Cultura

Diamela Eltit: "As ditaduras ainda sobrevoam a América Latina como corvos"

Diamela Eltit: "As ditaduras ainda sobrevoam a América Latina como corvos"

A escritora chilena participou da Flip e falou sobre dimensão política da arte

RUAN DE SOUSA GABRIEL| PARATY (RJ)
30/07/2017 - 12h06 - Atualizado 31/07/2017 12h12
Diamela Eltit (Foto: Walter Craveiro)

Se a 15ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) se propôs a discutir literatura e política, a escritora chilena Diamela Eltit provou estar à altura da tarefa. Na noite de sexta-feira (28), Damiela participou da mesa A contrapelo, com o documentarista Carlos Nader. Diamela falou, com precisão e bom humor, sobre temas políticos, como as diferenças salariais entre homens e mulheres, a oposição do Parlamento chileno ao aborto em quaisquer circunstâncias e a angústia que era escrever sob a vigilância da censura do ditador Augusto Pinochet (1915-2006). Diamela é uma escritora reconhecida pela crítica, dona de uma escrita potente, mas permaneceu inédita no Brasil até este ano, quando seu romance Jamais o fogo nunca foi traduzido pelo escritor Julián Fuks e publicado pela editora mineira Relicário. A editora digital e-galáxia publicou a coletânea de ensaios A máquina Pinochet. A ação de Jamais o fogo nunca se passa num quarto fechado, onde um casal de ex-revolucionários desencantados recorda as utopias políticas do passado. Algumas horas antes de sua participação na Flip, Diamela conversou com ÉPOCA sobre os principais temas de sua literatura: a sangrenta ditadura chilena e a reflexão sobre a dimensão política dos corpos.

ÉPOCA – Jamais o fogo nunca é narrado por uma mulher que resistiu à ditadura de Pinochet. Há quase três décadas, não há mais ditaduras militares na América Latina. No entanto, a memória dos regimes autoritários ainda inspira nossas literaturas. Qual a relação entre ditadura, memória e literatura?
Diamela Eltit –
O término das ditaduras foi processo lento e irregular. No caso do Chile, nós vivemos 17 anos num Estado de exceção, com muitos mortos, torturados e presos políticos. No Chile, não houve catástrofe de maior magnitude do que a ditadura. Ainda hoje, no Chile, os direitos humanos são atropelados. A Constituição de Pinochet ainda vigora. A ditadura continua como um corvo a nos sobrevoar. Autores jovens, que não viveram as ditaduras, seguem escrevendo sobre elas, porque, como corvos, as ditaduras ainda nos sobrevoam. Por isso, seguimos refletindo sobre elas.

ÉPOCA – Seus livros revisitam sempre o violento passado chileno. Como a literatura pode nos ajudar a refletir sobre o passado?
Diamela –
Há um conjunto de práticas que vão na direção de uma revisão do passado, como a memória, a literatura, o teatro, a ciência. Em meu caso particular, eu penso o passado e também o futuro, porque não há nenhum sistema que não seja violento. Vivemos em democracias imperfeitas, onde há formas notórias de violência, como a exclusão, a desigualdade, a desvalorização dos corpos. A violência sempre está presente e a democracia não é possível com tanta desigualdade.

ÉPOCA – Na abertura da Flip, a curadora Joselia Aguiar disse que a literatura de Lima Barreto nos convida a pensar um novo país. Como a literatura pode nos ajudar a pensar novos projetos de país, de futuro?
Diamela –
Num horizonte mais estético, pode-se dar relevo ao que o sistema oculta. E, ao colocar o que o sistema oculta num espaço público, como o livro, joga-se luz sobre o que está às margens, na periferia. Ao trabalhar com essas questões esquecidas e reprimidas pelas instituições, começa uma erupção – uma erupção de futuro.

ÉPOCA – Sua literatura se interessa em jogar luz sobre quais questões reprimidas?
Diamela –
Me interessa tudo o que tem a ver com a exclusão, como o sistema tacha de estranho aquilo que não entende, aquele que não tem lugar. Me interessa muito o corpo da mulher como uma zona de discurso.

ÉPOCA – O corpo e seus limites, o corpo e o social, estão muito presentes em Jamais o fogo nunca. Quais as relações que você faz entre o corpo individual e o todo social?
Diamela –
No começo, me impressionou a imagem da célula como base do corpo humano, mas também a imagem da célula política. A política emprestou a palavra “célula” da biologia. É interessante como uma noção biológica se torna política. “Célula de crise” também é um conceito biológico emprestado pelo social. Eu quis trabalhar esses dois espaços da célula, o político-social e o biológico.

ÉPOCA – Você permaneceu no Chile durante a ditadura e militou não em organizações políticas, mas no Colectivo de Acciones de Arte (Cada). Como foi lutar contra a ditadura usando a arte como arma?
Diamela –
Éramos cinco pessoas nesse coletivo: dois escritores, dois artistas visuais e um sociólogo. Nos juntamos por uma necessidade de fazer um projeto que relacionasse arte e política. Nós fazíamos intervenções urbanas. Queríamos ressignificar os signos gastos, que não davam mais conta da realidade. Várias palavras e expressões não faziam mais sentido na ditadura. Por exemplo: a frase “o povo unido jamais será vencido” não fazia nenhum sentido na ditadura, pois o povo havia sido completamente vencido. Em 1983, dez anos depois do golpe, nós lançamos um novo signo: “Não +” e nenhuma palavra a mais. Nossa proposta cultural e política era que as pessoas completassem esse signo com suas demandas: “Não + ditadura”, “Não + mortes”. Saímos pela noite a escrever “Não +” pelos muros com a ajuda de nossos amigos artistas. E, para nossa surpresa, as pessoas começaram a responder. Jovens submetidos ao autoritarismo da família escreviam “Não + pais”. Outros escreviam “Não + mortes”. 

