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Argelino reescreve O estrangeiro, de Albert Camus, do ponto de vista de um árabe

Argelino reescreve O estrangeiro, de Albert Camus, do ponto de vista de um árabe

Ao reescrever a obra mais famosa de Camus, Kamel Daoud dá voz aos árabes e reflete sobre os dilemas da Argélia pós-colonial

RUAN DE SOUSA GABRIEL
19/08/2016 - 14h30 - Atualizado 19/08/2016 16h34
O escritor franco-argelino Albert Camus (Foto:  Kurt Hutton/Getty Images)

Em 1942, os nazistas marchavam sobre a Europa deixando um rastro de sangue e terror. No entanto, um dos assassinatos de maior repercussão daquele ano ocorreu numa ensolarada praia argelina. Numa escaldante tarde de verão, por volta das 2 horas, Meursault, um pied-noir (colono francês que vivia na Argélia), matou um jovem árabe anônimo sem qualquer motivo – ele culpou o incômodo com o sol e o calor úmido pelos cinco tiros. Meursault, um anti-herói misantropo e fotossensível, é o narrador de O estrangeiro, de Albert Camus, pied-noir criado num bairro operário de Argel. O romance ilustra a filosofia existencialista que o autor, nos anos seguintes, viria a formular: a vida é guiada pelo absurdo e, portanto, não tem nenhum sentido ou propósito definido por forças divinas ou cósmicas. “Tentei fazer meu personagem representar o único Cristo que merecemos”, afirmou Camus sobre seu anti-herói. Para ele, a única possibilidade de redenção do homem moderno estava na rebeldia – na recusa lúcida de ideologias políticas ou religiosas.

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Meursault é um homem em permanente estado de exílio. Os corpos das mulheres raramente o excitam, a morte da mãe não o comove – nem a proximidade da própria  execução o aflige. Meursault é condenado, na Justiça, não pelo assassinato gratuito de um árabe sem nome, mas por ser incapaz de sentir remorso e por não ter chorado no enterro da mãe. A prosa solar de Camus, impiedosa como a angústia subterrânea de Meursault, transformou O estrangeiro numa das obras-primas do século XX. Como tal, sujeita a releituras constantes.

Uma das releituras mais ousadas veio de um escritor argelino. Kamel Daoud reescreveu O estrangeiro em francês, mas do ponto de vista dos árabes que não têm voz no livro de Camus. O caso Meursault foi publicado na Argélia em 2013 e, no ano seguinte, na França. A edição brasileira (Biblioteca Azul, 168 páginas, R$ 39,90) chega às livrarias neste mês.

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Daoud dá ao árabe morto um nome – Moussa (Moisés, em português) – e um irmão, Haroun (Arão), que é quem conta a história. Moussa era um moço viril, com barba de profeta e dono de mãos fortes que poderiam abrir o mar, mas carregavam caixas na feira. Haroun é uma espécie de Sísifo, personagem da mitologia grega, recuperado por Camus num ensaio filosófico de 1941. Sísifo é condenado pelos deuses a, todos os dias, empurrar uma pedra de mármore morro acima antes que ela caísse novamente. Haroun é condenado a repetir a história da morte infame de seu irmão todos os dias num bar de Orã, a segunda maior cidade da Argélia. Quem o ouve é um “investigador universitário”, um jovem francês que carrega uma edição de O estrangeiro na bolsa.

O romance de Albert Camus é fonte inesgotável de releituras: na literatura, no cinema italiano e até no rock britânico (Foto: Fotos: AFP e divulgação (4))


 

Daoud imita a prosa límpida de Camus e homenageia outras de suas obras. Orã, onde mora Daoud, também é cenário de A peste, romance-metáfora sobre o avanço do nazismo na Europa. O monólogo sem fim de Haroun remete à conversa de bar que conduz o enredo de A queda. Daoud também não hesita em surrupiar alguns dos trechos mais memoráveis de O estrangeiro, como as palavras duras que Meursault dirige a um padre que tentava convertê-lo. “Nenhuma das suas certezas valia um fio de cabelo de cada uma das mulheres que eu amei”, repete Haroun, ao ser assediado por um clérigo muçulmano.

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Na França, O caso Meursault venceu o prestigioso prêmio Goncourt. Daoud deu entrevistas a programas da TV, recebeu elogios da crítica literária e do primeiro-ministro Manuel Valls. O êxito do romance apontou para uma ferida ainda aberta: a relação entre a ex-colônia e a ex-metrópole. A guerra de independência da Argélia se estendeu entre 1954 e 1962. Para combater os guerrilheiros nacionalistas, o Exército francês recorreu à repressão brutal e a técnicas de tortura que, anos mais tarde, foram importadas pelas ditaduras latino-americanas, como a brasileira.

