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Meninos em fúria recorda como o punk da periferia conquistou SP nos anos 1980

Meninos em fúria recorda como o punk da periferia conquistou SP nos anos 1980

Livro do escritor Marcelo Rubens Paiva e do roqueiro Clemente conta como os roqueiros incomodaram a ditadura militar

RUAN DE SOUSA GABRIEL
04/10/2016 - 08h00 - Atualizado 04/10/2016 11h30

Em 1982, Marcelo Rubens Paiva tinha 23 anos e se preparava para publicar Feliz ano velho, um livro que marcou época ao abusar da linguagem coloquial para contar sobre o acidente que o deixara tetraplégico. Clemente Tadeu Nascimento, um jovem negro e punk de Vila Carolina, bairro operário na Zona Norte de São Paulo, tinha 19 anos, trabalhava num banco e tocava numa banda. No reduto punk, ele já era conhecido só como Clemente, do grupo Inocentes. No dia 28 de agosto daquele ano, os dois se encontraram num show que juntava três bandas punk na Pontifícia Universidade Católica (PUC). Marcelo era o “cadeirante doidão”, e Clemente o idealizador daquele rolê, que propunha a união de todos os punks da região metropolitana. Os punks das periferias e da região do ABC paulista estavam divididos em gangues rivais, armadas de canivetes. A banda Passeatas, do ABC, achou que aquele show fosse uma cilada, e seus integrantes se apresentaram com revólveres na cintura.

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O pânico começou quando as sirenes tocaram e a polícia chegou. Era a Rota, a temida tropa de elite da Polícia Militar paulista. Os soldados foram tirar satisfação com os punks, com os alunos e até com professores. O público se dispersou e o show da paz punk chegou ao fim com várias explosões. O Centro Acadêmico estava em chamas. Os roqueiros e os anarquistas levaram a culpa pelo fogo, mas quem estava lá percebeu as semelhanças entre aquele incêndio e outros atentados patrocinados pela linha dura militar para boicotar a transição democrática. O punk, um movimento que congregava jovens operários “contra o sistema”, incomodava a ditadura, que dava seus últimos suspiros (e explosões).

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Nas décadas seguintes, Marcelo e Clemente continuaram se esbarrando nas ruas e nos metrôs de São Paulo. “Um belo dia, o Marcelo me perguntou se eu não ia escrever um livro sobre o movimento punk”, diz Clemente. “Eu estava arranhando uma biografia, mas não saía do primeiro capítulo.” Marcelo se ofereceu para ajudar. Assim nasceu Meninos em fúria (Alfaguara, 224 páginas, R$ 39), um relato a quatro mãos que recorda os primórdios do punk nas periferias paulistanas e o surgimento de bandas como Inocentes, Restos de Nada e Lixomania. “É um livro sobre um momento na cultura brasileira, a luta contra a ditadura e as aspirações de uma juventude que pensava parecido”, afirma Marcelo. A narrativa é calcada na memória dos dois, mas também em entrevistas com pessoas que mergulharam na cultura punk entre o fim dos anos 1970 e o início dos anos 1980. Depoimentos em primeira pessoa de Clemente (resquícios daquela biografia que não foi em frente) são costurados à história conduzida por Marcelo.

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Festival Punk O Fim do Mundo (Foto: ROLANDO DE FREITAS/ESTADÃO CONTEÚDO)
Livro Meninos em fúria  (Foto: Divulgação)


 

“Se os americanos e os ingleses não tivessem inventado o punk, nós da Vila Carolina inventávamos”, escreveu Clemente em seu depoimento. Numa conversa com ÉPOCA, ele reconhece algum exagero nessa fala, mas ressalta que havia uma cultura comum que unia os punks de todos os países. “A gente tinha o mesmo sentimento e a influência de um rock que não existia mais”, diz. A trilha sonora daquela época era o rock progressivo, com seus solos intermináveis, mas os punks preferiam um som mais sujo e rude, com canções mais curtas, que recuperassem o espírito rebelde do rock.

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O espírito “contra o sistema” do punk se encaixou tão bem quanto uma jaqueta velha na periferia paulistana, onde a juventude se organizava em gangues rivais que se estranhavam pelas ruas. Esses jovens passaram a ouvir bandas como The Clash, Sex Pistols e Ramones. Parte deles passou a se vestir como James Dean em Juventude transviada. Montavam as próprias bandas e lotavam os salões de rock dos bairros. Clemente comprou um baixo com a ajuda da mãe. Suas irmãs abriram um crediário para que ele tivesse também um amplificador. Não era incomum que bandas mais abastadas, como a Inocentes, emprestassem seus instrumentos para grupos que só tinham canções.

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O movimento punk atravessou as pontes dos rios Pinheiros e Tietê, chegou à região central de São Paulo e conquistou a esquerda festiva da Universidade de São Paulo (USP) e da PUC. Os punks “contra o sistema” flertaram com os trotskistas da Liberdade e Luta, a Libelu, que curtiam rock. “O movimento punk combinava estética e política; não a política partidária, mas incentivava que o cidadão se colocasse politicamente”, diz Clemente. A marcha rumo ao centro foi turbulenta. O festival punk O Começo do Fim do Mundo, realizado no Sesc Pompeia, na Zona Oeste paulistana, em 27 e 28 de novembro de 1982, também foi interrompido pela polícia. Incomodados com o barulho e as brigas dos punks, os moradores do bairro chamaram a polícia. Uma nuvem de gás lacrimogêneo obrigou os roqueiros a se refugiar numa igreja evangélica. Mas a repressão chegou tarde. Àquela altura, o Brasil já tinha aprendido a sacudir a cabeça com os punks.








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