Vida

Geração sem filtro

Geração sem filtro

Aumenta o apreço por autenticidade, transparência e debate. Por que isso é bom para todo mundo

PAULA SOPRANA, COM ANA HELENA RODRIGUES
03/06/2016 - 21h17 - Atualizado 10/06/2016 17h38
Geração sem filtro (Foto: Julia Rodrigues/ÉPOCA)

Camila Tavares chega a ter mais de 1.000 mensagens não lidas no Whats­App quando acorda para o colégio. Às 5h30, checa algumas conversas nos 70 grupos de que participa. Enquanto toma um café da manhã rápido, olha o Snapchat. Aos 15 anos, diz que “não consegue viver” sem rede social, embora afirme nem ser “das mais viciadas” em sua turma. Nascida em 2001, ela pertence à geração que não imagina o que seja a vida desconectada ou conectada precariamente, com a necessidade de usar internet discada à meia-noite para economizar. Para os brasileiros que daqui a alguns anos moldarão a sociedade, é em rede que se expressa, se aprende, se debate e se experimenta. Isso pode ser vantajoso. Num país com escassez de boas novidades, algumas pesquisas mostram que os adolescentes atuais pretendem ousar e empreender mais (cerca de 50% querem criar o próprio negócio). Eles veem as redes como meio de compartilhar ideias, serviços e bens, a fim de melhorar o mundo.

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Como difundirão suas ideias? Não há como saber por certo o que nos aguarda nos próximos capítulos, mas Camila dá spoilers. “Uso o YouTube para estudar”, afirma. A rede de vídeos mais popular do mundo até inspira novas profissões. Camila tem sua lista de youtubers preferidos. Eles amealham influência e dinheiro com vídeos bem editados em casa. Não têm obrigação de ser especialistas nem intelectuais. Os mais famosos são cronistas virtuais. Falam de fatos cotidianos em um relato descontraído, amparados na experiência pessoal. Um exemplo é Jout Jout Prazer, com 98 milhões de visualizações, em um canal sem tema nem roteiro: “Eu só meio que vou falando e vocês meio que vão ouvindo e a gente meio que vai se amando”, descreve Jout Jout. “Às vezes, me dou conta de que fatos da minha vida ou pensamentos que tenho já foram comentados nos vídeos. Eles apresentam um ponto de vista legal e a gente se identifica”, diz Camila. Quando a internet era mais lenta, cara e presa aos desktops, compartilhar pensamentos levava mais tempo. Hoje, a informação é digerida de modo imediato e coletivo. O espaço virtual vira uma sessão permanente de brainstorm, uma constante construção coletiva.

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Autores que estudam a Geração Z – um rótulo só para facilitar o estudo dos nascidos nos anos 1990 – são unânimes em ressaltar o papel pedagógico do YouTube. Corey Seemiler, Ph.D. em educação superior na Universidade do Arizona e autora do livro Generation Z goes to college (A Geração Z vai para a universidade), pesquisa a mudança de hábitos de estudo. “Pode parecer entretenimento para os adultos, mas a aprendizagem com vídeo é um componente crítico nas preferências dessa geração.”

O Snapchat, aplicativo móvel e cada vez mais popular entre seus 150 milhões de usuários diários, dá outra dica valiosa. Esses adolescentes vêm preferindo imagens e vídeos sem grande elaboração e que se autodestroem em 24 horas. Essa rede social não propõe uma lógica da linha do tempo nem questiona data de nascimento, orientação sexual e estado civil. Serve para compartilhar imagens, sem produção. O Facebook não ficou obsoleto, mas muitos adolescentes mantêm suas contas de modo protocolar. Depois do pico de superexposição pessoal iniciada no Orkut e prolongada no Facebook, o Snapchat surge como um espaço de espontaneidade e do fim da obrigação de estar bem na foto. Certa “tosquice” é a nova estética. Não há sentido em manter uma narrativa intacta e que não seja fiel à vida de adolescente, feita de dinâmica e incertezas.

POLÍTICA Partidos não são mais vistos como grandes mediadores dos anseios dos mais jovens. Eles acham as legendas desconectadas de sua realidade e têm pouca tolerância com governantes que decepcionam (Foto: Fontes: Walter Thompson Intelligence Brasil,  2015, faixa de 12 a 19 anos; Takin stock with teens/Piper Jaffray, 2016, idade média de 16,5 anos;  Comitê Gestor da Internet (CGI) – Brasil, 2015, faixa de 9 a 17 anos; J. Walter Thompson | jovens de 12 a 19 anos no Brasil em 2015; Datafolha, DataSenado, TSE/O Globo)

Apesar de tímida em alguns assuntos, Camila não se envergonha em confirmar que o Snap é para “ver a vida dos outros”. Explica que cada aplicativo tem seu fim. O Snap é para mostrar “algo legal do dia a dia” (pouco tratamento e muita autenticidade), o Instagram para as fotos que ficaram bonitas e “momentos especiais” (um espaço para mais seleção e critério) e o Facebook para o contato social com família, conhecidos que moram em outras cidades, grupos do colégio e temas específicos.

