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Bob Dylan, o Homero da cultura pop

Bob Dylan, o Homero da cultura pop

Bob Dylan leva o Nobel pelo valor poético de suas canções num reconhecimento de que a literatura não se restringe mais aos formatos tradicionais

RUAN DE SOUSA GABRIEL
18/10/2016 - 11h31 - Atualizado 18/10/2016 11h31
Bob Dylan leva o Nobel pelo valor poético das suas canções num recohecimento de que a literatura não se restringe mais aos formatos tradicionais (Foto: Jerry Schatzberg / trunkarchive)

No verão de 1960, aos 19 anos, Bob Dylan abandonou as aulas da Universidade de Minnesota, no Meio-Oeste americano, e botou o pé na estrada depois de mergulhar na prosa bêbada e jazzística de On the road, de Jack Kerouac. Dylan seguiu para Denver, a terra de Dean Moriarty, o anti-herói do romance, para experimentar a vibrante cena musical da cidade. Não era a primeira vez que ele tomava decisões malucas influenciadas pelos livros. No ano anterior, ele resolvera mudar de nome depois de tropeçar nos versos modernistas do poeta galês Dylan Thomas. Primogênito de uma família judaica, Robert Allen Zimmerman gostava de seu nome, achava que soava como o de um rei escocês. Mas o que ele queria mesmo era ter o nome de um poeta.

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Desde a quinta-feira, dia 13, toda vez que alguém mencionar o nome de Dylan vai se lembrar de que, além de músico, ele é também um poeta. Dylan foi premiado com o Nobel de Literatura “por criar novas expressões poéticas na tradicional canção americana”, segundo o anúncio da Academia Sueca. É a primeira vez que o prêmio vai para um compositor. “Se você olhar para um passado distante, há 5 mil anos, vai descobrir Homero e Safo. Eles escreveram textos poéticos que foram feitos para apresentações públicas, e o mesmo acontece com Bob Dylan. Nós ainda lemos Homero e Safo, e gostamos”, afirmou Sara Danils, secretária permanente da Academia, numa defesa do ineditismo da escolha.

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Ao longo de quase 55 anos de carreira, Dylan lançou 37 álbuns. O último, Fallen angels, saiu em maio. Livros publicados foram apenas dois: Tarântula, uma compilação de poesia experimental escrita entre 1965 e 1966 e editada em 1971; e Crônicas,  o primeiro – e até agora único – volume de sua autobiografia. Em 2008, ele recebeu uma menção honrosa do júri do Prêmio Pulitzer – o mais prestigioso das letras americanas – “por seu profundo impacto na música e na cultura popular americanas, marcado por composições líricas de extraordinário poder poético”.

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Ainda que Dylan não seja um poeta desses que publicam antologias e são estudados nas universidades, ele se inscreve na melhor tradição da lírica de língua inglesa. Quer na composição de uma canção ou de parágrafo de prosa memorialística, Dylan é como um carpinteiro diante da madeira. Esculpe a linguagem em busca de ritmo – os instrumentos e uma voz potente tornam-se quase dispensáveis, tamanha a cadência de suas rimas. “Bob Dylan pertence ao clube dos 2% dos compositores cujos versos são interessantes na página, mesmo sem a harmônica e o violão e a voz característica dele”, afirmou o premiado poeta americano Billy Collins. Segundo o crítico musical Billy Wyman, que exigiu um Nobel para o compositor num artigo publicado no The New York Times ainda em 2013, Dylan adicionou literatura aos gêneros tradicionais da música americana, como o folk, o blues, o gospel e o country. Combinou a aspereza escandalosa de beatniks como Kerouac e Allen Ginsberg, o intelectualismo austero de poetas simbolistas, como Dylan Thomas e Arthur Rimbaud com as canções populares que exaltavam o cotidiano de trabalhadores braçais e homens do campo. Ele também incorporou as imagens e a linguagem bíblicas em canções como “Blowin’ in the wind” e “The times they are a-changin’”, nas quais ele soa como um profeta do Antigo Testamento ou o pregador do Eclesiastes.

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Uma das maiores influências de Dylan foi o cantor e compositor Woody Guthrie, um dos maiores nomes da cultura popular americana, que homenageou andarilhos e trabalhadores em canções com notas políticas. Foi a leitura de Bound for glory (Destinado à glória, numa tradução livre), a biografia romanceada de Guthrie, que despertou Dylan para as canções de protesto nos anos 1960. Ele, porém, frustrou-se com a transformação do folk  numa arte panfletária de esquerda, na qual a estética se subordinava à ideologia. No final da década, agarrado a uma guitarra elétrica, ele passou a compor versos absurdos habitados por personagens e situações surreais, emprestados da história e da literatura. Algumas de suas canções mais vigorosas, como “Like a rolling stone”, “Hurricane” e “Ballad of a thin man”, aliam a poesia a uma forte estrutura narrativa. Em “Just like a woman”, ele surpreende o ouvinte (leitor?) ao descrever uma personagem cuja força reside justamente em sua delicadeza quase infantil. Os versos de “Tangled up in blue” evocam tantas imagens que a canção tem um quê cinematográfico.

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Essa tapeçaria “dylanesca” – brincar com os sentidos das palavras, cruzar fronteiras e surpreender o público ao misturar rimas, imagens, mito e crítica cultural – vai ao encontro do esforço dos acadêmicos suecos de alargar seu conceito de literatura. No ano passado, a escolha da bielorrussa Svetlana Aleksiévitch, cujos livros de não ficção se apoiam em entrevistas, indicou a boa vontade da Academia de valorizar outros formatos literários, além da prosa ficcional e da poesia. “Os tempos mudaram”, disse a secretária permanente da Academia Sueca numa alusão a “The times they are a-changin”, uma das mais famosas canções de Dylan.

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Sim, os tempos mudaram, mas alguns velhos hábitos dos acadêmicos suecos permanecem. A escolha do Nobel é sempre política, e a premiação de Dylan homenageia também toda a cultura que ele representa – o trovador americano está para a cultura pop nascida nos anos 1960 como Picasso está para a arte moderna. Dylan foi uma das antenas que melhor captaram a agitação contracultural, que deu ao mundo o movimento hippie, os Beatles e a revolução sexual. Não deve ser vista como uma mera coincidência a escolha de Dylan, símbolo do espírito livre e dos valores dos anos 1960, no ano em que um dos candidatos à Casa Branca é Donald Trump, ricaço misógino e reacionário que dispara contra as minorias étnicas e religiosas. 

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Em 1996, um comitê apoiado por Allen Ginsberg foi a Estocolmo defender a candidatura de Dylan ao Nobel. “Dylan é um dos maiores bardos e menestréis americanos do século XX, e suas palavras influenciaram várias gerações de homens e mulheres de todo o mundo”, afirmou Ginsberg. Demorou, mas os acadêmicos suecos finalmente deram ouvidos ao velho beatnik e a essas gerações de homens e mulheres de todo o mundo. Hoje, se um jovem músico que almeja revolucionar a canção popular quiser adotar o nome de um poeta, Robert Allen Zimmerman pode ser uma boa opção.

dylan (Foto: dylan)







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