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João Paulo Cuenca: “Um romance distópico no Brasil é um romance realista”

João Paulo Cuenca: “Um romance distópico no Brasil é um romance realista”

Livro e filme retratam história real de morto que foi identificado como o autor, que se divorciou do Rio de Janeiro

RUAN DE SOUSA GABRIEL, DE PARATY
01/07/2016 - 21h36 - Atualizado 01/07/2016 22h19

Num dia de 2008, o escritor carioca João Paulo Cuenca estava em Roma lançando um livro. Nesse mesmo dia, um homem foi encontrado morto dentro de um prédio ocupado na Lapa, bairro boêmio do Rio de Janeiro, e identificado como João Paulo Cuenca. O nome, a filiação, os números dos documentos – tudo batia com os dados do escritor que estava a quilômetros dali. Cuenca só descobriu que estava morto em 2011, quando foi a uma delegacia resolver um problema com um vizinho barulhento. A descoberta da própria morte a investigação que se seguiu forneceram matéria-prima para o romance Descobri que estava morto (Tusquets Editores, 240 páginas, R$ 33,90) e o filme A morte de J.P. Cuenca, dirigido e protagonizado pelo ator e que chegou aos cinemas nesta quinta-feira (30).

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Cuenca também repetiu sua história de morte e ressurreição na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) e recebeu aplausos e risadas do público. Nesta sexta-feira (1ª), o escritor (e cineasta, e ator) dividiu a mesa “A história de minha morte” com a escritora mexicana Valeria Luiselli, autora de A história de meus dentes (Alfaguara, 164 páginas, R$ 34,90). Após o debate, Cuenca conversou com ÉPOCA sobre a vida, a morte e o Rio de Janeiro.

O escritor carioca João Paulo Cuenca (Foto: © Jorge Bispo)

ÉPOCA – Como é descobri-se morto?
João Paulo Cuenca –
O livro é uma resposta a essa pergunta. É uma grande questão quanto você descobre que usaram não só o seu nome, mas também a sua filiação, a sua data de nascimento, seus números de identidade para morrer é que esse identidade está gasta e foi usada. É uma sensação de recomeço, mas antes vem uma queda e um zero. Subjetivamente falando, foi uma sensação de esgotamento, de vazio. Talvez eu tenha escrito o livro para preencher o livro. Porque não é só uma questão policial. O romance deriva para outras coisas.

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ÉPOCA – Quando você percebeu que essa história toda dava um livro?
Cuenca –
No começo, eu fugi um pouco da história. Eu hesitei em investigar. Mas, a partir de algum momento em 2012, ficou impossível não pensar nisso até o momento que eu comecei a escrever sobre.

ÉPOCA – A literatura brasileira contemporânea está repleta de livros classificados como autoficção, o que, muitas vezes, leva os leitores a confundir o narrador com o autor devido à relativização da fronteira entre realidade e ficção. No seu caso, primeiro a sua vida ganhou ares ficcionais para depois você transformá-la num romance. Você acha que o que aconteceu com você foi uma vingança da literatura?
Cuenca –
Não sei se foi uma vingança. Esse procedimento [a autoficção] não é nada novo. Começou na França, nos anos 1970. E também há o Philip Roth, nos Estados Unidos, e, agora, esse norueguês [o escritor Karl Ove Knausgärd]... A minha referência nesse romance foi a tradição do roman à clef do começo do século XX, quando escritores descreviam a sociedade, os salões, mas usando nomes falsos. Lima Barreto fez isso em Recordações do escrivão Isaías Caminha. Desde Dom Quixote, o romance moderno mostra personagens envolvidos num embate entre o real e o ficcional. É sempre sobre uma travessia entre a realidade e a utopia, entre o mundo concreto e o mundo imaginado. Isso está no coração da forma romanesca. Não é uma novidade. Para mim, a literatura é a forma de arte mais total. Estamos vivendo, hoje em dia, a proliferação das nossas próprias imagens, os ícones de nós mesmos na internet, essa ficcionalização do eu por meio de avatares e perfis e tal. Isso transformou a todos nós em personagens de ficção [risos]. É um pouco quixotesta a própria ideia do Facebook, do Instagram. Nas redes sociais pessoas projetam coisas que elas não são e ficam se vendo, respondendo comentários e começam a acreditar naquilo! Uma das marcas do contemporâneo é essa liquidez entre a representação do real e do próprio real. Além de estar na base do romance literário, é o que estamos vivendo no Facebook, uma existência meio virtual, meio holográfica.

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ÉPOCA – Existe o João Paulo Cuenca real, que é escritor, o J.P. Cuenca que é protagonista do livro e também o J.P. Cuenca que é personagem do filme A morte de J.P. Cuenca. Você observa diferenças entre esses três personagens que são todos você?
Cuenca –
Talvez cada um tenha uma faceta diferente. Um é mais Sancho Pança, outro é mais Dom Quixote [risos]... E o outro talvez seja o titereiro.

