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Póstumo, o escritor Roberto Bolaño continua produtivo

Póstumo, o escritor Roberto Bolaño continua produtivo

O espírito da ficção científica, romance do chileno Roberto Bolaño, vem a público envolto em controvérsia: devem-se editar inéditos de autores mortos?

RUAN DE SOUSA GABRIEL
10/02/2017 - 08h00 - Atualizado 10/02/2017 08h00
Retrato do escritor chileno Roberto Bolaño (Foto: Effigie/Leemage)

Em julho de 2003, a Playboy mexicana publicou uma entrevista com o escritor chileno Roberto Bolaño, expatriado na Espanha. “Que sentimentos a palavra póstumo lhe desperta?”, perguntou a entrevistadora. “Soa como o nome de um gladiador romano. Um gladiador invicto. Ou ao menos assim quer crer o pobre Póstumo”, respondeu o escritor. Bolaño morreu dias após a publicação daquela entrevista, aos 50 anos, em decorrência de uma doença hepática degenerativa. Autor póstumo, Bolaño foi se metamorfoseando em algo próximo ao personagem que ele imaginou naquela entrevista: um invencível gladiador, capaz de derrotar escritores muito vivos nas batalhas pela atenção da crítica literária.

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Bolaño é um autor defunto dos mais produtivos. A edição de 2666, o monumental romance que ele burilava quando morreu, consagrou-o como o maior representante da nova prosa latino-americana, desligada do realismo mágico e das utopias políticas, mas atenta à tensão entre vanguardas artísticas e políticas. Outros livros póstumos não tardaram a aparecer, como As agruras do verdadeiro tira e coletâneas ainda inéditas no Brasil. Nesta semana, mais um livro sai do baú de Bolaño: O espírito da ficção científica (Companhia das Letras, 184 páginas, R$ 39,90), edição de um manuscrito de 1984.

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O espírito da ficção científica adianta temas das obras maduras de Bolaño, como a iniciação literária e sexual, o exílio, a barbárie sempre à espreita e o espectro da ditadura chilena. Especula-se que o manuscrito tenha sido um ensaio para Os detetives selvagens, publicado em 1998. Remo Morán e Jan Schrella, os protagonistas, são versões adolescentes de Ulisses Lima e Arturo Belano, que, em Os detetives selvagens, percorrem o deserto atrás de uma misteriosa poeta de vanguarda. No livro póstumo, Morán não conta com a ajuda de Schrella, alter ego de Bolaño, que evita sair de casa e remete cartas a autores de ficção científica. Ao lado de um poeta motoqueiro, Morán investiga a proliferação de oficinas literárias e revistas de poesia pela Cidade do México. “O espírito da ficção científica tem momentos extraordinários em que o leitor reconhece características da escrita de Bolaño, como seu interesse quase obsessivo por escritores jovens, suas desilusões e ambições”, diz Celina Manzoni, professora da Universidade de Buenos Aires e organizadora do livro Roberto Bolaño: la escritura como tauromaquia (Ediciones Corregidor).

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Bolaño começou a publicar aos 43 anos, mas escrevia obsessivamente desde os 17. O Arquivo Bolaño soma 14.374 páginas, 84 cadernos, experimentos em verso, fotografias, quase 1.000 cartas, romances e contos inéditos. Foi desse baú que saiu O espírito da ficção científica, apresentado ao mercado editorial na Feira do Livro de Guadalajara, em novembro passado.

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A viúva do escritor, Carolina López,  foi repreendida por editar o manuscrito. Nos anos finais, Bolaño era celebrado pela crítica, contava com um editor importante e leitores fiéis. Podia publicar o livro que quisesse, mas deixou O espírito da ficção científica na gaveta. “Se Bolaño não publicou este ou outro livro, foi por ter consciência de seu projeto autoral, do que desejava que aparecesse e do que julgava incompleto ou medíocre”, diz Antonio Marcos Pereira, professor da Universidade Federal da Bahia e um dos organizadores de Toda a orfandade do mundo: escritos sobre Roberto Bolaño (Relicário Edições).

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Herdeiros são amiúde acusados de se interessar mais pelo vil metal do que pela literatura. A publicação de obras incompletas ou renegadas pode arranhar o prestígio de escritores consagrados. Em 2009, os herdeiros do russo Vladimir Nabokov, o autor de Lolita, colocaram no mercado O original de Laura, um manuscrito que deveria ser destruído após sua morte. O romance póstumo foi apedrejado pela crítica. No entanto, os baús de escritores mortos podem guardar tesouros, como os poemas de Emily Dickinson ou Sylvia Plath, dois dos maiores nomes da lírica em língua inglesa. Antes de morrer, Franz Kafka queimou boa parte de seus manuscritos e ordenou que seu amigo Max Brod destruísse o resto. Brod traiu Kafka e, graças a ele, foi publicado O processo, uma das maiores obras da literatura.

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“Quando os herdeiros põem os livros em circulação, os leitores se transformam em herdeiros, não dos cheques, mas das palavras do escritor, e podem fazer com elas o que quiserem”, diz Celina Manzoni. Esses leitores herdeiros podem procurar pistas para elucidar alguns enigmas. Segundo Gustavo Silveira Ribeiro, professor da Universidade Federal de Minas Gerais e também organizador de Toda a orfandade do mundo, “os textos que Bolaño deixou prontos, como 2666, aprofundam os conhecimentos que temos de sua obra e personalidade literária”. Para sorte dos leitores (e dos críticos), o baú de inéditos de Bolaño é bem fundo e repleto de histórias – quem sabe até de gladiadores romanos. 

Autor defunto (Foto: Arte/Época)







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