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Clarice Lispector inspira personagem em romance de sua tradutora americana

Clarice Lispector inspira personagem em romance de sua tradutora americana

A americana Idra Novey, tradutora de A paixão segundo G.H., publica A arte de desaparecer, um inventivo romance policial que aproxima os ofícios de tradutor e detetive

RUAN DE SOUSA GABRIEL
12/01/2018 - 08h00 - Atualizado 15/01/2018 18h01
A escritora americana Idra Novey em São Paulo (Foto: Patricia Stavis/ÉPOCA)

A escritora americana Idra Novey viu sua casa ser invadida pelo Brasil quando tinha 15 anos. Ela vivia numa cidadezinha no oeste da Pensilvânia, uma decadente região industrial dos Estados Unidos onde os invernos são rigorosos e os homens gostam de armas de fogo. A família Novey hospedou um intercambista carioca chamado Luís Flaks, que passou um ano por lá. “Eu morava numa região rural, muito devagar, onde não acontecia nada. E aí chegou um hermano do Brasil trazendo o samba, a Bossa Nova, a feijoada! Foi maravilhoso”, disse Idra, que hoje tem 39 anos, numa conversa com ÉPOCA em São Paulo. A entrevista aconteceu na tarde de 9 de dezembro de 2017, data que marcou os 40 anos da morte de Clarice Lispector. Se Flaks apresentou o Brasil a Idra, foi Clarice quem a fez mergulhar na cultura brasileira. Idra conheceu Clarice na universidade, numa aula sobre literatura experimental de escritoras latino-americanas. Ela se esforça para lembrar os nomes das outras escritoras que conheceu naquele curso: “Diamela Eltit, María Luisa Bombal, uma poeta argentina (silêncio reflexivo)... A luz de Clarice ofuscou todo o resto (risos)”.

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A arte de desaparecer (Foto: divulgação)

Idra foi arrebatada pela leitura de A paixão segundo G.H., o assombroso romance de Clarice sobre uma mulher e uma barata. “Havia uma franqueza brava naquele livro, uma fome filosófica. Eu quis aprender português para ler Clarice no original”, diz. Em 2012, Idra assinou uma nova tradução de A paixão segundo G.H. Para verter a linguagem caudalosa de Clarice para o inglês, ela recorreu a sua bagagem poética. Idra tem três livros de poesia publicados: The next country (O próximo país, na tradução do inglês), Exit, Civilian (Saia, civil), e Clarice: the visitor (Clarice: a visitante). Embora repita que é melhor leitora do que falante de português, Idra se expressa muito bem na língua de Clarice e complementa o discurso com simpatia e gesticulação. O português dela às vezes soa como portunhol – Idra é casada com um chileno e, em casa, eles só falam espanhol. Como os hispânicos, ela escorrega na pronúncia dos ditongos nasais (ão), inventa neologismos involuntários, como “provisional” (provisório), e usa palavras em espanhol como se fossem português: “hermano”, “clase” (aula) e “novela” (romance).

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A escritora Clarice Lispector em 1974. Ela inspirou uma personagem de A arte de desaparecer (Foto: Foto: Estadão Conteúdo)

A “novela” a qual Idra se refere é A arte de desaparecer (Editora 34, 272 páginas, R$ 55), seu romance de estreia, traduzido por Roberto Taddei e lançado durante sua passagem pelo Brasil. A arte de desaparecer reflete as paixões que movem seu trabalho: a poesia, a tradução e Clarice. O romance começa com uma imagem poética e bizarra: uma escritora roliça e grisalha, com uma mala e um charuto, trepa nos galhos de uma amendoeira num parque de Copacabana. A mulher é Beatriz Yagoda, uma esfíngica escritora brasileira de ascendência judaica, nascida na África do Sul. Beatriz arrebatou a crítica literária com suas frases sinestésicas, que ardem na cabeça do leitor, mas podem facilmente ser tiradas de contexto e compartilhadas à exaustão nas redes sociais, como “Desejo é o que um homem nega até não poder mais”. Quando jovem, Beatriz impressionava também pela beleza: as maçãs do rosto eram salientes, e os olhos de um verde “radioativo”. O leitor brasileiro não demorará a reconhecer Clarice em Beatriz.

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Depois de subir na árvore, Beatriz some – simplesmente vai embora. “Essa cena de abertura veio da minha admiração pela expressão em português ‘ir embora’. Não temos em inglês uma expressão tão impulsiva como ‘ir embora’”, diz Idra. “Às vezes a gente quer ‘ir embora’! Seguir os impulsos é parte fundamental de estar vivo. Esse romance foi um impulso.” Idra combina a admiração pela “abertura cultural dos latinos para o destino” com a racionalidade americana – ela pergunta duas vezes como se diz “rational” em português e não entende direito por que a pontualidade é pouco observada no Brasil. Em A arte de desaparecer, outra tradutora age por impulso. Emma Neufeld, a tradutora americana de Beatriz, abandona o inverno da Pensilvânia e o namorado metódico quando ouve que sua autora desapareceu. Depois de passar tanto tempo debruçada sobre as palavras de Beatriz, Emma imagina conhecer a autora bem o suficiente para ajudar nas buscas.

