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Discípulo de Borges, Alberto Manguel exalta a curiosidade em novo livro

Discípulo de Borges, Alberto Manguel exalta a curiosidade em novo livro

Adolescente, Alberto Manguel lia em voz alta para o escritor cego Jorge Luis Borges. Essa convivência mudou sua vida – e o fez descobrir a vocação para a literatura

RUAN DE SOUSA GABRIEL
16/09/2016 - 09h00 - Atualizado 16/09/2016 09h09

Na manhã de 30 de agosto, uma terça-feira, o escritor e bibliófilo argentino Alberto Manguel, de 68 anos, releu o primeiro canto de A divina comédia, o poema épico de Dante Alighieri (1265-1321). Manguel mergulhou nos versos rimados que narram como um amedrontado Dante, recém-saído de uma selva tenebrosa, é repelido de volta para a escuridão por uma loba magra e cobiçosa. Um vulto, porém, o impede. Era o poeta latino Virgílio, autor da Eneida. No poema, Virgílio diz a Dante que a cobiça da loba nascia da inveja: Tem tão má natureza, é tão furente,/Que os apetites seus jamais sacia. “Nessa manhã, ocorreu-me que a cobiça é o pior dos pecados e está associada à fome da loba”, diz Manguel. “A cobiça nasce quando não nos satisfazemos com o que temos e queremos o que os outros têm.”

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Manguel lê um canto de A divina comédia todas as manhãs. Doze anos atrás, uma doença que o condenou a ficar em casa despertava-o do sono logo cedo. Ele decidiu aproveitar essas horas mortas para ler, pela primeira vez, os versos de Dante. “Eu conhecia A divina comédia como todos nós a conhecemos: sabia que era um livro importante, de reputação universal, mas só então decidi lê-lo”, diz. “E o que descobri foi um mundo extraordinariamente rico.” Ao revisitar os versos de Dante a cada manhã, Manguel encontra novas formulações para as velhas perguntas que atormentam os poetas e os filósofos desde a invenção da linguagem. Essas perguntas conduzem os ensaios – meio filosóficos, meio literários – de seu novo livro, Uma história natural da curiosidade (Companhia das Letras, 488 páginas, R$ 79,90). Assim como Virgílio guia Dante pelos nove círculos do Inferno, o poeta florentino conduz Manguel por um purgatório de questões como “O que é verdade?”, “Como raciocinamos?” e “Quem sou eu?”.

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O objetivo de Manguel não é responder a essas questões. Ele mobiliza seu vasto repertório de leituras – que vai de David Hume a Tomás de Aquino, da Bíblia a Lewis Carroll – para fazer novas perguntas, propor reflexões e aventar hipóteses. Tudo isso movido pelo desejo fervoroso pelo conhecimento que Dante chamou de ardore. O mesmo desejo que levou Ulisses, o herói da Odisseia, a se arriscar em sua última e fatal jornada. Manguel nasceu em Buenos Aires, em 1948, mas cresceu em Israel, onde seu pai era diplomata. Não foi uma dessas crianças que vivem perguntando o porquê das coisas. Era tímido. Foi educado em inglês e alemão por uma preceptora germânica que respondia de modo lacônico às raras perguntas do menino. Quando descobriu os livros, interessou-se menos pelas respostas e mais pelas questões que a literatura formulava. A literatura são as perguntas menos as respostas, já dizia o filósofo francês Roland Barthes.
 

O escritor Alberto Manguel (Foto: Ulf Andersen / Aurimages)
Uma história Natural da curiosidade - Livro de Alberto Manguel (Foto: divulgação)

Na adolescência, Manguel voltou à Argentina, onde se tornou íntimo do espanhol e aprendeu, com um professor do Colégio Nacional de Buenos Aires, a procurar na literatura as chaves para sua identidade. Ele gastava com livros o salário que ganhava na distinta Livraria Pygmalion. O mítico escritor Jorge Luis Borges (1899-1986) perambulava pela livraria à procura não de livros, mas de leitores. “Acontece que minha mãe já está beirando os 90 anos e se cansa muito”, repetia Borges, que vinha perdendo a visão e não podia mais esperar que a mãe velhinha lesse para ele. Borges encontrou um leitor naquele livreiro adolescente e poliglota. Entre 1964 e 1968, Manguel ia duas ou três vezes por semana à casa do escritor e lia, em voz alta, os clássicos em inglês que ele queria revisitar. Também acompanhava Borges ao cinema e lhe descrevia as imagens projetadas na tela. “Eu era um adolescente que, com aquela arrogância típica da juventude, acreditava estar fazendo um favor a um velho cego e não me dava conta de quanto eu aprendia lendo para Borges”, afirma Manguel – que, enquanto lia, era interrompido pelos comentários do escritor.

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A convivência com Borges ensinou a Manguel que não havia nada de errado em passar a vida perdido nos livros. “Era difícil para um adolescente da minha geração se entregar a uma paixão intelectual. Nossos pais nos queriam médicos, advogados ou engenheiros, no máximo arquitetos. As letras eram para diletantes, não eram uma carreira”, diz. “Mas Borges, com grande generosidade e inteligência, dizia-me para persistir s nos livros, se era isso o que me fazia feliz. E ele estava certo.”

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Seguindo à risca o conselho de Borges, Manguel dedicou sua vida aos livros. Amealhou uma biblioteca de 40 mil títulos abrigados na casa onde viveu em Mondion, um vilarejo medieval no sul da França. Deu aulas em universidades americanas e trabalhou como leitor de originais para editoras europeias. Assim como outros escritores argentinos – Ricardo Piglia, Beatriz Sarlo e o próprio Borges –, elegeu o leitor como protagonista dos livros que escreveu. “Ler literatura é meter o nariz no mais profundo da realidade”, diz Manguel, numa defesa de que se encerrar na biblioteca não implica recusa do mundo. “Sem a literatura, somos como surdos-mudos, e é isso o que querem os políticos”, diz ele. “As autoridades querem que não façamos perguntas e que não sejamos curiosos. Elas nos querem longe da literatura para que passemos a vida nos ocupando com jogos idiotas.”

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Em junho deste ano, os destinos de Manguel e Borges voltaram a se cruzar. O presidente Mauricio Macri convidou Manguel para dirigir a Biblioteca Nacional da Argentina, comandada por Borges entre 1955 e 1973. Manguel, que descreve o trabalho como “aterrador e maravilhoso”, assumiu o cargo em meio a protestos. Macri prometeu “desideologizar” as instituições culturais argentinas e ordenou a demissão de centenas de intelectuais simpáticos à ex-presidente Cristina Kirchner. Mais de 200 funcionários da biblioteca foram demitidos, mas parte deles acabou reincorporada. “Toda biblioteca – seja em Buenos Aires, seja em Alexandria – é uma instituição social e política, mas nosso desafio é fazer com que a biblioteca funcione independentemente do caos político argentino”, diz.

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Páginas e páginas de teologia já foram escritas alertando contra os perigos da curiosidade que levou Eva a comer do fruto proibido e condenar toda a humanidade a viver sob o jugo do pecado. Os ensaios de Manguel, porém, sugerem que a curiosidade também pode nos conduzir a alguma forma de redenção. Afinal, Dante foi capaz de atravessar o Inferno porque tinha um poeta como guia.








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