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Nos anos 1950, na contramão da esquerda europeia, Camus recusou-se a apoiar a luta da Frente de Libertação Nacional pela independência. Na Argélia, o controverso legado do autor inspirou a literatura. O escritor Salah Guemriche publicou Aujourd’hui, Meursault est mort (Hoje Meursault morreu, na tradução do francês, uma referência à célebre primeira frase de O estrangeiro: “Hoje mamãe morreu”). Guemriche critica o anonimato do árabe morto ao narrar os diálogos entre o filho da vítima de Meursault e um francês chamado Albert. Outro acerto de contas literário é o romance Camus dans le narguilé (Camus dentro do narguilé), de Hamid Grine, ministro da Comunicação da Argélia. Grine conta a história de um homem que pensa ser filho bastardo do escritor para aconselhar os argelinos a desistir de reclamar Camus para si.

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O caso Meursault, porém, não é sobre a Argélia e Camus. É, na verdade, uma reflexão sobre os dilemas da Argélia pós-colonial, espremida entre o nacionalismo árabe e o radicalismo islâmico. Assim como Meursault, Haroun tem sangue nas mãos e um astro por testemunha de seu crime. Poucos dias após a independência, numa madrugada de “lua fosforescente”, Haroun dispara contra um francês que buscava abrigo em sua casa. O francês morto tem nome: Joseph Larquais, um pied-noir louro e gordo. Segundo os guerrilheiros que passaram a governar o país, o crime de Haroun não foi o assassinato de um francês, mas ter disparado o revólver tarde demais. Embora jovem e forte, ele não pegou em armas pela independência da Argélia. “Era preciso matar os franceses durante a guerra, não nesta semana!”, grita o coronel durante o interrogatório.

Kamel Daoud escritor (Foto: BERTRAND LANGLOIS/AFP)

Daoud nasceu em 1970, numa Argélia secular que despontava como potência regional. Nos anos 1990, a “Década Negra”, uma guerra civil opôs radicais islâmicos ao governo nacionalista liderado pela geração que lutou pela independência. Os islamistas não derrubaram o regime, mas a religião avançou sobre o espaço público. Na adolescência, Daoud abraçou a ortodoxia islâmica, mas abandonou a religião aos 18 anos. Arrumou emprego no jornal Le Quotidien d’Oran, no qual começou a publicar artigos em que disparava contra o nacionalismo e o fundamentalismo islâmico. Depois do 11 de Setembro, disse que os árabes continuariam a se autodestruir enquanto fossem mais famosos por sequestrar aviões do que por fabricá-los.

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O prestígio que Daoud conquistou na França e seus comentários mordazes sobre a realidade de seu país provocaram ódio ao longo do espectro político argelino. Parte da intelectualidade local o rejeitou e passou a tratá-lo como um autor que escrevia para francês ler. Um obscuro clérigo muçulmano decretou uma fatwa (condenação à morte por uma autoridade religiosa) contra o escritor, a quem acusou de insultar ao islã.

A intelectualidade europeia não ofereceu exílio ao escritor. Em janeiro, Daoud publicou, no jornal francês Le Monde, um artigo sobre os ataques sexuais perpetrados por refugiados árabes em Colônia, na Alemanha, na noite de Ano-Novo. Daoud acusou de ingênua a esquerda que ignora o abismo cultural que separa os refugiados dos valores europeus – especialmente no tratamento reservado às mulheres. “O Outro (o imigrante) vem deste universo vasto, doloroso e terrível – um mundo árabe-muçulmano cheio de miséria sexual, com uma relação doentia com as mulheres, o corpo e o desejo”, escreveu. “Recebê-los não é curá-los.” No mesmo jornal, um coletivo de intelectuais europeus publicou um manifesto que repreendeu o “paternalismo colonial” de Daoud e acusou-o de “alimentar as fantasias islamofóbicas” da direita do continente.  “Considero ilegítimo – para não dizer escandaloso – que certas pessoas me acusem de islamofobia do conforto de seus cafés ocidentais”, retrucou Daoud.

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Quando Camus publicou O estrangeiro, o totalitarismo destruía as vidas e os valores da Europa. Camus resistiu aos nazistas e foi membro do Partido Comunista, mas converteu-se em crítico do regime soviético. Sua defesa do absurdo foi também uma celebração da vida humana, que jamais deveria ser sacrificada em nome do Reino dos Céus ou da sociedade sem classes. “O absurdo camusiano me devolveu o sentimento de dignidade”, afirma Daoud. “Notei que as pessoas que operam dentro de um sistema filosófico fechado são justamente aquelas que praticam o absurdo, que matam umas às outras.” Num tempo em que facções radicais da direita sonham com uma Europa livre de imigrantes, e mesmo eleitores indentificados com a esquerda se sentem ameaçados pela concorrência dos trabalhadores estrangeiros – para não falar do terrorismo religioso que alarma o Ocidente –, o escritor faz uma defesa intransigente das liberdades individuais. Assim como Camus, Daoud não se submete a cartilhas ideológicas e, por isso – seja na Argélia, seja na França –, é condenado a desempenhar o velho papel de estrangeiro.








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