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Nos trópicos, a tradutora pálida e sistemática se transforma numa heroína aventureira e romântica: envolve-se com Marcus, o filho de Beatriz, e arruma confusão com Raquel, a filha, e com a bandidagem carioca. Beatriz fugiu porque tinha uma dívida milionária com um agiota – ela era viciada em pôquer on-line. As pistas colhidas nos livros e num manuscrito inédito de Beatriz levam Emma e os filhos da autora até Salvador – onde Idra fez um curso de seis semanas de português durante sua primeira incursão pelo Brasil, em 2001. Ela morava no Chile e era recém-casada. Ela e o marido investiram o dinheiro dos presentes de casamento numa viagem de ônibus pelo Brasil, que começou em Florianópolis e terminou em Salvador, onde o dinheiro acabou. Idra voltou outras vezes ao Brasil ao longo dos anos devotados à tradução da literatura brasileira. Além de Clarice, ela traduziu os poetas Manoel de Barros e Paulo Henriques Britto, um dos maiores tradutores brasileiros, que faz o caminho inverso ao de Idra: verte autores americanos para o português.

Poema do livro Clarice: the visitor. Tradução de Flávia Rocha (Foto: Foto: Estadão Conteúdo)

A arte de desaparecer aproxima os ofícios de tradutor e detetive. O escritor argentino Ricardo Piglia já havia aproximado as figuras do detetive e do leitor no ensaio Leitores imaginários. O leitor encara as palavras impressas na página como um detetive encara as pistas: como signos que devem ser interpretados para desvendar um mistério. “Traduzir é resolver o mistério da linguagem. O impulso detetivesco de Emma é o mesmo que leva alguém a traduzir literatura”, diz Idra, para quem a tradução é também um modo de “aprender a tomar riscos literários”. Ela não esconde sua admiração por escritores-tradutores, como Lydia Davis, a americana que escreve contos minúsculos e traduziu a prosa incontida do francês Marcel Proust para o inglês, e o argentino Jorge Luis Borges, que gostava de aprender línguas antigas. A própria Clarice traduziu os mistérios de Agatha Christie e adaptou clássicos de Edgar Allan Poe, Oscar Wilde e Julio Verne para jovens leitores. “Os escritores mais inovadores são os que têm uma curiosidade para outras línguas, sabem escutar com atenção os livros de outros autores”, diz. “Eu admiro escritores inquietos, que não se limitam a um gênero, mas brincam de poesia, brincam de ficção.”

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Idra gosta de brincar. A carpintaria narrativa de A arte de desaparecer é mérito de uma poeta. A estrutura é fragmentada: os capítulos são curtos e intercalados por poemas, e-mails, boletins radiofônicos que informam sobre o sumiço de Beatriz e pequenos verbetes de um dicionário que oferece definições etimológicas e poéticas de palavras como “promessa” e “bolada” e funcionam como pistas dos sentimentos ocultos dos personagens. A poesia também está nas metáforas que parecem versos – “o calor do Brasil era como a boca de um animal” – e na sobreposição de imagens esdrúxulas – “fedor familiar de axilas, escapamentos e goiabeiras” – que apelam para os sentidos do leitor. Idra combina essas inovações formais com um enredo que lembra o que os americanos chamam de “summer reading” (leitura de verão): uma história com pitadas de amor, aventura e mistério, cenários exóticos, bonitões descamisados e um final um pouco convencional que aquece o coração do leitor mais romântico.

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A carreira poética de Idra a ajudou a encontrar soluções para preservar a estranha poesia da prosa de Clarice em inglês. “A Barbara Epler, da New Directions (editora que publica a obra de Clarice nos Estados Unidos), me disse que A paixão segundo G.H. seria mais bem traduzido por um poeta. Eu concordo, pois esse livro tem uma música interna, um ritmo poético”, diz Idra. “A tradução de Idra conseguiu expressar o impacto espiritual da linguagem de Clarice em inglês”, diz Katrina Dodson, a premiada tradutora americana que verteu todos os contos de Clarice para o inglês. “Dos romances de Clarice, A paixão segundo G.H. é o mais difícil de se traduzir por causa da linguagem e da gramática complicadas, do uso inusitado dos pronomes reflexivos, como em ‘a vida se me é’. Os poetas têm ouvido para acertar não só os significados das palavras, mas também o ritmo da linguagem profundamente musical de Clarice.”

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Enquanto traduzia, Idra compôs poemas epistolares destinados a Clarice, emulando o diálogo comum entre uma tradutora e seu autor. “Eu comecei a construir uma Clarice na minha cabeça para conversar comigo, para quem eu podia perguntar ‘Ah, Clarice, que você quis dizer nesse trecho?’”, diz Idra. Esses poemas epistolares foram reunidos em Clarice: the visitor e expressam a desordem que a imersão no texto alheio causam na vida de um tradutor: C, não consigo lembrar/quem eu era antes do obsessivo trabalho manual/de te traduzir.

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Idra não pretende traduzir a si mesma – ela prefere continuar a desaparecer atrás das frases e dos versos de outros autores e dar-lhes lições poéticas de inglês. “O tradutor é como um rádio. Ele toca uma voz literária na frequência de seu tempo”, diz. Por culpa da entrevista, Idra está atrasada para seu próximo compromisso. Mas não é o atraso que interrompe nossa prosa. O local onde conversamos será ocupado por um clube de leitura de Elena Ferrante, a escritora italiana que nunca mostrou o rosto. Suspeita-se que Ferrante seja um pseudônimo (ou heterônimo) de Anita Raja, outra tradutora versada na arte de desaparecer.








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