Camila é hiperconectada (Foto: Anna Carolina Negri)

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A fuga de modelos não espontâneos e o apreço pela transparência são características fortes do adolescente de hoje, na visão do consultor americano Tom Koulopoulos, do Delphi Group. Segundo ele, o adolescente já projeta essa busca de autenticidade para a política e o mercado de trabalho. “Eles querem comunicação autêntica. Querem ver os indivíduos sem filtro e saber o que está nos bastidores. Senão, ficam desconfiados”, diz. Segundo Corey Seemiler, eles apreciam transparência, mesmo em tempos difíceis. Quem tiver alguma aspiração a liderar, coordenar ou inspirar, já sabe: a abertura será fundamental. Será mais difícil conectar esses jovens a ídolos pré-fabricados, como astros e estrelas pop que seduziram gerações anteriores quase em bloco. Koulopoulos cita a figura de Bernie Sanders, pré-candidato democrata à Presidência dos Estados Unidos. Mesmo idoso, ele conquistou grande parte dos eleitores jovens por sua figura despretensiosa.

Não surpreende que o modelo de representação política vigente, que apresenta candidatos como quem vende uma nova marca de sabão, não dialogue com esses cidadãos, recém-tornados ou prestes a se tornar eleitores. “O engajamento da juventude contemporânea aponta para a baixa lealdade a partidos políticos”, diz Erhardt Graeff, pesquisador do Massachusetts Institute of Technology (MIT). No Brasil, nos últimos seis anos, as maiores legendas perderam uma imensa fatia de jovens filiados: a parcela de eleitores com menos de 24 anos sem preferência partidária chegou a 69% (leia o quadro abaixo). Mas isso não quer dizer que o jovem não faça política. “A Geração Z tem sua própria noção de política, com instrumentos e formatos não tradicionais. É um entendimento diferente do que a democracia deve parecer. Exigem inovação de processo. A questão é se seus antecessores estão aptos e são capazes de responder”, diz a pesquisadora do Centro de Sociedade e Internet da Universidade Harvard, Mayte Schomburg. Ela criou a rede Publixphere, que reúne jovens para discutir política além das linhas partidárias. “Não vejo saída quando o discurso é descolado da ação”, afirma Aline Nunes, de 20 anos, que se interessa por política e pelas causas negra e feminista. “Mas não participo de nenhum coletivo, porque sei que muitos viram massa de manobra de partidos.”

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As barreiras estão caindo para os mais jovens (Foto: Revista ÉPOCA)
TOLERÂNCIA Os adolescentes lutam por igualdade entre diferentes, ao mesmo tempo que diluem tais diferenças (Foto: Revista ÉPOCA)

Eles debatem e planejam o que fazer, incessantemente, a respeito de temas variados como condições de estudo, agressões ambientais, discriminação racial e de gênero. Engajam-se por meio de petições on-line. Mas seu ativismo não deverá se restringir às hashtags. “É mais provável que haja uma quantidade maior de pessoas envolvidas com política hoje, graças ao acesso diário a espaços de expressão cívica e política encontrado nas redes sociais”, diz Graeff. Ele acredita que as atividades on-line complementam ações nas ruas, ao amplificar o teor das mensagens e reunir público maior.

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Boa parte dessa vontade de debater remete ao que os americanos chamam de “guerra cultural” entre conservadores e liberais, disputada nos Estados Unidos às claras há mais tempo que por aqui. Koulopoulos explica que subiu para o topo das prioridades adolescentes discutir machismo, racismo, homofobia e equidade. O pesquisador acha “maravilhoso” que grande parte dos jovens não ligue para rótulos, e sim para indivíduos. A pesquisadora britânica Chloe Combi, que escreveu Generation Z: their voices, their lives (Geração Z: suas vozes, suas vidas), também é otimista. Diz que os adolescentes de hoje são a primeira geração em que uma parcela expressiva não faz questão de se identificar com os gêneros tradicionais de homem e mulher. Em seu trabalho, Chloe entrevistou centenas de milhares de jovens. Identificou que 89% apoiam alternativas diferentes de relacionamento. “É só olhar para o Facebook. Há centenas de opções e gênero. Eles (os adolescentes) estão prontos para erradicar comportamentos como a homofobia e a transfobia”, afirma. A expectativa de Chloe soa tão bela quanto audaciosa. Tudo bem. Não é assim que têm de ser todas as expectativas juvenis?

Dicionário e manual de conduta para os tios* (Foto: Revista ÉPOCA)







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