Vida

O pai de Matilda faz 100 anos

O pai de Matilda faz 100 anos

Roald Dahl, um dos mais aclamados autores de livros infantis, teve uma vida conturbada que ajudou a dar o tom inventivo de seus livros

NINA FINCO
14/09/2016 - 13h24 - Atualizado 21/09/2016 17h46
Filme Matilda, Roald Dahl (Foto: AFP)

No Brasil, o nome Roald Dahl não chama muita a atenção. Mas os títulos A fantástica fábrica de chocolate, Matilda e James e o pêssego gigante são velhos conhecidos de crianças e adultos. Dahl é o autor de algumas das mais queridas histórias infantis, cujas fantasias foram transformadas em filmes adoráveis que conquistam fãs até hoje. Seus livros, que venderam mais de 100 milhões de cópias no mundo todo, são marcados por tramas delirantes que tendem a mostrar aos pequenos a verdadeira natureza humana. O desconcerto de descobrir certos traços da humanidade é rapidamente arrebatado pelas deliciosas surpresas causadas por uma menina com poderes de telecinese, homenzinhos trabalhadores que cantam e se vestem esquisito e insetos com personalidades marcantes e cheios de manias. No centenário de seu nascimento (13 de setembro é conhecido no exterior como o Dia de Roald Dahl), conheça sua trajetória turbulenta – cujos acontecimentos absurdos certamente dariam um livro – e relembre seus maiores clássicos.

O escritor britânico Roald Dahl (1916 - 1995), em foto de 1971 (Foto:  Ronald Dumont/Daily Express/Getty Images)

Nascido em 1916, no País de Gales, Roald recebeu seu nome em homenagem a um famoso explorador norueguês – a pronúncia se assemelha à RuPaul, sem o “p”. Até os 3 anos de idade, sua infância parecia normal. Naquele ano, a irmã mais velha de Dahl morreu repentinamente. Sua partida foi acompanhada, algumas semanas depois, de seu pai, desolado. Esse foi o início de uma série de infortúnios que seguiriam o escritor até o fim de sua vida.

>> Infância de Harper Lee e Truman Capote inspira livro infantojuvenil

Quando garoto, seu nariz foi arrancado fora num acidente de carro e precisou ser costurado de volta. Mais tarde, ele foi mandado para um internato na Inglaterra, onde sofreu com as mazelas tradicionais de quem vive longe da família. Durante a Segunda Guerra Mundial, tornou-se um dos mais promissores pilotos da Força Aérea Real britânica – até seu avião cair no Deserto da Líbia, em seu primeiro voo oficial. Não bastasse o trauma, teve o crânio fraturado, a espinha deslocada, o nariz afundado e os olhos queimados pelo sol. Depois de muitos remendos, ele voltou à guerra.

Milagrosamente, conseguiu sobreviver aos conflitos, mas não sem ser assombrado por problemas de saúde crônicos: dores de estômago, dedos entorpecidos, dor nas costas e, finalmente, câncer. Devido à doença, ele teve todos os seus dentes removidos. Até esse momento, ele tinha apenas 21 anos.

Sua carreira como escritor começou logo após a guerra. Ele escrevia para afastar a depressão. Logo em seguida, casou-se e teve filhos. Mas a má sorte não deu trégua. Aos 4 meses de idade, o carrinho de bebê de seu filho foi atingido por um táxi com tanta força que o menino teve o crânio danificado – a criança sobreviveu. Dois anos depois, a filha de 7 anos contraiu sarampo e morreu de uma inflamação no cérebro. Então, aos 39 anos, sua esposa, a atriz Patricia Neal, sofreu um aneurisma e entrou em coma por três semanas.

Dahl emergiu desse furacão de desgraças como um homem absolutamente complexo. Ele sabia ser atencioso e amável. Certa vez, no meio da noite, escreveu o nome das filhas no gramado em frente a sua casa, com herbicida, e disse a elas que aquilo era obra de fadas. Grande parte do lucro de seus livros foi doada à caridade. Além disso, como um verdadeiro herói de histórias fantásticas, ele se doava completamente quando confrontado com crises. Após o acidente de seu filho, Dahl ajudou a inventar uma espécie de válvula que impedia o fluido espinhal de pressionar o cérebro do menino – a ferramenta acabou sendo tão eficaz e barata (Dahl recusou-se a lucrar com o invento) que foi usado em centenas de outros pacientes. Quando sua mulher acordou do coma, Dahl a auxiliou com um regime de reabilitação esgotante – às vezes, até cruel – que acabaria revolucionando o tratamento de derrames.

>> Divertida Mente: uma história (engraçada) dos sentimentos
>> O menino contra o mundo: a guerrilha brasileira para ganhar o Oscar

Contudo, Dahl também podia ser muito desagradável às vezes. Quando criança, amarrava sua irmã em travesseiros e atirava nela com arminhas de ar comprimido. Já adulto, ele gostava de aterrorizar editores e de arranjar discussões em jantares, apenas pelo prazer de chamar a atenção. O escritor foi pego muitas vezes em declarações antissemitas – em 1990, pouco antes de sua morte, ele admitiu durante uma entrevista ser “anti-Israel”.

Como um homem com terríveis experiências de vida e certa inclinação ao ódio pôde tornar-se um dos maiores escritores de histórias infantis? Outra obra do azar. Após a queda de seu avião, Dahl passou a acreditar que seu cérebro havia “mudado” e que ele devia começar a escrever histórias. Ele almejava ser grande. No início da carreira, publicou histórias perturbadoras, mas interessantes, em revistas como Harper’s Bazaar e The New Yorker. Elas chamaram a atenção do lendário editor Maxwell Perkins (que publicara obras de Hemingway, Fitzgerald e Thomas Wolfe), que decidiu publicar o primeiro livro de Dahl. Mas Perkins morreu com o manuscrito em sua mesa, e a carreira de Dahl como romancista de prestígio nunca decolou. Ele acabou desistindo e canalizou suas grandes ambições em formatos menores: contos e, mais tarde, livros para crianças.

