterminar. Aquele encontro transformou Saulo, o algoz dos cristãos, em Paulo, o apóstolo, que anunciou que o messias dos judeus também salvava outros povos. Para o escritor francês Emmanuel Carrère, a “estrada de Damasco” foi uma aldeia suíça, onde ouviu um sermão sobre uma das últimas interações entre Jesus e seus discípulos, proferido por um velho padre belga, acompanhado por um coroinha com síndrome de Down. Carrère foi “tocado pela graça”.

O escritor francês Emamanuele Carrére em Paris,2015 (Foto: Stephane GRANGIER/Corbis via Getty Images)

O reino (Foto: ÉPOCA)

De volta a Paris, Carrère, um escritor boêmio e ateu, se transformou num católico devoto: ia à missa todos os dias, preenchia cadernos com seus comentários sobre o Evangelho de João e refletia sobre a doutrina da transubstanciação – aquela que afirma a real presença de Cristo na hóstia. A “estrada de Damasco”, porém, é uma via de mão dupla. Três anos, dezenas de cadernos e muita psicanálise depois, a o abandonou. Passados 20 anos, Carrère voltou aos textos sagrados – não como crente, mas como escritor. Em seu novo livro, O reino (Alfaguara, 434 páginas, R$ 54,90), ele escava as ruínas de sua fé e investiga as origens do cristianismo. “Eu quis estabelecer um diálogo entre o cético que eu sou hoje e o crente que eu fui um dia.”

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O reino ganhou prêmio e vendeu mais de 300 mil exemplares na França. Carrère tem 58 anos, escreveu roteiros, assinou resenhas na imprensa e publicou mais de uma dezena de livros. “Há poucos grandes escritores na França hoje, e Emmanuel Carrère é um deles”, afirmou a importante revista literária The Paris Review. No entanto, ele é pouco conhecido no resto do mundo. Em 2014, o jornal britânico The Guardian publicou um perfil de Carrère cujo título era: “O maior escritor francês de quem você nunca ouviu falar”.

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Em 2000, depois de 15 anos dedicados à ficção, Carrère publicou O adversário, um romance de não ficção sobre Jean-Claude Romand, um médico francês que, em 1993, assassinou a mulher, os filhos e os pais aparentemente sem motivo. A realidade se tornou o combustível de sua prosa. Carrère não teme a exposição e transforma a si mesmo e seus entes mais próximos em personagens. Escreveu que seu avô simpatizava com o nazismo e narrou a batalha perdida de sua cunhada contra o câncer.

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Nas páginas de O reino, Carrère percorre as duas vias da “estrada de Damasco” acompanhado de dois personagens bíblicos: Paulo, o apóstolo, e Lucas, autor de um dos evangelhos e dos Atos dos apóstolos, o livro do Novo Testamento que registra a história do cristianismo primitivo. O escritor transforma Paulo num pregador visionário, caluniado pelos outros apóstolos (os que conheceram Jesus) e atormentado por dúvidas: voltaria ele, um dia, a ser Saulo? Lucas é o duplo de Carrère: um intelectual que é atraído pela estranha fé dos cristãos e se põe a investigá-la.

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Lucas era um médico grego simpático ao judaísmo. Depois de ouvir a mensagem de Paulo sobre o carpinteiro de Nazaré que ressuscitara, passa a acompanhá-lo em suas viagens missionárias. “Paulo e Lucas eram parceiros, como Dom Quixote e Sancho Pança ou Sherlock Holmes e Watson”, afirma Carrère. “Eu me identifiquei com Lucas porque ele escreveu seu evangelho como um repórter ou um historiador, alguém que investiga e checa os fatos. Eu gosto de imaginar como teria sido essa investigação.” Lucas não começa seu evangelho com uma profissão de fé, como João (“No princípio era o Verbo”) ou Marcos (“Princípio do evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus”), mas como um historiador que se propõe a empreender “uma narração coordenada dos fatos que entre nós se realizaram”. Mas Carrère acredita que ele também tinha pendor de romancista. “No evangelho de Lucas, há obras-primas literárias, como as parábolas do bom samaritano e do filho pródigo”, diz. “Essas histórias não aparecem nos outros evangelhos. Podemos imaginar que foram invenções dele.”

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Carrère também inventa. O reino preenche as lacunas bíblicas com as dúvidas e elucubrações do escritor, que um dia encarou aqueles textos como fonte de inesgotável sabedoria. É o “método Carrère”, que mistura escrita confessional, ensaísmo, reflexões sobre a literatura e bom humor para mostrar quão estranha é essa história de milagres e mortos que voltam à vida – e quão estranho é que o próprio Carrère tenha acreditado nela.








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