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Inéditas em livro, crônicas apresentam faceta política de Rubem Braga

Inéditas em livro, crônicas apresentam faceta política de Rubem Braga

Escritos entre o Estado Novo e o governo Collor, textos revelam que o cronista das miudezas da vida cotidiana era um antigetulista feroz

RUAN DE SOUSA GABRIEL
26/08/2016 - 11h27 - Atualizado 26/08/2016 11h27

Quando Getúlio Vargas saiu da vida e entrou na história com um tiro no peito, na madrugada de 24 de agosto de 1954, o cronista Rubem Braga (1913-1990) não ficou triste. “Não vou chorar sobre o corpo inanimado do Sr. Getúlio Vargas as lágrimas que não tenho, nem balbuciar as orações que minha descrença não aprendeu”, escreveu no Correio da Manhã. Getúlio era um velho adversário do “sabiá da crônica”, que não arrastava a asa para populismos. Braga fora preso durante o Estado Novo e duvidava das credenciais democráticas de Getúlio, mesmo depois de ele ter voltado à Presidência pelo voto. “É impossível deixar de reconhecer que transformou sua hora pior em uma espantosa vitória”, escreveu Braga sobre o suicídio presidencial.

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Esse Braga político é menos conhecido do que o Braga lírico que, com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, contemplava as miudezas da vida, as curvas das mulheres e da paisagem do Rio de Janeiro, os passarinhos, os amores fugazes e o tempo. Braga privilegiou esses textos poéticos na composição de suas antologias, como Ai de ti, Copacabana (1960). As crônicas nas quais ele bicava os políticos, passeava por ateliês e comentava os novos acordes da música brasileira permaneceram inéditas em livro até este mês. Crônicas (Autêntica, 736 páginas, R$ 134,90) reúne textos sobre política, música e artes plásticas dispostos em três volumes: Bilhete a um candidato (organizado por Bernardo Buarque de Hollanda), Os moços cantam (Carlos Didier) e Os segredos todos de Djanira (André Seffrin).

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Braga dizia ser um “homem de pouca música e nenhum ritmo” e um “apreciador distraído” da arte, mas se envolveu em divertidas controvérsias com o tarimbado crítico de arte Mário Pedrosa e elogiou Chico Buarque, “a maior revelação da música popular brasileira dos últimos tempos”. Nos textos políticos, ele assumia o velho papel do cronista historiador, capaz de captar os humores de seu tempo. Bilhete a um candidato & outras crônicas sobre política brasileira congrega textos escritos desde os últimos suspiros da ditadura getulista, em 1944, até o primeiro ano do governo de Fernando Collor de Mello – a poupança de Braga também foi confiscada. Muitas dessas crônicas foram escritas no formato de cartas. Braga encarnava o cidadão comum e assinava missivas furiosas destinadas ao prefeito do Rio, ao delegado de polícia, a Getúlio e seus próceres.  

Rubem Braga escritor (Foto:  Alberto Jacob / Agência O Globo)
livro Rubem Braga (Foto: livro Rubem Braga)

Braga tinha política no sangue – seu pai fora prefeito de Cachoeiro de Itapemirim. Como repórter, ele cobriu a Revolução Constitucionalista de 1932 e a atuação dos pracinhas brasileiros na Segunda Guerra Mundial. Em 1947, Braga assinou o manifesto de fundação do Partido Socialista Brasileiro, mas nunca desempenhou o papel de militante. Acabou por recusar todas as cartilhas ideológicas e distribuiu bicadas ao longo do espectro político, do vereador ao presidente da República. O governo de Juscelino Kubitschek, escreveu ele, já nascera “fraco e sujo de mil pecados originais”. Braga também não simpatizava com Leonel Brizola, considerava o líder comunista Luís Carlos Prestes “um dos políticos mais errados do Brasil” e reprovava os “métodos” de Adhemar de Barros, governador de São Paulo.

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A ojeriza ao getulismo lhe rendeu alguns empregos públicos. Durante o breve governo de Café Filho, o vice de Getúlio, Braga chefiou o Escritório Comercial do Brasil em Santiago, no Chile. Jânio Quadros, que se elegeu com a retórica de varrer a corrupção do governo JK, o nomeou embaixador no Marrocos. Na imprensa, Braga escreveu que Jânio tinha “méritos” e José Sarney, egresso da UDN, o principal partido de oposição a Getúlio, “certamente procuraria fazer um grande governo” no Maranhão. O sabiá às vezes tinha bico mole.

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Braga estava atento às demandas populares. Denunciou a lentidão do governo em socorrer os flagelados da seca e o desinteresse dos políticos pelos problemas urbanos do Rio (só pensavam em Brasília!). Defendeu a reforma agrária e direitos trabalhistas para o homem do campo. Elogiou a militância dos católicos contra a ditadura. A oposição feroz ao getulismo não o impediu de manter uma postura nacionalista. O cronista disparava contra as multinacionais e engajou-se na campanha O Petróleo É Nosso. “Braga combatia o modo personalista como Vargas conduzia a política”, afirma Bernardo Buarque de Hollanda, organizador da coletânea política. “Ele se opunha a uma cultura política dependente de um líder carismático.”

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Braga renunciou ao posto de embaixador em 1963, quando João Goulart, herdeiro político de Getúlio, assumiu a Presidência. No ano seguinte, saudou o golpe militar, mas logo passou a criticar os generais no poder. Condenou a política econômica de Castelo Branco, a censura e a violência do novo regime: “Esse policialismo sem freios é que torna a Revolução detestável”, escreveu. “À medida que a linha-dura militar ganhava força, Braga percebia que o golpe não tivera aquele significado político que ele imaginara”, afirma Buarque de Hollanda.

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As crônicas de Braga dão conta dos principais acontecimentos dos primeiros anos da ditadura, como a bomba explodida pela esquerda no aeroporto dos Guararapes, no Recife, em 1966, e o assassinato do secundarista Edison Luís de Lima Souto, em 1968. Um dos textos mais emblemáticos desse período trata do discurso do deputado Márcio Moreira Alves, do MDB, que chamou o Exército de “valhacouto de torturadores”. Braga escreveu que Moreira Alves se excedera, mas não mentira, e criticou o governo, que pedira a cassação do deputado. “Digo com franqueza: tudo isso é grave, é inquietante, é terrível. Ma non è una cosa seria”, escreveu. A história o contrariou. A recusa da Câmara em autorizar o processo contra Moreira Alves assanhou a linha-dura do regime militar, que decretou o AI-5.

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O erro de Braga revela, porém, uma das virtudes do cronista: escrever no calor da hora e oferecer análises rápidas em momentos de crise. “Ele escrevia em meio à perplexidade do momento e não sabia o que aconteceria no dia seguinte, o que explica as inflexões no pensamento político dele”, diz Buarque de Hollanda. Da varanda de seu apartamento, em Ipanema, Braga contemplava a passagem preguiçosa do tempo. Mais ao rés do chão, ele opinava sobre os tempos efervescentes que o Brasil vivia. Suas crônicas políticas sugerem que é possível preservar o lirismo mesmo em tempos de crise.








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