>> A importância da morte nos desenhos infantis

O azar de Dahl se tornou a sorte de gerações de leitores que buscavam histórias que iam além da lógica e do comum. O mal é um elemento constante em suas tramas – mesmo que o bem triunfe e os maus sejam punidos (ou mortos), os personagens mais macabros são tão fascinantes quanto os mocinhos. Ele também trouxe fôlego ao universo da literatura infantil, muitas vezes subestimado. A personalidade inquieta e perturbada de Willy Wonka não seria facilmente encontrada em obras de autores como Charles Dickens ou Mark Twain. A tônica das histórias de Dahl é a inventividade profunda, resultado, talvez, da junção dos dois lados de sua personalidade: o desagradável e o encantador.

Confira abaixo uma lista das principais obras de Dahl, que morreu em Oxford, aos 74 anos.

A fantástica fábrica de chocolate

Escrito em 1964, o livro chegou a ser classificado como ficção científica para crianças. A história acompanha Charlie Bucket, um garotinho inteligente de família pobre, que vive em uma casa de um cômodo só com seus pais e avós idosos. Seu avô Joe adora contar histórias sobre quando trabalhou para Willy Wonka em sua fábrica de chocolates. Certo dia, Wonka lança um concurso mundial. Cinco crianças que encontrarem bilhetes dourados escondidos nas embalagens de seus chocolates terão a oportunidade de conhecer a fábrica. Charlie é um dos ganhadores. Conforme o grupo muda de sala para sala, criança após a outra é traída por seus próprios vícios e eliminada do passeio. Os Oompa Loompas, trabalhadores anões da fábrica, cantam canções que ensinam sobre os erros das crianças removidas.


O livro foi adaptado para o cinema em duas ocasiões: em 1971, com Gene Wilder (morto em agosto deste ano) no papel de Willy Wonka e, em 2005, com Johnny Depp. Dahl não gostou da primeira versão cinematográfica de Charlie.

Convenção das bruxas

Publicado em 1983, a história se passa na Noruega e no Reino Unido, acompanhando um garotinho sem nome que ama escutar histórias de sua avó norueguesa. Sua preferida é sobre uma sociedade secreta de bruxas horrendas que odeiam crianças. Durante uma viagem ao litoral britânico, eles deparam com as feiticeiras raivosas que planejam transformar todas as crianças da Inglaterra em ratos. O garotinho é descoberto e acaba sendo vítima do feitiço.


Foi adaptado para o cinema em 1990, com Anjelica Huston como a bruxa má principal. No filme, o garotinho recebe o nome de Luke. O final é diferente da versão literária.

O fantástico Sr. Raposo

Publicado em 1970, o livro conta a história de uma esperta raposa que atende pelo nome de Sr. Raposo. Ele vive embaixo de uma árvore, com sua esposa e quatro filhos. Para alimentar sua família, faz visitas noturnas às propriedades de três fazendeiros cruéis e abocanha o que puder. O livro descreve as incursões do Sr. Raposo e seus métodos para matar galinhas com naturalidade desconcertante.


A obra também foi adaptada para o cinema, pelas mãos de Wes Anderson, numa mágica versão em stop motion com direito às excentricidades típicas do cineasta.

Matilda

O livro foi publicado em 1988, dois anos antes da morte de Dahl. Na história, Matilda é uma garotinha precoce, adorável e com poderes especiais que é negligenciada pelos pais. Na escola, ela encanta a professora, Srta. Honey, que tenta mudá-la para uma série mais adiantada. A diretora, a tirânica Sra. Trunchbull, se recusa a permitir. Ao longo da história, Matilda e a professora se aproximam cada vez mais. A garotinha aprenderá a usar a telecinese para ensinar lições a quem não a leva a sério.


Foi transformado em filme em 1996, dirigido por Danny DeVito, que fez o papel de pai relapso e de narrador.

O grande gigante amigo

A história, publicada em 1982, foi uma expansão de um conto de 1975 do livro Danny, the champion of the world. O livro é dedicado a Olivia, filha de Dahl que faleceu de sarampo aos 7 anos. A trama acompanha Sophie, uma garotinha que vive num orfanato para meninas, dirigido pela Sra. Clonkers, uma mulher rabugenta e abusiva. Uma noite, Sophie vê uma pessoa muito grande assoprando uma especie de trombeta numa janela do outro lado da rua. O ser gigante a descobre e a leva para seu país. Lá, ele se identifica como o Bom Gigante Amigo, que leva sonhos para crianças. Mas ele parece ser o único ser bonzinho de sua espécie, já que os outros gostam de comer humanos, especialmente crianças.


O bom gigante amigo é a mais recente adaptação para os cinemas de uma obra de Dahl, que chegou às telonas dirigido por Steven Spielberg.

>> Steven Spielberg: “Temos de respeitar a inteligência da plateia”

James e o pêssego gigante

Escrito em 1961, o enredo é centrado em um garoto órfão que entra em um pêssego gigante e mágico. Lá ele conhece sete insetos magicamente alterados com os quais vive uma aventura para escapar de suas tias malvadas. Dahl pretendia escrever sobre uma cereja gigante, mas mudou porque o pêssego é “mais bonito, maior e mais suculento que uma cereja”. Por conta dos momentos macabros da história, o livro foi alvo de censura e figurou diversas vezes na lista dos 100 livros mais “desafiados” da Associação Americana de Bibliotecas.


A versão cinematográfica foi produzida por Tim Burton para a Disney e foi feita em stop motion.








especiais