ÉPOCA – Duas mulheres que resistiram à ditadura, como a protagonista de Jamais o fogo nunca, foram eleitas presidentes do Brasil e do Chile: Dilma Rousseff e Michele Bachelet. Ambas foram bastante populares num momento, mas Dilma acabou destituída no ano passado e, atualmente, o governo de Bachelet é bastante impopular. Qual a avaliação que a senhora faz das experiências de governo dessas duas mulheres cuja trajetória guarda semelhanças com sua personagem?
Diamela –
Não me atrevo a falar do governo de Dilma porque não conheço os fatores internos e as complexidades governo dela. Eu senti muito sua destituição por causa dos discursos dos que a destituíram, que faziam elogios a torturadores. A mim, me pareceu insólito! No caso chileno, estamos no segundo governo de Bachelet. Ela veio com uma agenda bastante renovadora, com questões básicas, elementares, mínimas. Por exemplo: educação pública gratuita, o que não há no Chile. Pagam-se em média US$ 600 por mês nas universidades públicas e privadas. Os movimentos estudantis exigem a gratuidade do ensino pelo menos para os setores mais pobres. Há sistemas de crédito nas universidades públicas, mas os alunos terminam devendo milhares de dólares. Mas direita tem muito dinheiro na educação privada – assim como setores da coligação de Bachelet. Conseguiu-se aprovar a universidade gratuita para um setor ainda menor do que se esperava. Outra proposta de Bachelet era o aborto nos casos de malformação do feto, risco à vida da mãe e estupro. Mas nem isso foi aprovado. No Chile, temos problemas com a energia elétrica. Se chove, cortam a luz. A energia elétrica foi privatizada e não há investimento no serviço. É uma catástrofe! Tudo foi privatizado pela ditadura, até o cobre, que é a base da economia chilena, foi 70% privatizado. Bachelet não conseguiu lidar com os partidos políticos, que têm uma formação muito masculina. Ela teve problemas não só com a oposição, mas também com sua própria coalizão. E o escândalo de tráfico de influência de seu filho a liquidou.

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ÉPOCA – Assim como Bachelet, Dilma também teve muitos problemas na lida com os partidos políticos. A cultura masculina dos partidos políticos também contribuiu para os problemas desses dois governos?
Diamela –
Não creio que os homens sejam piores que as mulheres. Mas a representação política não foi democratizada. No Chile, a representação das mulheres no Parlamento, incluindo as mulheres da direita mais furiosa, é de 15%. As mulheres são metade da população, mas sua representação no Parlamento é de apenas 15%, uma porcentagem que inclui mulheres detestáveis da direita. É muito pouco. É nesse sentido que há uma masculinidade no sistema político.

ÉPOCA – E na literatura?
Diamela –
Também. É um problema muito complexo. O cânone literário é masculino. Por isso, é muito frequente que as referências de autores homens sejam outros autores homens. As referências dos leitores também são masculinas porque falta uma democratização do cânone. Há que repensar tudo, incluindo o cânone. Estou muito contente em Paraty, mas, ainda que haja mais autoras mulheres que autores homens nesta edição, isso não significa que se produziu um movimento mundial ou latino-americano para mudar as condições das escritoras. É uma coisa circunstancial. É preciso observar a composição das Flips do futuro. Mas, pelo menos a desta edição, é genial.

ÉPOCA – Se a senhora fosse eleger um cânone feminino, quem estaria nele?
Diamela –
Não acredito que se deva eleger um cânone feminino. Um cânone feminino reproduziria a exclusão. A literatura é uma só, e é habitada por escrituras de homens e mulheres. Um cânone feminino colocaria a “literatura” de um lado e a “literatura feminina” de outro, num lugar inferior. Aqui está a “literatura” e aqui estão essas mulheres competindo entre si para ver quem é a mais bonita. Eu penso num cânone democrático, que não deixe homens ou mulheres de fora. Um cânone é dinâmico, deve-se refazê-lo sempre que necessário.

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ÉPOCA – Qual é sua relação com a literatura brasileira?
Diamela –
Minha relação com a literatura brasileira é bastante precária por causa da barreira do idioma. Mas eu segui fielmente as literaturas de Clarice Lispector e João Gilberto Noll, que morreu recentemente. Li a notícia e senti muito. Eu lia os livros dele traduzidos, e eles circulavam entre nós para que todos lessem.

ÉPOCA – Você já conhecia Lima Barreto?
Diamela –
Estou conhecendo agora. Li um texto dele em espanhol. Ele viveu uma situação complicada, muito conhecida dos artistas, o alcoolismo. Ele me pareceu muito irônico, apesar de suas condições sociais dramáticas. Gostei desse sarcasmo.








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