ÉPOCA – E você é o titereiro?
Cuenca – Nos meus melhores dias, sim [risos]. Nos dias felizes.

ÉPOCA – Você é um escritor que agora virou cineasta e ator. Qual a diferença de contar uma história por meio da literatura e por meio do cinema?
Cuenca –
Num set , você lida com limitações concretas do mundo real: a gravidade, o orçamento, seres humanos, chuva, o tempo corrido. E, na escritura de um romance você é Deus. Você faz as coisas desaparecerem e aparecerem. Eu precisei dirigir o filme para perceber o tamanho do poder que um romancista tem nas mãos. Na filmagem, você luta o tempo todo com as limitações materiais. Na literatura, a limitação é a linguagem. O processo de produção de um longa-metragem é coletivo, há um grau de improviso muito grande. No filme, eu tive de me desapegar de todo o controle que eu tenho como romancista. São procedimentos artísticos bastante diferentes.

ÉPOCA – Na mesa da Flip, você disse que, de certa forma, o romance Descobri que estava morto foi um pretexto para explorar a situação do Rio de Janeiro pré-Olímpico da especulação imobiliária, reformas urbanas e remoção de favelas. Como você vê a situação do Rio a poucas semanas dos Jogos Olímpicos?
Cuenca –
Vejo com muita tristeza e preocupação. Não imaginava que eu lançaria esse livro num momento ao mesmo tempo tão bom e tão ruim. É meio mágico que um livro tão crítico ao Rio de Janeiro seja publicado num momento em o Rio está num estado de calamidade por pura irresponsabilidade e desonestidade de seus governantes. Isso é a marca do governo do PMDB, a marca da maldade.

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ÉPOCA – Antes de escrever Descobri que estava morto, você estava trabalhando um romance distópico sobre o Rio de Janeiro em 2020. A realidade do Rio superou a distopia de seu livro?
Cuenca –
Acho que sim. Eu aprendi que escrever um romance distópico no Brasil é simplesmente escrever um romance realista. A realidade brasileira é distópica. Distópico é um Estado injusto, com rasgos de autoritarismo, militarizado, violento. O Brasil já nasceu sob a égide da distopia. Distopia é uma coisa fora do lugar. E todo o processo histórico do Brasil é baseado em deslocamentos artificiais: o massacre dos índios, a escravidão, a colonização do interior do país por meio da violência. Não é um romance distópico, é a história. Distopia é a Favela da Maré ocupada pelo Exército brasileiro. O número de jovens assassinatos no Rio depois do anúncio da Olimpíada cresceu demais! 

ÉPOCA – Valéria Luiselli comentou que, por ter crescido no exterior, a literatura é uma forma de se apropriar de novo da Cidade do México. Isso também é verdade em sua relação com o Rio de Janeiro?
Cuenca –
Sim. Total. A minha relação com o Rio de Janeiro é muito conflituosa. Eu amo e odeio aquela cidade e me divorciei dela. Esse meu livro, como todos os outros, é uma tentativa de dialogar com autores que considero canônicos e que deixaram uma literatura que fala muito sobre o Rio de Janeiro. O livro está repleto de referências a Machado de Assis, Rubem Fonseca... Eu escrevi esse livro todo lá, mas agora, que eu o vejo publicado, não estou mais lá. Foi quase como se eu dissesse: “Fiquem com isso que eu vou-me embora” [risos]... Prometi para mim mesmo que nunca mais moraria no Rio. Desisti do Rio. E desisti um pouco de mim também. Foi um divórcio mesmo. Mas, ao mesmo tempo, eu sempre vou ver o mundo como alguém que nasceu e foi criado lá. Fico muito revoltado com a falta de respeito do Rio com ele mesmo. É uma cidade que não tem o menor pudor de se autodemolir. Hoje, vivo em São Paulo.

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ÉPOCA – Você participou da primeira Flip, em 2003, e é conhecido por suas críticas aos festivais literários. Como você vê o desenvolvimento da Flip e dos festivais literários nesses últimos anos?
Cuenca –
Não sou um crítico dos festivais literários. Adoro ser convidado para festivais literários. Eu quero que as pessoas nos vejam falando, mas quero também que essa experiência seja complementada pela leitura do livro, que é o principal. A Flip foi fundamental como modelo nacional de festas e circulação de escritores. Isso é muito positivo. E essa discussão sobre a composição da Flip, sobre a porcentagem de homens, mulheres, negros, também é muito positiva. É fruto de um amadurecimento. O festival já está pensando sobre si próprio!








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